No início da década de 1990, o Brasil era um país um tanto diferente do qual conhecemos hoje em dia. Esqueça o discurso triunfalista de uma das principais economias do mundo; de ilha de estabilidade enquanto as nações outrora mais ricas sofrem com crises políticas e de liderança, sem grandes expectativas de melhora. Por outro lado, o Brasil dos primeiros anos da década de 1990, que acabara de empossar Fernando Collor de Mello, nunca deixava de surpreender pelo inusitado, tendo como ponto de vista uma janela no Rio de Janeiro; do mesmo modo que a História recente desse País, bem como seus personagens, ainda se destacava no plano das memórias. Esse diagnóstico não está elaborado em nenhum manual didático, desses que são distribuídos pelo governo. Em verdade, essa percepção do Brasil do início dos anos 1990 tem a ver com as impressões de um observador privilegiado do cotidiano da vida política no Brasil. Otto Lara Resende assinou, durante alguns meses, uma das colunas mais visitadas da imprensa brasileira. Coincidentemente, isso se deu na última fase de sua vida — e, portanto, infelizmente, ele não foi capaz de ver outras reviravoltas que estariam por acontecer por aqui. De todo modo, a seleta de crônicas Bom dia para nascer, com seleção e posfácio de Humberto Werneck, é uma bela forma de aproximação desse país do qual já nem lembramos mais e, tão importante quanto, de um dos textos mais bem elaborados da crônica brasileira.
De fato, temos no Brasil esse gênero sui generis que é a crônica. Talvez pela leveza de sua abordagem, existe uma espécie de consenso em torno da crítica especializada de que se trata de um gênero não somente menor, mas de pouca elaboração estilística. E é verdade que alguns casos podem comprovar esse cenário pouco sofisticado para as letras nacionais. No entanto, em Otto Lara Resende, temos a crônica no seu formato mais preciso, de um texto capaz de seduzir o leitor pela aparente frivolidade, mas que, olhando de perto, está mais relacionado a um tipo de conversa que não se tem mais. Mesmo agora, com o fenômeno das mídias sociais, existe a sensação de que se vive uma nova era da conversação. No entanto, esse falatório de maneira alguma atinge o nível de diálogo e de troca de experiências que uma crônica apresenta. É nesse ponto que os textos de Otto Lara Resende atingem um patamar acima da média do que se publica no gênero, ainda nos nossos dias. E é dessa forma que o leitor observa a maneira como o autor desenvolve os temas em suas colunas, articulando elementos fundamentais como correção textual, estilo e o comentário de um cardápio variado, ora com a agenda do noticiário, ora com os assuntos decorrentes da percepção do cronista, sem mencionar as recordações e as lembranças de Otto Lara Resende como protagonista ou coadjuvante.
Vínculo natural
Assim, Bom dia para nascer abre com a crônica que dá nome o livro. E o autor dá o seu cartão de visitas: no seu primeiro dia como colunista da Folha de S. Paulo, Otto Lara Resende escreve sobre os eventos relacionados à data de sua estréia, o primeiro de maio de 1991. Em algumas linhas — pois uma crônica, para o bem e para o mal, jamais será um ensaio longo —, ele consegue articular acontecimentos históricos tão distantes entre si, mas que, a partir do olhar do cronista, passam a ter um vínculo natural. Já no texto Cota zero, talvez para contradizer o argumento de quem afirma que os cronistas não tratam de temas sérios, o autor começa com o tema quente, a saber: a manifestação de neonazistas em São Paulo. Aqui, vale a pena uma breve digressão. Como bem sabe o leitor acostumado a receber textos em “correntes” de e-mail, existe um tom de indignação mais ou menos pronto quando se trata de assuntos polêmicos. E é exatamente por esse motivo que boa parte desses textos é atribuída a personalidades da mídia — a propósito, um famoso cronista contemporâneo já escreveu a respeito dos textos que assina sem saber. De volta a Otto Lara Resende, ele não viveu essa era da indignação coletiva que mobilizava militantes virtuais. De todo modo, e à sua maneira, o cronista observou que não é necessário ter grandes idéias para repudiar algo tão nefasto como o nazismo. Nas palavras de Otto Lara Resende:
Perguntar se você é a favor do neonazismo é assim como indagar se vê com simpatia o câncer de uma pessoa amada. Tipo da conversa que fica abaixo da cota zero. Está no rol do que não precisa ser dito. O açúcar é doce. A água é um precioso líquido. “Ça va sans dire”, diz o Conselheiro Acácio.
Outra veia bastante explorada é a do memorialista. E aqui é possível ver em ação o cronista atento com a importância dos acontecimentos políticos do seu tempo. Alguém pode dizer que é um jeito fácil de preencher uma coluna, uma vez que basta o autor resgatar eventos conforme a sua data de aniversário. A princípio, é exatamente isso que faz Otto Lara Resende quando escreve sobre o Ato Institucional nº 5, quando houve o “golpe dentro do golpe”, conforme avalia Elio Gaspari no livro A ditadura escancarada. Otto Lara Resende tampouco viveu o bastante para ver os livros de Gaspari editados, mas sabia da importância desse acontecimento para a vida brasileira. Daí o título da sua crônica: Convém não esquecer. O que mais chama a atenção nesse texto é a maneira escolhida pelo autor para abordar o tema. Em vez de recorrer às declarações e às cenas mais escolhidas, Otto Lara Resende oferece uma visão dos bastidores sobre o que aconteceu, investindo no impacto de uma imagem: a figura de um Carlos Lacerda, outrora o demolidor de presidentes, na véspera do AI 5, taciturno e consciente da derrota e temeroso por ser preso. Não por acaso, esse é um dos textos que Humberto Werneck salienta no seu posfácio.
O posfácio é importante porque, a essa altura, é natural considerar que essa capacidade de trocar de assunto com tamanha facilidade se dava tanto pela experiência de Otto Lara Resende quanto pelo fato de que o autor contar com um suporte por parte do jornal, com seus copidesques e redatores. No tocante a esse último argumento, Humberto Werneck informa que, como poucos de seus contemporâneos, o cronista dominava a língua portuguesa. Para além do posfácio, existe a comprovação dessa qualidade do texto de Otto Lara Resende na coletânea de cartas O Rio é tão longe, também editado pela Companhia das Letras, com introdução e notas de Werneck.
Conversa íntima
Com efeito, o leitor tem a oportunidade de acompanhar o cronista em formação. Mais do que isso: se a crônica, como gênero, é uma espécie de conversa franca sobre os temas do cotidiano, em O Rio é tão longe, o que se nota é a conversa íntima de Otto Lara Resende com um dos seus principais interlocutores e, por acaso, com um dos escritores mais importantes de sua geração — autor, entre outros, de O encontro marcado. Nessa conversa particular, nota-se as inquietações que motivavam a imaginação de Otto Lara Resende, que, em boa parte de sua vida, participou do grande monde político e cultural do Brasil, atuando fora do país como adido cultural, professor e jornalista. Como se lê, o autor tem um cuidado especial com essa correspondência. E isso fica evidente não somente pela maneira cuidadosa como ele se reporta a Fernando Sabino, mas, essencialmente, pelo estilo adotado pelo autor. Eis o dado chave: as cartas de O Rio é tão longe são importantes não porque revelam um escritor preocupado com a literatura brasileira (como quando diz que vai reler a obra do Guimarães Rosa ou sobre a entrevista concedida por Nabokov para a revista Time) ou com os rumos políticos do Brasil (ao comentar sobre o enfarte sofrido por João Goulart em 1964). O que as cartas mais revelam, obedecendo aqui e ali as idiossincrasias da mudança de humor de seu autor, é um missivista que escreve suas cartas como, muitos anos depois, escreveria suas crônicas, com estilo e capacidade de flanar pelos temas com naturalidade de um especialista e a leveza de um amigo íntimo. Assim, o leitor que esperar uma grande revelação talvez possa ficar frustrado: a grande mensagem do livro é a de que a correspondência de Otto Lara Resende estava no mesmo nível de seus escritos para jornal de muitos anos depois. Em tempo: não são textos iguais, mas que se assemelham e se aproximam pelo estilo de conversa informal.
Num momento em que a idéia de conversa está sendo revisitada pelos agentes evangelistas das mídias sociais, os livros Otto Lara Resende, longe de debater assuntos dessa natureza, talvez sirvam como exemplos de que é possível manter uma conversa, a um só tempo, agradável e civilizada. Indiretamente, o cronista ensina que não é preciso ser vulgar para se fazer compreensível, muito menos soar diletante para que seus textos permaneçam. Para a imprensa brasileira, é um alerta de que não é preciso ser polêmico ou sisudo para ser respeitado. Afinal, mesmo sem essa pretensão, os livros de Otto Lara Resende, lidos hoje, apresentam um painel original de alguns momentos interessantes da história do Brasil no século 20.
LEIA ENTREVISTA COM HUMBERTO WERNECK, ORGANIZADOR DE O RIO É TÃO LONGE E BOM DIA PARA NASCER.