Permanente mutação

Ferreira Gullar nunca se deixou aprisionar em determinado estilo poético, sempre surpreendendo seus leitores em sucessivas metamorfoses
Ilustração: Ramon Muniz
01/09/2006

Há poetas que se notabilizam pela pesquisa formal, pela experimentação da linguagem em busca de novas formas de expressão. Outros cultivam diálogo com as formas consolidadas e consagradas. Existem os que consideram a poesia como veículo das alegrias, naufrágios e perplexidades de sua própria experiência individual. Alguns vinculam a poesia à dimensão épica e coletiva de um povo perante a História. A obra de Ferreira Gullar, de modo ímpar, efetua um amálgama de todas essas tendências, revelando um compromisso ético e uma relevância estética que a situam, consensualmente, no mais alto patamar da criação artística contemporânea.

Eis uma poesia que ousou lançar-se, com sucesso, em várias e às vezes antagônicas direções, sempre aberta ao risco, numa vertiginosa dialética de teses e antíteses que jamais se acomodou em qualquer síntese. Obra que já surgiu, com A luta corporal (1954), sob o signo do embate entre tradição e renovação, de que são exemplos tanto os admiráveis sonetos que abrem o livro e reverenciam o idioma quanto às desestruturações lingüísticas que fecham a obra e praticamente “explodem” a língua portuguesa, numa disposição tipográfica que anteciparia os procedimentos do movimento de vanguarda conhecido como Concretismo. Poesia que perscruta o mais íntimo ou ínfimo dos seres, como Galo galo, do mesmo livro, mas que não se furta a soar em prol da multidão de desvalidos e miseráveis que integram dramaticamente a paisagem brasileira, sul-americana e mundial.

Poesia dos sentimentos abissais, da perda, da desilusão amorosa, do enfrentamento da loucura e da morte, narrados pelo poeta de voz cosmopolita radicado no Rio de Janeiro, mas enraizado na pequena e pobre São Luís. Mas poesia, também, de esperança e de alegria: plena de vento, luz e sol contra o sombrio império do niilismo pós-moderno. E poesia, sempre, em busca do outro, ou melhor, de muitos outros: o outro que habita o eu, ou seja, a porção desconhecida e indomada de cada um de nós mesmos; o outro como protagonista do poema, no discurso solidário que se abre transitivamente para a aceitação do “ele” no universo anti-solipsista do “eu”; e o outro como leitor/interlocutor, na medida em que, para Gullar, qualidade e comunicabilidade não são fatores excludentes. Num território onde, mesmo com bons resultados, alguns poetas praticam uma espécie de fetichização autocentrada do ato literário, parece-nos extremamente significativo o fato de Gullar, sem abdicar dos mais rigorosos padrões de exigência estética, saber conciliá-los com um registro que permite ao leitor comum, não especializado ou universitário, poder fruir da experiência poética: palavras e temas comuns, cotidianos, subitamente incendiados pela combustão da poesia, capturada no cerne do dia-a-dia e não mais emanada de um poder divino.

Importa destacar a atuação de Gullar não apenas no âmbito da criação poética, mas no da crítica da cultura. Grande estudioso e arguto analista dos movimentos culturais e artísticos do século 20, é autor de numerosos ensaios sobre a arte contemporânea (em especial, as artes plásticas), tanto em suas manifestações européias e norte-americanas quanto em suas realizações brasileiras. O desejo de conhecer, transpor barreiras e modificar-se com o conhecimento é comum ao Gullar poeta e ao Gullar ensaísta. Daí sua obra ser tão avessa ao dogmático e tão porosa à mudança, motivada pelas sucessivas “verdades” que vai desconstruindo e reconstruindo ao longo da vida. Desdizendo-se para redizer-se, a poesia de Gullar não tem “centro”, “ponto fixo”, princípios imutáveis. Obra simultaneamente “em regresso” (para a São Luís natal) e em “progresso” para todas as cidades e linguagens do mundo.

Não se faz impunemente uma poesia de tão alto risco e coragem — estética e existencial. Aos que desejariam aprisioná-lo em determinado estilo poético, ele surpreendeu com sucessivas metamorfoses. E aos que desejaram, e conseguiram, aprisioná-lo por suas idéias à época da ditadura brasileira, ele respondeu com a tenacidade de seu canto contra a opressão. Sua biografia, de algum modo, é exemplar, pois tipifica, como nenhuma outra em nossa História recente, o engajamento do intelectual em prol das liberdades cívicas e da melhoria das condições de vida de seu povo. No período dos governos militares brasileiros, Ferreira Gullar foi preso, submetido a interrogatórios, forçado a exilar-se. Viveu em Moscou. Habitou no Chile até a queda de Salvador Allende. Residiu no Peru e na Argentina, onde compôs o que para muitos é uma das maiores realizações poéticas do século 20, o Poema sujo, de 1975. Retornando ao Brasil em 1977, foi novamente preso pelo “crime” de suas idéias contrárias à ditadura militar. Vida admirável pela capacidade de dizer não a toda forma espúria de poder, mesmo ao preço de pagar por isso com a própria liberdade. Poesia admirável pela inquietação e pela ampla gama de recursos, que tanto fere a nota pessoal do amor e da solidão quanto se ergue na defesa de valores éticos universais através de sua muralha luminosa de palavras.

Vida
Ferreira Gullar é o nome literário de José Ribamar Ferreira, nascido em 10 de setembro de 1930, em São Luís, Maranhão. Oriundo de família humilde — o pai era pequeno comerciante e a mãe, doméstica —, tem ascendência européia, indígena e possivelmente africana.

Estudou até os 17 anos numa escola técnica profissionalizante, aprimorando-se a partir daí como autodidata. Com ajuda de velhos dicionários da Biblioteca Pública, aprendeu sozinho o francês e, ainda adolescente, passou a ser um leitor voraz de gramática e de poesia parnasiana. Em 1949 publicou, com recursos próprios e auxílio materno, seu primeiro livro de poemas, Um pouco acima do chão, posteriormente renegado, porque correspondia a um período em que o jovem Gullar ainda não havia descoberto a poesia moderna. Em entrevistas, o poeta se recorda de que, pela leitura constante de poetas antigos, durante dois anos ele se comunicava oralmente por meio de versos de dez sílabas, que produzia sem cessar…

Em 1950, trabalhava como locutor da rádio Timbira, e já sonhava com horizontes mais largos do que o céu da província. Ganhou um Concurso Nacional de Poesia promovido por um importante jornal do Rio de Janeiro, e, munido de muita coragem e de pouco dinheiro, decidiu viajar para a então capital federal do Brasil. Como redigia bem, logo conseguiu colocação numa revista. A partir daí, foram vários empregos (sempre na área jornalística), algumas amizades com o meio literário do Rio de Janeiro e inúmeros domicílios, na dependência de salários menos ou mais generosos.

Em 1951, tornou-se amigo do crítico de arte Mário Pedrosa, e interessou-se vivamente pelo estudo da história e das técnicas da pintura, paixão que conserva até hoje, seja como teórico e crítico, seja como pintor amador.

Havia muito se familiarizara com a poesia moderna e se tornara também leitor de Dostoievski, Rilke e Fernando Pessoa; mais tarde, receberia o impacto de T. S. Eliot. O verso livre foi o veículo ideal para seu crescimento artístico, conforme ficou demonstrado no segundo livro, A luta corporal, de 1954. Essa obra logo se consolidaria como uma das peças-chave da poesia brasileira do século 20, prenunciando o movimento de vanguarda intitulado Concretismo, ao qual Ferreira Gullar inicialmente aderiu, mas de que se desligou para, em 1959, com a participação de renomados artistas plásticos do Rio de Janeiro, fundar o Neoconcretismo, combatendo a excessiva frieza e desumanização do movimento em sua versão original.

Em 1961, foi nomeado presidente da Fundação Cultural de Brasília, a então novíssima capital do país. Com a crise política oriunda da renúncia do presidente Jânio Quadros, retornou ao Rio de Janeiro. Em 1962, ingressou no Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes, e passou a produzir uma poesia nitidamente engajada e afinada com os ideais da esquerda, clamando por reformas radicais que dessem dignidade aos milhões de brasileiros desamparados. No ano seguinte, foi eleito presidente do Centro e publicou o ensaio Cultura posta em questão.

O golpe militar de 31 de março de 1964 atingiria profundamente Gullar. No dia seguinte, a sede da União Nacional dos Estudantes foi invadida e incendiada, e queimou-se a edição de Cultura posta em questão. Pouco depois, foi um dos fundadores do grupo teatral Opinião, uma espécie de fortaleza do pensamento de oposição à ditadura. Até 1968, dedicou-se intensamente ao teatro, produzindo textos em co-autoria e de forte impregnação social. Com o aumento da opressão do regime militar, em especial por meio da promulgação de ato institucional que sufocou de vez o Parlamento e as oposições, Ferreira Gullar foi preso pela primeira vez. Em 1970, para não ser novamente encarcerado, passou à clandestinidade, escondendo-se em casas de amigos pelo período de dez meses. Conseguiu fugir para Moscou, onde se exilou por quase dois anos. A seguir esteve no Chile, até a queda de Salvador Allende. Morou também no Peru e, finalmente, na Argentina, última etapa do exílio. Em período de tanta dor e sofrimento, viveu também um drama de natureza familiar: seus filhos tornaram-se dependentes da droga, e daí lhes advieram graves seqüelas psíquicas.

Em Buenos Aires, em 1975, escreveu seu livro de maior sucesso: Poema sujo, estonteante relato de um poeta ao mesmo tempo à beira da infância e à beira do aniquilamento. Sem a presença de Gullar, a obra foi lançada no Brasil em 1976.

Não suportando mais o exílio, retornou ao Brasil em março de 1977, sendo imediatamente preso pelo Departamento de Polícia Política e Social. Sofreu ameaças e foi interrogado durante 72 horas ininterruptas.

Retornou gradativamente às atividades culturais — assim como o país gradativamente começava a mover-se na direção da democracia. Aliou-se a consagrados nomes do cancioneiro popular, escrevendo letras para músicas que fizeram sucesso. Passou, com êxito, a escrever, em parceria com o dramaturgo Dias Gomes, roteiros para séries de grande qualidade na televisão brasileira. Em 1985, ganhou o Prêmio Molière por sua tradução de Cyrano de Bergerac.

Em 1991, morreu tragicamente seu filho Marcos. Dois anos depois, faleceu a esposa Thereza, companheira desde 1954. Tanto infortúnio foi contrabalançado quando, em 1994, conheceu a segunda mulher, a poetisa Cláudia Ahimsa, que reacendeu no poeta a vibração pela vida.

Durante dois anos (1993-1994), presidiu a Fundação Nacional de Arte, o mais importante órgão federal para o apoio ao desenvolvimento artístico do país. No ano de 2000, recebeu muitas e tocantes homenagens. Foi eleito “O intelectual do ano” em prestigioso concurso nacional. A região praiana onde, menino, brincava na cidade de São Luís passou a chamar-se Avenida Ferreira Gullar. No seu aniversário, em setembro, ocorreu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro a abertura da exposição Ferreira Gullar 70 anos, que ainda hoje está percorrendo o Brasil. Justos reconhecimentos do país a uma de suas maiores vozes.

Obra
Ferreira Gullar estreou em 1949, aos 18 anos de idade, com o livro Um pouco acima do chão, publicado em São Luís numa edição particular. Obra de adolescência, que o autor suprimiria da coletânea Toda poesia (1980), revelava um poeta ainda preso a moldes parnasianos. Mesmo assim, se levarmos em conta as condições culturais adversas da província e a extrema inexperiência literária do adolescente Gullar, não deixam de ser surpreendentes, em Adeus a Bizuza, as alusões a Keats, Shelley e Byron, revelando um leitor voraz do Romantismo ainda em busca de expressão própria, mas que, orgulhosamente, intuía ser sua poesia inicial “a primeira semente/ que trouxe consigo, latente,/ a pujança de todas as florestas”.

Tal pujança, de fato, já iria eclodir no livro seguinte, A luta corporal, de 1954. É verdadeiramente espantosa a diferença qualitativa que separa os poemas do livro anterior desta nova investida, que já revela um poeta maduro e em pleno vigor expressivo. A luta corporal é importante pelo que contém e pelo que prenuncia, em especial, algumas raízes da vanguarda concretista. Suas seis seções revelam uma travessia quase programática rumo à radicalização da linguagem poética. Assim, na primeira (Sete poemas portugueses) se agrupam textos de recorte mais “clássico”, como o belíssimo soneto de número 7:

Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário,
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

É possível interpretar as seções do livro como sucessivas desaprendizagens de um “poético” já codificado em prol de uma aventura em domínios menos confortáveis ou estabelecidos da linguagem. Não bastava ao poeta distanciar-se da realidade que o circundava; ele desejava, no mesmo passo, afastar-se das formas convencionais de representação dessa realidade. Se ainda era possível dizer o inefável —

Cerne claro, cousa
aberta;
na paz da tarde ateia, branco,
o seu incêndio.

— um salto além seria “desdizer” o indizível, na fronteira do puro significante incomunicável (“negror n’origens,/ flumes!”). O abismo entre signo e representação conduz a um impasse, na medida em que o signo nada mais representa, senão sua própria impossibilidade de representação. Sintomaticamente, é esse texto radical o derradeiro poema do livro, ou seja, trata-se de um texto à beira de um silêncio imediato. Gullar, no entanto, viria a recusar incisivamente esse território de escombros do verbo, esse desejo desesperado na fronteira do indizível e, desaprendendo a desaprendizagem que a si mesmo impusera, logo retomaria, nas obras subseqüentes, o desafio da palavra claramente transitiva. É certo que em Poemas (1958) ainda se podem constatar o rigor e uma certa abstração lingüística inerentes às experiências de vanguarda em que Gullar se envolvera,

mar azul
mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

mas em o Vil metal (1954/1960) já se inscrevem com nitidez diretrizes que marcarão a poesia e a poética de Gullar: um certo jogo com a espacialidade da página, o predomínio do verso livre, a captação plástica de objetos colhidos no cotidiano:

Sobre a mesa no domingo
(o mar atrás)
duas maçãs e oito bananas num prato de louça.
São duas manchas vermelhas e uma faixa amarela
com pintas de verde selvagem:
uma fogueira sólida
acesa no centro do dia.
O fogo é escuro e não cabe hoje nas frutas:
chamas,
as chamas do que está pronto e alimenta (Frutas)

A poesia mais explicitamente política de Gullar se concentraria na experiência dos “romances de cordel” escritos entre 1962 e 1967. Numa direção radicalmente oposta ao experimentalismo de linhagem concretista, Gullar mergulhava agora nas fontes populares e iletradas da poesia, recuperando a tradição dos “cantadores” nordestinos, com seus poemas narrativos vazados em linguagem simples e apoiados em métrica e rimas de forte apelo mnemônico. Num mundo configurado como palco do embate entre o Bem e o Mal, Gullar expressava o pensamento da intelectualidade de esquerda, pressurosa em denunciar as mazelas do imperialismo, e ainda crédula nas revoluções socialistas que, a partir de Cuba, prenunciavam uma era de fraternidade e justiça social na América Latina, mediante uma feroz denúncia das oligarquias inescrupulosas e reacionárias.

Após um longo período de silêncio, Gullar publicou Dentro da noite veloz, com poemas datados do período entre 1962 e 1975. Sofistica-se a reflexão política do poeta, que, sem perder a combatividade, alarga o espectro de referências, anteriormente (por estratégias de comunicabilidade com platéias menos freqüentadoras da poesia) centrado na luta entre o Bem e o Mal. O tom de denúncia direta perpassa alguns textos (Poema brasileiro, Não há vagas), enquanto outros se urdem obliquamente por meio de uma vigorosa cadeia de imagens. É o caso do comovente canto de solidariedade ao povo do Vietnã:

A noite, a noite, que se passa? diz
que se passa, esta serpente vasta em convulsão, esta
pantera lilás, de carne
lilás, a noite, esta usina
no ventre da floresta, no vale,
sob lençóis de lama e acetileno, a aurora,
o relógio da aurora, batendo, batendo,
quebrado entre cabelos, entre músculos mortos, na podridão
a boca destroçada já não diz a esperança,
batendo
Ah, como é difícil amanhecer em Thua Thien.
Mas amanhece. (Por você por mim)

O veio lírico-existencial, presente em alguns poemas de A luta corporal e como que abafado no período de engajamento ostensivo, volta a manifestar-se em várias ocasiões. Importa assinalar que o lirismo não é o oposto do político, pois, a rigor, Gullar jamais dele se demite; é, antes, sua face matizada, em que as grandes causas universais do discurso engajado se transmudam nas pequenas causas individuais, numa espécie de política do cotidiano, em que o sujeito se defronta com a solidão,

A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada. (Pela rua)

com o imobilismo,

Tua casa está ali. A janela
acesa no terceiro andar. As crianças
ainda não dormiram.
Terá o mundo de ser para eles
este logro? Não será
teu dever mudá-lo?

Apertas o botão da cigarra.
Amanhã ainda não será outro dia. (Voltas para casa)

e com a morte:

Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar. (Homem comum)

Uma poesia no nível do chão (“Onde está/ a poesia? indaga-se/ por toda a parte./ E a poesia/ vai à esquina comprar jornal”), impulsionada pela imaginação, decerto, mas abastecida na memória:

Eu devo ter ouvido aquela noite
um avião passar sobre a cidade
aberta como a palma da mão
entre palmeiras
e mangues
vazando no mar o sangue de seus rios (Uma fotografia aérea)

Recordação, também, de corpos femininos, numa vertente lírico-amorosa tecida com extrema delicadeza (leia-se, a propósito, a bela Cantiga para não morrer). Mas é num poema sintomaticamente intitulado Memória que localizamos uma das sementes daquela que, para muitos, é a obra-prima do poeta: o Poema sujo, de 1976. Ao evocar a infância, o poeta registra:

— um mar defunto que se acende na carne
como noutras vezes se acende o sabor
de uma fruta
ou a suja luz dos perfumes da vida
ah vida!

É da “suja luz” da vida que emana a seiva do Poema sujo, longo texto que, na edição original, espraia-se sem interrupção por 93 páginas. Vertiginoso depoimento de um artista prestando contas a si mesmo e a seu tempo, nele se concentra, em dimensão superlativa, o melhor da poesia de Gullar. Do ponto de vista formal, a inventividade metafórica num estágio torrencial, a variedade rítmica, a sábia mescla lexical entre os estilos elevado e vulgar, os cortes cinematográficos, a magia sonora das aliterações e das onomatopéias, as voluntárias inserções do “prosaico” como controle do sublimemente “poético”… Do ponto de vista semântico, a motivação inicial do poema foi o desejo do poeta, então no exílio em Buenos Aires, de criar um texto visceral e radical a partir da reconstituição de sua infância em São Luís e que atravessasse, com a explosiva ausência de “lógica” da poesia, toda a experiência de sua vida. O impacto do livro foi de tal natureza que levou um de nossos maiores críticos, Otto Maria Carpeaux, a declarar que a obra deveria chamar-se “Poema Nacional, porque encarna todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças do homem brasileiro”.

Quatro anos depois, já de retorno ao Brasil, Gullar publicou Na vertigem do dia. À atenuação do poema-denúncia não corresponde o incremento do poema-renúncia: o poeta prossegue atento às engrenagens sujas, banais e, todavia, epifânicas da máquina do mundo. No novo livro, porém, avulta a atenção à máquina, também impura, do próprio poema. É expressivo, qualitativa e quantitativamente, o conjunto de textos que refletem sobre o próprio ato criador (quase um terço do total). Dentre esses o admirável Traduzir-se, em que, com extrema economia verbal, Gullar revela o poeta cindido entre o compromisso com os homens seus pares ou com a verdade de si mesmo, necessariamente ímpar:

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Mas ao ano de 1980 não correspondeu apenas o lançamento de Na vertigem do dia — cujo título, aliás, parece estabelecer contraponto com Dentro da noite veloz, como se, finalmente, o poeta tivesse logrado romper a “treva” do exílio em que se encontrava. Na mesma época é publicada, com enorme sucesso, a primeira edição de sua obra poética reunida: Toda poesia. De certo modo, essa coletânea propiciou a consolidação de Gullar no cânone brasileiro, pois alguns de seus livros anteriores circularam com pequena tiragem. Demonstração inconteste desse sucesso é o fato de, em 2000, Toda poesia ter atingido a 11ª edição, marca considerável quando se levam em conta as dificuldades inerentes (em qualquer país do mundo) à divulgação e à comercialização da poesia. Além disso, numa pesquisa realizada junto a cerca de 100 intelectuais brasileiros em fins da década de 90, Gullar foi apontado como o mais importante poeta vivo do país, com mais de 70% das indicações.

Equivocaram-se os que julgavam ser Toda poesia o fecho, glorioso embora, da obra do autor. Depois de Na vertigem do dia, Gullar publicaria ainda Barulhos (1987) e Muitas vozes (1999), sem que sua máquina poética exibisse sinais de exaustão. Barulhos dialoga com a vertente metalingüística estampada no livro anterior:

Há quem pretenda
que seu poema seja
mármore
ou cristal — o meu
o queria pêssego
pêra
banana apodrecendo num prato
e se possível
numa varanda
onde pessoas trabalhem e falem
e donde se ouça
o barulho da rua. (Desastre)

Muitas vozes, o (até agora) derradeiro livro do poeta, foi ganhador de alguns dos principais prêmios literários do país. Além de abrigar uma persistente indagação sobre a morte, a obra revela o poeta com uma dicção cada vez mais despojada, na tensa e tênue fronteira entre a prosa e poesia, numa fala porosa à invasão de outras falas:

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós. (Não-coisa)

Seria injusto para com a importância de Ferreira Gullar limitarmo-nos a sinalizar, como fizemos, sua trajetória poética, embora seja esta a sua face mais consagrada, inclusive no plano internacional; basta lembrar que seus livros de poemas foram traduzidos e publicados na Alemanha, na Argentina, no Equador, nos Estados Unidos, na França, no México, no Peru e na Venezuela. Por você por mim foi traduzido para o vietnamita e distribuído entre os guerrilheiros. Mas, além do poeta, convivem em Gullar o ensaísta, o tradutor, o memorialista, o dramaturgo e o ficcionista. Trouxe para o português, em criativas e impecáveis traduções, Jarry, Rostand, La Fontaine e As mil e uma noites. Recordou os anos de chumbo do exílio na envolvente prosa memorialística de Rabo de foguete. Traçou amplos painéis da sociedade brasileira na dramaturgia de Vargas e Um rubi no umbigo. Explorou os domínios do fantástico nos contos de Cidades inventadas. E tem sido um lúcido e atuante crítico da arte brasileira e internacional nos numerosos ensaios em que estudou a crise das vanguardas e as manifestações do pós-moderno nos cenários da literatura e das artes plásticas, em obras como Cultura posta em questão, Vanguarda e subdesenvolvimento e Argumentação contra a morte da arte.

Para concluir, nada melhor do que transferir a palavra ao próprio Ferreira Gullar, que, em Uma luz do chão (1

E a história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas; nas ruas de subúrbios; nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina. Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz. […] Fazer o poema sempre foi, para mim, a tentativa de responder às indagações e perplexidades que a vida coloca. Não quis, ou não pude, buscar nele o píncaro serenamente erguido acima do drama humano. Antes, quis fazer dele a expressão desse drama, o ponto de ignição onde, se possível, alguma luz esplenderá: uma luz da terra, uma luz do chão — nossa. […] Tornou-se então um desafio para mim elaborar uma linguagem poética que expressasse a complexidade do real sem, no entanto, mergulhá-lo na atemporalidade, na a-historicidade, na velha visão metafísica. Noutras palavras: uma poesia que revelasse a universalidade latente no nosso dia, no nosso dia-a-dia, na nossa vida de marginais da história, como outros poetas em seu próprio momento e à sua maneira já o tinham feito. Uma poesia que fosse por isso — e em função da própria matéria com que trabalha — brasileira, latino-americana. Uma poesia que nos ajudasse a nos assumirmos a nós mesmos.

Nota do editor: Este texto é o estudo introdutório do volume Poesia completa & prosa, de Ferreira Gullar, que a editora Nova Aguilar lançará em breve, com organização de Antonio Carlos Secchin. Agradecemos à editora a autorização para publicá-lo.

Antonio Carlos Secchin

É poeta, ensaísta, professor emérito da UFRJ e membro da ABL. Em 2017 publicou Desdizer, poesia reunida, editada em Portugal no ano seguinte. Seu livro Percursos da poesia brasileira, do século XVIII ao XXI ganhou o prêmio da APCA para melhor livro de ensaios publicado no país em 2018.

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