Outro índio de casaca

“O rastro do jaguar”, de Murilo Carvalho, é quase bom, quase previsível, quase repetitivo, quase entediante
Murilo Carvalho, autor de “O rastro do Jaguar”
01/12/2009

Hoje não tem introdução, vamos direto, curioso leitor. O livro é extenso, 565 páginas, o livro é premiado, Prêmio Leya 2008, o autor é experiente, mas o livro é “quase”. Quase bom, quase repetitivo, quase entediante, quase uma aventura, quase previsível. Deve muito a Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, deve um pouco a Trevas no Eldorado, de Patrick Tierney, e outro pouco a Os sertões, de Euclides da Cunha. O enredo é simples, mas a tentativa de torná-lo complexo o transformou numa trama previsível. Tudo isso embalado pelo sentimentalismo sempre exagerado da música de Wagner. Isso é opinião, você não é obrigado a aceitar, tampouco concordar. Respeite e estamos conversados, educado leitor.

A trama é a seguinte: véspera do ano-novo de 1900, Pereira, velho jornalista de origem portuguesa, começa a desfiar suas memórias, que chegam da metade do século 19. Conta que saiu de Paris junto com Pierre. O jornalista/narrador pretende apresentar o Brasil que nessa época está em guerra com o Paraguai. Detalhe: o Brasil não está só nessa “dificílima” empreitada. Ajudarão no massacre a Argentina e o Uruguai.

O rastro do Jaguar é a história de Pierre, soldado francês de origem guarani, que vem ao Brasil em busca de suas raízes, tendo como pano de fundo a colonização dos índios.

O que me proponho a escrever não são minhas memórias, não é um romance; será, talvez, uma longa reportagem sobre a história de várias guerras, grandes e pequenas, que acompanhei ao longo desta vida de repórter. Mas principalmente sobre a viagem de um homem em busca de sua alma e de seu povo. Esse homem se chamou Pierre de Sanit’Hilaire, foi soldado, músico, poeta e mais tarde transformou-se no Jaguar, o Iauaretê das pradarias do Sul.

Pierre não é pouca coisa. Guarani, formou-se na Europa, músico erudito, tocou na estréia do Tannhäuser, dramalhão wagneriano, em Paris. Seria Pierre o nosso outro “índio de casaca” — apelido que Menotti del Picchia deu a Villa Lobos?

A busca de Pierre se desenvolve em quadros pintados com as tintas da melancolia, a leitura de cartas antigas vai deixando à mostra a quantidade incompleta de peças de um quebra-cabeças. Gravados nessas peças, as incursões das personagens e um capítulo da história do Brasil do século 19.

As veredas de Pierre e Pereira começam pelo sertão. É lá que eles percebem a resistência dos nômades botocudos. Esses aimorés não se rendem ao colonizador, não abandonam seus hábitos nômades, tais atitudes os encaminham a um fim deplorável.

Pierre, você logo perceberá isso, arguto leitor, encontrará sua gente e, a seguir, se ocupará com os mitos de sua gente. O mito que não exige dissociação entre ser e natureza, tudo se confunde, o eu e a natureza são uma coisa só. Nossa sociedade atual, massificadora, opera nessa mesma faixa, provocando a perda das individualidades. O indivíduo acompanha a vontade das massas. Bem, mas isso é assunto para outra hora.

Voltamos a seguir o rastro do Jaguar. Ao mergulhar nos mitos criadores de seu povo, Pierre tem atenção despertada pela existência de uma Terra Sem Males. E Pierre parte…

Não importava que o Norte os levasse ao coração do Império — nada limitaria a caminhada em busca da Terra Sem Males.

— Por quê? Porque assim nossos antepassados nos mandaram; porque assim continuaremos vivos, assim teremos a esperança. Até onde iremos? Não é possível saber o destino antes de começar a caminhar. Haverá, em algum lugar, um vale pequeno onde nossa gente poderá abrigar-se, silenciosa, aguardando seu futuro.

O rastro do Jaguar tem alguns pontos em comum com Trevas no Eldorado, entre eles o massacre dos índios. Na obra de Tierney percebemos as ações criminosas de cientistas e jornalistas. O rastro do Jaguar, por sua vez, traz a reportagem da Guerra do Paraguai.

Argentinos, brasileiros e uruguaios se uniram para combater as tropas de Solano Lopez, que contava em suas fileiras com um vasto contingente de guaranis paraguaios. Dizimados, é claro.

O rastro do Jaguar enquanto aventura, aventura de índios, lutas, selvas, radiografia da colonização, da nefasta contaminação religiosa/ideológica, tem lá seus méritos. Do seu caráter antropológico não convém tratar, Tristes trópicos ainda vale leituras e releituras infindáveis. No quesito reportagem, a obra de Murilo Carvalho fica bastante aquém de Os sertões, inclusive no que diz respeito à aventura, ao quase faroeste tupiniquim que ele e Euclides da Cunha escreveram. Desse modo, concluo que a floresta seja o terreno por onde Murilo de Carvalho melhor conduz sua narrativa e seus personagens. Embora seus personagens sejam de uma firmeza psicológica assustadora, buscar aproximações com a realidade não é tarefa das mais fáceis. Tem um quê daquelas construções idealizadas, o índio de José de Alencar e suas façanhas. Murilo tem resquícios de um romantismo que compromete. Vale ressaltar o olhar crítico do autor no que diz respeito à moral vigente no Brasil pós-colônia, onde negros e índios eram tratados como “bois de piranha”. Os Farrapos, General Canabarro enviou os lanceiros negros, armados com lanças e nada mais, a enfrentar as balas. Viraram nomes de ruas e avenidas os “anjos Caxias, Canabarro, Borges de Medeiros et caterva. Feito o desvio, voltemos ao rastro do Jaguar.

Ao ingressar no cenário urbano, os aspectos de gosto duvidoso se tornam mais evidentes. Na viagem da floresta para a Europa, Murilo esquece algumas coisas e acrescenta outras, entre elas a pieguice e os lugares-comuns. A história de amor de Pereira, o narrador, é constrangedora em seus exageros nostálgicos. Mas Murilo não deixa a pieguice de lado quando o cenário é a floresta, não embarque nessa canoa, ingênuo leitor. Atente para o trecho onde o narrador se refere à poesia de Gonçalves Dias.

Hoje, depois de tantos anos, percebo como ele estava errado; seu romantismo não era exagerado; as virtudes como honestidade, honra, coragem, lealdade, amor, que ele colocava romanticamente, nos personagens de seus poemas, existiam sim entre os índios brasileiros.

Isso posto, vale acrescentar mais um quase a O rastro do Jaguar: o quase épico. O quase épico que não enaltece feito algum, o quase épico a apresentar desastres e mais desastres culturais.

E de Wagner, a influência maior que se nota não vai além dos absurdos sentimentais.

O rastro do Jaguar
Murilo Carvalho
Leya
565 págs.
Murilo Carvalho
Jornalista, escritor e documentarista. Durante os anos de ditadura militar no Brasil, foi repórter do jornal Movimento. Trabalhou ainda no jornal Folha de S. Paulo e em revistas da Editora Abril. Nos últimos anos, dedicou-se à produção de documentários e programas de televisão sobre a realidade brasileira.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho