A argentina Alejandra Pizarnik, que começava a aparecer em tradução há alguns anos de forma esparsa em sites, blogs e edições alternativas, ganha agora edições dignas de seu papel na poesia latino-americana, com a publicação de Árvore de Diana e Os trabalhos e as noites, originalmente de 1962 e 1965.
A poesia de Pizarnik flerta com o absoluto e seu contrário, ininterruptamente. Sua passagem por Paris nos anos 1960 e as amizades com figuras como Julio Cortázar e Octavio Paz foram muito importantes para moldar a estética particular dos dois livros publicados agora pela Relicário. O prefácio de Paz para a Árvore já antecipa o que se encontra aqui: imagens obsessivas, concisão extrema, “cristalização verbal por amálgama de insônia passional e lucidez meridiana em uma dissolução de realidade submetida às mais altas temperaturas”, primeira de tantas descrições ofertadas à guisa de verbete lexicográfico fantástico. Trata-se, mesmo, daquilo que Paz nos recomenda, a nós, leitores e críticos: uma prova.
Por trás da aparente obsessão de Pizarnik por fórmulas verbais curtas e simples em que se repetem em fluxo caleidoscópico alguns temas: barcos, paredes, noites, espelhos, lilases, temos o estranho eco de sua autoimposta morte prematura sedutoramente prefigurada em vários de seus poemas e projetado no passado da escrita num anacronismo contraditório, como se a lêssemos sempre já morta, mas estranhamente etérea e já quase imortal. O livro de César Aira sobre a poeta dedica-se em parte a nos forçar a dissociar dos poemas a imagem da pequena náufraga/menina sonâmbula, rechaçando o biografismo simplório, e disso nos lembram, por exemplo, Marília Garcia e Ana Martins Marques (que assinam os prefácios em cada um dos livros aqui resenhados) e Laura Erber, especialista em Pizarnik. Contudo, uma das imagens recorrentes na poesia da argentina me chama mais a atenção e causa certo assombro: a do espelho, do duplo, da cisão e estraçalhamento do eu que se perde em múltiplos espaços e tempos não contíguos.
Especialmente em Árvore de Diana, esse tema recorre como se a poeta prefigurasse sua morte constantemente, lançando-se ao longínquo ponto em que poderia, morta, olhar para si mesma escrevendo e possuir seu corpo em uma inspiração multisubjetiva. Mais impressionante é o modo como Pizarnik obtém esse efeito: com poemas curtos, de sintaxe clara e simples, com um vocabulário nada erudito, algo limitado em extensão, beirando o sublime em cada sintagma. Alguns exemplos podem ilustrar melhor.
Já no poema 1 de Árvore temos: “Eu dei o salto de mim à alba/ Eu deixei meu corpo junto à luz/ e cantei a tristeza do que nasce”. No 11, “agora/ nesta hora inocente/ eu e a que fui nos sentamos/ no umbral do meu olhar”. Essa dissociação de si e do corpo, da linguagem que se projeta e do poema que fica, tem algo de programático e performa sequências de planos cronoespaciais em que a vertigem do não-ser pode ser contemplada. Mais ainda, a consciência desse eu que se joga dos limiares (as madrugadas, as albas, as noites, os espelhos são constantes nos dois livros) produz duplos de duplos, que, em última instância, o que parece representar a própria poesia. No poema 13, decididamente programático, lemos: “explicar com palavras deste mundo/ que partiu de mim um barco levando-me”.
De maneira geral, o duplo assombra por suas impossibilidades radicais. Daí sua pervivência já tão antiga na literatura, de Plauto a Saramago, de Poe a Dostoievski. Entretanto, o despojamento da linguagem de Pizarnik produz o duplo com maior assombro: um duplo poeta-poesia que encarna a morte anunciada de cada um de nós e faz dela pura positividade, engajamento radical com a desconfiança na essência, como em “medo de ser duas/ a caminho do espelho”, no poema 14, ou, no 20, “disse que não sabe do medo da morte do amor/ disse que tem medo da morte do amor/ disse que o amor é morte é medo/ disse que a morte é medo é amor/ disse que não sabe”, em que a anáfora e a parataxe embaralham medos e planos de assombro, e a insubordinação da sintaxe parece ser da ordem do onírico, produzindo vertigem.
O duplo em Pizarnik não é binário: antes, é produtor de perspectivas inúmeras capazes de transcender o espaço simples do poema e da vida. No poema 23, aprendemos que “um espreitar a partir da sarjeta/ pode ser uma visão do mundo// a rebelião consiste em olhar uma rosa/ até pulverizar os olhos”.
A própria tradução de Davis Diniz, muito bem cuidada, e discutida em sua nota tradutória constante ao final dos dois volumes, nos oferece a possibilidade de, em disposição bilíngue, nos confrontarmos com a semelhança radical entre as duas línguas primas-irmãs, em seu violento espelhamento, que produz, via literalidade, a impressão de estarmos lendo sempre e nunca o mesmo texto. Excelente resultado, portanto, que visa sempre ao mesmo que a tradução jamais cessa de não alcançar.
Silêncio e noite
Se o espelho e a cisão do eu parecem dominar Árvore de Diana, o silêncio e a noite parecem circunscrever os limites do ser em Trabalhos e as noites. O silêncio materializa-se nas distâncias, como em O esquecimento: “na outra borda da noite/ o amor é possível”. Ou, antes, nos diz em Fronteiras inúteis: “um lugar/ não digo um espaço/ falo de/ que/ falo do que não é/ falo do que conheço/ não o tempo/ só todos os instantes/ não o amor/ não/ sim/ não// um lugar de ausência/ um fio de miserável união”.
Na sempre mencionada belíssima inversão do famoso título de Hesíodo, Os trabalhos e as noites processa algo como uma aniquilação da oposição dia/noite, reabrindo o espaço da noite como o do limiar da essência, como catábase tal qual a do herói do poema de Parmênides, levado por uma deusa para as profundezas a fim de conhecer o ser através do afastamento do nada (que precisa, necessariamente, ser confrontado). Pizarnik nos conduz pelo silêncio feito voz, pelos espaços assombrosos de sua poesia. Hesíodo e toda a poesia do alvorecer do Ocidente encontram aqui um ponto de inflexão que nos força a olhar para os poemas tão curtos e poderosos de Pizarnik com algo como um desejo de imersão na intensidade de buracos-negros poéticos em espiral plenipotente.