O conversador

Entrevista com Humberto Werneck
Humberto Werneck, organizador de “O Rio é tão longe e Bom dia para nascer”
01/02/2012

Organizador dos recém-lançados O Rio é tão longe, volume que reúne a correspondência de Otto Lara a Fernando Sabino, e Bom dia para nascer, compilação de crônicas do escritor mineiro publicadas no jornal Folha de S. Paulo em 1991 e 1992, Humberto Werneck fala nesta entrevista sobre a vasta obra e interesse de OLR pelo “espetáculo da vida”, sobre a crônica sem data de validade e a qualidade literária do ficcionista, articulista, “correspondente aplicado” e “cronista iluminado” que foi Otto Lara.

Quanto à seleta O Rio é tão longe, é uma surpresa para muitos leitores o fato de que Otto Lara Resende escrevesse cartas com tamanha profusão. Como organizador, o senhor percebe uma espécie de continuidade entre as cartas e as crônicas, como se estas fossem conversas em aberto daquelas?
A palavra talvez não seja continuidade — embora certas crônicas de Otto, por seu tom de bate-papo, arte em que ele era inexcedível, nos dêem a impressão de serem cartas, cartas que tivessem sido escritas para cada um dos leitores. De maneira um tanto esquemática, vejo quatro escribas OLR. Um deles é o ficcionista, que quase sempre escreve sobre um universo escuro, abafado, não raro tenebroso, empapado de culpa católica, universo que reverbera as Minas Gerais interioranas em que Otto foi criado, nas décadas de 20 e 30. Desse porão — ele próprio usou a palavra — nasceram, por exemplo, o romance O braço direito, os contos de Boca do inferno e as duas novelas de A testemunha silenciosa. Vejo também o Otto articulista — e aqui estou pensando na magnífica coletânea póstuma de perfis jornalísticos O príncipe e o sabiá —, que é bem mais solar do que o ficcionista. Ainda mais iluminado e solto é o cronista Otto Lara Resende, esse de Bom dia para nascer, seleta das 508 pequenas (trinta linhas, no máximo) crônicas que ele escreveu na página 2 da Folha de S. Paulo em 1991 e 1992, os anos finais de sua vida. E há por fim, soltíssimo, não raro endiabrado, o Otto das cartas, que há quem considere o melhor dos Ottos. A ver. Dalton Trevisan, com quem se correspondeu durante décadas, talvez pudesse nos dizer. O carteador Otto está muito próximo do Otto artista do bate-papo. A primeira amostra de sua correspondência, O Rio é tão longe — Cartas a Fernando Sabino, é fascinante. E vem muito mais por aí, pois entre os escritores brasileiros talvez só Mário de Andrade foi um correspondente tão aplicado.

• Na sua avaliação, por meio das cartas, é possível estabelecer uma trilha da trajetória intelectual de Otto Lara, haja vista as referências e as notas explicativas no rodapé? Num sentido mais amplo, o senhor acredita que o leitor consegue compor um painel da vida literária daquele tempo?
Sem dúvida se pode compor um painel da vida literária a partir das cartas de Otto Lara Resende. Ele se interessava por tudo, e sua correspondência dá notícia também do que se passava na cena literária brasileira de seu tempo. Não faltam comentários ácidos e alfinetadas quase sempre bem aplicadas… Ele desanca, por exemplo, o crítico Wilson Martins, que em 1957 recebeu muito mal os sete contos de Boca do inferno. Esse livro, aliás, reunião de sete contos protagonizados por crianças nada angelicais, custou caríssimo a Otto Lara Resende. Wilson Martins não chegou a fazê-lo em sentido literal, mas houve quem borrocasse com cocô a fachada da casa de Otto. O próprio pai do escritor, católico à antiga, teria puxado as orelhas do filho por ter exposto também o lado menos amorável da criança e do adolescente. Quem volta hoje a esse esplêndido livro fica sem saber por que ele provocou reações tão primárias. Quanto à trajetória intelectual, as cartas de Otto a Fernando Sabino, em O Rio é tão longe, deixam transparecer a relação atormentada que ele tinha com a sua literatura. Já maduro, definiu-se um dia como um “escritor que foge de sua convocação”. Dono de muitos talentos, e solicitado o tempo todo por tantos deles, ele se dispersou. Nelson Rodrigues dizia que Otto era “um cano furado”, a esbanjar na conversa, no bate-papo, um talento verbal que poderia ser canalizado para a criação literária. Nelson chegou a sugerir, de brincadeira, claro, que se pusesse um taquígrafo nos calcanhares de Otto, para recolher suas pérolas verbais e depois vendê-las numa “Loja de Frases”. Outro amigo, o colunista político Carlos Castello Branco, afirmou que nenhum conversador de seu tempo esteve à altura do brilho de Otto. Não há dúvida de que o escritor mineiro foi mesmo um perdulário do espírito. E na consciência disso pode estar a explicação para a determinação quase neurótica com que ele, nos anos finais de sua vida, trabalhou na revisão de seu único romance, O braço direito, publicado em 1963. Era como se estivesse tentando recuperar o tempo esfarinhado em outras atividades, resgatando o sonho literário da sua juventude. Essa tarefa, como se sabe, o ocupou obsessivamente até a morte. Era um perfeccionista, e só muito raramente aceitou republicar seus contos e novelas, assim mesmo retrabalhados à exaustão. Otto queria “despiorar” — era o verbo que usava — o seu romance, e tantas fez que dele acabaram resultando dois romances. Aliás, cotejar as duas versões de O braço direito é trabalho que renderia um estudo interessantíssimo. Ler um e outro é receber uma aula de bem escrever, na medida em que observa o rigor com que ele foi afinando o foco da expressão. Otto “traiu” o quanto pôde o seu talento literário, mas viveu o tempo todo atormentado com isso. Num diagnóstico preciso, o poeta e psicanalista Hélio Pellegrino, amigo de vida inteira, dizia que Otto sofria de um “complexo de Jonas”: vivia saltando da barca e tentando nadar para longe dela, mas invariavelmente acabava engolido pela baleia da literatura. A leitura de suas cartas — a Fernando Sabino, para começar — deixa bem claro esse processo em que ele se debatia. Também no final da vida, Otto trabalhou em surdina num romance urbano cujo personagem talvez fosse o ex-patrão Roberto Marinho. Sua mulher, Helena, conta que chegou a ler uns nacos desse texto já extenso. Os originais, porém, não foram encontrados depois da morte do escritor, em dezembro de 1992. É possível que ele mesmo tenha destruído o romance. Nunca se saberá. O que se sabe é que Otto, nos anos 80, foi traumaticamente demitido do cargo que ocupava na direção da TV Globo. Consta que a iniciativa partiu de Roberto Irineu Marinho, filho do dono, e que um dos motivos seriam as hilariantes imitações que Otto fazia de Roberto Marinho.

• Em algumas cartas, nota-se a preocupação de Otto Lara em dar conta dos acontecimentos à sua volta para posicionar o amigo e interlocutor, Fernando Sabino. De que maneira, se é que isso é possível, o leitor pode ter acesso ao “sentimento do mundo” daquele período com a leitura dessas cartas?
Não podemos esquecer que Otto nunca foi um intelectual de gabinete. Foi um homem do mundo, interessado até o fim em tudo o que acontecia em torno, no chamado espetáculo da vida. Nem precisaria ter sido jornalista para ter se metido em cada canto e se relacionado com tanta e variada gente. Foi um grande leitor — dizia, com graça, que só não era inteiramente ignorante porque sofria de insônia… —, mas tinha também, plenamente vivido, um lado mundano, digamos assim. E suas cartas, obviamente, dão notícia de seus múltiplos interesses e curiosidades. Portanto vão se decepcionar os que, por desconhecimento das várias faces de Otto, esperarem dele cartas de escritor apenas. Trata-se de uma figura muito mais complexa, e muito rica. Ele era um observador atento e dá notícia de tudo, e não apenas do mundo literário. Sua correspondência para Sabino em 1964, por exemplo, permite recompor o clima do Brasil pós-golpe de 64. E quem lê as cartas que escreveu de Lisboa, onde vivia, em seguida à decretação do AI-5, tem um quadro bastante nítido do clima de apreensão e medo que esse recrudescimento da violência política desencadeou entre intelectuais e artistas. Basta ver a maneira elíptica e tortuosa com que ele fala de Vinicius de Moraes e de Hélio Pellegrino, duas vítimas da ditadura militar naquele momento.

• Uma sentença bastante reproduzida no meio literário (e mesmo fora dele) assinala que “o estilo é o homem”. Quais características da personalidade de Otto Lara Resende estão presentes nas cartas e nas crônicas?
Otto era conhecido, entre outros talentos, pelo fulgor e rapidez de sua inteligência, pelo brilho de suas sínteses verbais e pela graça com que contava histórias. São qualidades que transparecem tanto nas crônicas como na correspondência.

• No texto que acompanha o livro Bom dia para nascer, existe a menção à análise de Antonio Candido Conversa ao rés do chão. O senhor acredita que um cronista como Otto Lara Resende seria levado mais a sério (digo, no sentido da reputação dele como autor) pela academia se houvesse mais análises desse tipo? Mais: exatamente por ser essa conversa brejeira, não há uma contradição com essa alta expectativa em relação à “mensagem” da crônica?
A crônica, como lembrou Antonio Candido, certamente não é um gênero “maior”. Essa constatação, porém, não deveria autorizar o desprezo com que muitos intelectuais, e não só acadêmicos, tratam o gênero. Para dizer como o sambista: pra que tanta panca, doutor? Seria ótimo se em vez disso eles nos dessem, em que gênero fosse, alguma coisa bela e perene como, por exemplo, tantas crônicas de Rubem Braga, um grande escritor que, se não me engano, atravessou toda uma vida sem receber um grande prêmio literário.

• Embora tenha sido importante interlocutor de grandes nomes da literatura e da vida pública no Brasil, é exagero estipular a importância de Otto Lara Resende para a literatura brasileira no século 20. Nesse sentido, as crônicas seriam o seu melhor testamento literário?
Falei dos quatro Ottos, e acho difícil dizer qual deles deixou legado mais precioso. A verdade é que nenhum deles, até o momento, foi devidamente avaliado. Até por culpa dele mesmo, pois Otto, como disse Hélio Pellegrino, sofria de “bibliofobia” — tinha horror de se ver publicado em livro. Administrou mal a sua obra. E, como escreveu muito, deixou muita coisa por organizar para livro. Esse é um esforço que a Companhia das Letras topou encarar. O Otto ficcionista, por exemplo, está por ser consolidado. Será preciso estabelecer o texto de seus contos e novelas, e catar nos arquivos o que possa entrar em livro. Como disse, ele era um reescrevedor obsessivo. Uma historinha, para que se tenha uma idéia. Seu último livro publicado em vida foi O elo partido, coletânea de contos, nenhum deles inéditos, arrancada do autor depois de muita insistência e graças, em grande parte, ao empenho de Dalton Trevisan. Conta o editor Fernando Paixão que Otto só aceitou republicar aqueles contos depois de retrabalhá-los. Pois bem, quando recebi, em maio de 1992, o exemplar que ele me mandou, notei que havia emendas à mão no conto “Mater dolorosa”. Ou seja, o livro mal tinha saído da oficina e o Otto já estava reescrevendo. Tenho o maior respeito por esse tipo de artista. Há quem diga que o ficcionista deixou obra pequena. Mas que importa? Até que me provem o contrário, o que conta é a qualidade. Raul Pompeia deixou pouco mais que a obra-primíssima O ateneu. Murilo Rubião, apenas 33 contos. Raduan Nassar, o romance Lavoura arcaica, a novela Um copo de cólera e os poucos contos de Menina a caminho. Ninguém precisa escrever pelos cotovelos, não é? Se cada escritor brasileiro fizesse um livro de contos da estatura do Boca do inferno do Otto, ou simplesmente um conto como Gato gato gato, de O retrato na gaveta, teríamos a melhor literatura do mundo…

Humberto Werneck

• É inegável que, como cronista, Otto Lara Resende escreveu sobre personagens e personalidades políticas e culturais de seu tempo. Diante disso, além do talento do texto, o que permanece nas crônicas? Em outras palavras, o que Otto Lara Resende tem a dizer hoje?
Cronista diário, Otto escrevia para o dia seguinte, e sobre fatos e personagens da hora, e é natural que uma parte daquelas crônicas tenha perdido a validade para o leitor de hoje. Outra parte, porém, sobrevive, ainda quando trate de figuras já esquecidas, como o ex-ministro Antonio Magri. Para além da circunstância, já ultrapassada, muitos de seus textos continuam cintilando, e não apenas como documento histórico. Seguem valendo também pela “pegada” do cronista e por sua qualidade literária. O Otto que trata de política não é tão diferente assim do Machado de Assis que evoca o Velho Senado ou registra o sobe e desce dos gabinetes do Segundo Império.

• Na sua avaliação, é possível perceber nas crônicas de Otto Lara Resende eco de seus contemporâneos escritores, como Rubem Braga ou Fernando Sabino?
Se há influência de outros escritores nas crônicas do Otto, eu não percebo. O que ele faz é bem diferente do que fizeram os dois citados — Braga e Sabino.

• Qual é a importância dos textos de Otto Lara Resende na sua formação como cronista? Como surgiu o interesse?
Otto foi um cronista tardio, e quando estreou no gênero, no começo dos anos 90, eu já havia, bem ou mal, formado o meu estilo. O Otto cuja influência reconheço, e a quem muito devo, foi sobretudo o ficcionista de Boca do inferno, e de O retrato na gaveta, lidos e relidos a partir dos meus 18 anos. Mas é claro que sou devedor, também, do cronista da Folha de S. Paulo, mestre em dizer e sugerir muito num espaço mínimo. Quem está se iniciando hoje na literatura, e não me refiro apenas à crônica, tem muito a aprender também com a maestria do cronista Otto Lara Resende.

• Quais características são marcantes na crônica atual? Há diferenças entre a crônica de hoje e a praticada por Otto, Sabino, Braga e Mendes Campos?
O melhor da crônica genuína de hoje — estou falando de Luis Fernando Verissimo, de Ivan Angelo, de Joaquim Ferreira dos Santos, de Antonio Prata, de Luís Henrique Pellanda e de Ruy Castro, por exemplo — tem muito dos quatro mestres citados. O lirismo, o humor, a leveza, a reflexão em que a substância não abre mão da leveza. Usei o adjetivo “genuína” porque muito do que hoje se publica como sendo crônica me parece ser coisa bem diversa — artigo, ensaio, editorial. Nada contra esses escritos e esses gêneros, claro. Freqüentemente se trata de textos oportunos e bem escritos — mas crônica, não são. Porque vão no trilho da objetividade, entretanto a boa crônica, a meu ver, ainda que trate de coisas, acontecimentos e pessoas da atualidade, vai no sentido oposto, o da subjetividade.

LEIA RESENHA DE BOM DIA PARA NASCER E O RIO É TÃO LONGE.

Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho