(Isto é uma resenha. Uma resenha sobre A filosofia da composição, de Edgar Allan Poe. Uma resenha sobre A filosofia da composição, do Poe, edição da 7Letras, 2008, 64 páginas. O livro em-questão-resenhado consiste em: prefácio de Pedro Süssekind; ensaio A filosofia da composição, de Poe, traduzido por Léa Viveiros de Castro; poema The raven, de Poe, em inglês; O corvo, traduzido por Fernando Pessoa; e O corvo, traduzido por Machado de Assis, respectivamente).
Por trás é melhor
Embora teoricamente as lições de Poe em sua A filosofia da composição não tenham sido escritas tendo em vista a análise de um texto nem a escrita de uma resenha, mas sim a escrita de um texto literário, façamos das suas palavras as nossas — comecemos por lá, por trás, pelo final, pela análise do final do livro: pela tradução de O corvo de Machado de Assis.
Conheci o poema do Poe por meio da tradução de Machado de Assis. E gostei bastante. Gostei muito exatamente pelo efeito que me causou. Lembro que fiquei extático e estático ao fim da minha leitura. Ou seja, tanto Poe, com seu poema, quanto Machado de Assis, com sua tradução do poema, conseguiram a proeza de me emocionar.
Segundo o próprio Poe n’A filosofia da composição, “não é preciso demonstrar que um poema só é um poema se ele conseguir nos afetar intensamente, elevando a alma”. Ponto para o poema, para Poe e para Machado de Assis — por sua tradução —, porque todos cumprem, creio eu, o objetivo primeiro: emocionar o leitor.
Tudo leva a crer que Machado de Assis, ao traduzir O corvo de Poe, objetivava maiormente reconstruir o poema de tal forma que o prazer da leitura permanecesse em sua transposição para a língua portuguesa. Assim, a tradução de Machado compromete — provavelmente de maneira consciente — a estrutura original do poema, e muito, em detrimento dessa “excitação ou elevação”, desse “grau de efeito realmente poético”, dessa “intensidade”, sobre os quais Poe discorre tanto.
Mas que “efeito imensamente importante que deriva da unidade de impressão” é esse? O que significa, para Poe, emocionar o leitor? E unidade de impressão, o que é?
De acordo com ele, esse “prazer que é, ao mesmo tempo, o mais intenso, o mais elevado e o mais puro é (…) encontrado na contemplação do belo”. E Beleza, para Poe, não é uma qualidade, mas um efeito (“aquela intensa e pura elevação da alma”). Assim, a emoção ao se ler um poema advém desse efeito conseguido por meios que melhor se adaptem à sua consecução. Esses meios utilizados devem necessariamente, se muito bem pensados e elaborados, resultar nessa unidade de impressão.
Uma vez que o inglês e o português são línguas bem distintas, “as combinações de eventos, ou de tom”, ou seja, os meios usados por Machado de Assis a fim de obter essa emoção no poema são um pouco diferentes das usadas por Poe. O trocaico, o octâmetro acatalético, o heptâmetro catalético e o tetrâmetro catalético são trocados por Machado de Assis por outros “aicos” “éticos” e “âmetros”. A estrofe de seis versos do poema original, em inglês, se transforma em estrofe de dez versos na tradução de Machado. O esquema inconstante de rimas do poema original se transforma num constante AABBCCDEDE na versão de Machado.
No entanto, o mais importante é que ao término da leitura da tradução de O corvo por Machado de Assis, ficamos assim meio enlevados, impressionados, excitados, certos de que acabamos de ler uma obra-prima.
O corvo do Fernando
Devo confessar que gosto muito mais da tradução de Machado do que a de Fernando Pessoa, e não tem nada de ufanista nessa escolha. A razão é aquela discutida antes: a capacidade de um poema, ou de uma obra literária qualquer, de emocionar o leitor.
É certo que a estrutura da tradução de Fernando Pessoa condiz muito mais com a sua versão original. Assim como The raven no original, todas as estrofes de O corvo de Pessoa possuem seis versos. Em Pessoa, há a repetição da mesma palavra no final do quarto e do quinto versos em todas as estrofes, o que acontece na versão de Poe. No entanto, Fernando Pessoa é menos empolgante que Machado de Assis. Fernando Pessoa, a meu ver, subestima em sua tradução aquele “enredo”, aquele “espaço”, o próprio “narrador” e a “protagonista” (Lenore) dos quais Poe tanto falou em sua A filosofia da composição.
Um detalhe que mais me incomoda na tradução de Pessoa é a ausência do nome da amada do “narrador” do poema/história. No poema de Poe, Lenore aparece oito vezes; na versão de Fernando Pessoa, nenhuma. Ou seja, o que é de suma importância para o entendimento do “enredo” do poema — a “personagem” Lenore — desaparece por completo na tradução do poeta português. O nome dela é substituído por pronomes e expressões obscuras. Restam assim, em Fernando Pessoa, apenas algumas sugestões da Lenore.
“A amada”, “essa cujo nome sabem as hostes celestiais”, “sem nome aqui”, “o nome dela”, “ela” (em itálico), “o nome da que não esqueces” são as expressões e termos que substituem, na tradução de Pessoa, o nome Lenore (Lenora, na tradução de Machado de Assis). Me escapa a razão desse artifício usado por ele. Freud deve explicar.
É óbvio que Poe conta uma história em versos. Usa de recursos líricos (versos, estrofes, ritmo, rimas, etc.) a fim de contar uma belíssima história de amor, de saudade e de sofrimento. Minha impressão final é a de que Machado de Assis entende melhor as razões e o objetivo de Poe (emocionar) e, em conseqüência, valoriza mais o conteúdo, a impressão a causar, o efeito, a construção da emoção. Fernando Pessoa, ao contrário, valoriza mais a estrutura do poema e, assim, constrói um poema esteticamente mais perfeito, mais semelhante ao original em sua forma, mas menos arrebatador.
Antepenúltima estrofe Ou clímax do poema The Raven
“Prophet! said I, “thing of evil — prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us — by that God we both adore —
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore —
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels named Lenore?”
Quoth the raven, “Nevermore”.
Auto-ajuda, por Edgar Allan Poe
Edgar Allan Poe inicia seu ensaio sobre seu próprio poema The raven discorrendo sobre a vantagem de se começar uma obra literária pelo final. Porém, o final criado por Poe não condiz exatamente com a última estrofe do poema (o epílogo, o desfecho), mas sim com o clímax, o seu ponto máximo, o momento mais dramático: a antepenúltima estrofe.
De acordo com ele, uma vez pronto o final, tudo o que virá a ser escrito deve contribuir para a idéia de conseqüência, de causalidade. O final é o objetivo a ser alcançado, mas como esse objetivo já foi alcançado resta agora criar os incidentes, as intrigas, o enredo que explicará de forma verossímil aquele ponto culminante da obra, aquele momento em que o leitor mais se enleva.
Outra coisa importantíssima para Poe é a originalidade. Os escritores jamais devem subestimar aspecto tão importante numa obra literária. Para ele, a originalidade não é fruto de um impulso, de uma intuição, mas de um trabalho árduo, e para alcançá-la é necessário mais negação do que invenção. Ou seja, não é preciso reinventar a roda, mas é possível encontrar novas funções para ela além daquela mais óbvia — rodar.
Em A filosofia da composição Poe nos faz crer que cada detalhe do seu poema foi pe- e repensado. Escrito o final e crente da importância da originalidade, Poe explica em seu ensaio outros aspectos escolhidos de antemão: a extensão do poema (não muito longo, de forma que seja possível lê-lo em apenas uma assentada); o efeito a causar (conseguido por aquela unidade de impressão, que por sua vez é facilitado pela brevidade do texto literário); o tom do poema (no caso de The raven, o da tristeza, a melancolia, algo que “leva, invariavelmente, a alma sensível às lágrimas”).
Mais à frente, com a continuação da leitura do ensaio de Poe, percebemos que insights aparentemente espontâneos lhe surgem em relação à escolha do que usar ou não usar em seu poema. Quais efeitos artísticos empregar? Desponta-lhe espontaneamente (será?), ao pensar na palavra que seria o seu refrão, o uso do o, a mais sonora vogal, e o r, a consoante mais aproveitável. Em conseqüência, também lhe surge “espontaneamente” a palavra nevermore.
Feitas as escolhas anteriores, o corvo lhe parece a ave mais adequada ao tom pretendido do poema, além do que é um bicho capaz de falar, de forma que poderia repetir, por algum motivo, a palavra nevermore em cada final de estrofe. Outra conclusão evidente a que Poe chegou é a escolha da Morte como temática principal e, a fim de ser mais poético, a morte de uma bela mulher. Depois, com a finalidade de juntar o corvo e o amante no mesmo local, ele conclui que um local fechado seria o mais apropriado para o efeito aspirado.
Assim, “um corvo, tendo aprendido por repetição as palavras ‘nunca mais’ (nevermore) e tendo escapado da custódia do seu dono, é levado à meia-noite, pela violência de uma tempestade, a entrar por uma janela onde uma luz ainda brilha — a janela do quarto de um estudante, debruçado sobre um livro, sonhando com a amante morta”. O resto da história do poema quase todos conhecem. Para os que não conhecem, leiam.
É mais do que certo que A filosofia da composição de Poe, além da sua função óbvia — explicar a elaboração da própria obra, o poema The raven –, serve como uma espécie de texto de auto-ajuda para os novos escritores. Em resumo, os seus preceitos gerais são algo como:
• Comece seu texto literário pelo final;
• Não subestime a importância da originalidade;
• Emocione o leitor;
• Tenha consciência do efeito pretendido com seu texto;
• Escolha a extensão, o tom, a linguagem, a temática do seu texto literário a partir do efeito aspirado;
• Tenha total domínio dos recursos artísticos existentes.
Muitos escritores, se lessem e aplicassem os preceitos de Poe, não escreveriam textos literários tão insossos. No entanto, embora essas prescrições gerais possam ser úteis, é preciso não se esquecer jamais que a originalidade é que caracteriza um escritor, o seu estilo, diferenciando um do outro, o gênio do medíocre. Por outro lado, talento mal moldado/usado é inútil. Outra: só há texto quando há leitor; assim, é a impressão dele a mais importante para legitimar o texto. Há leitura mais vã do que a de uma literatura que não emociona, não enleva, não incomoda, não proporciona reflexões — que de alguma forma não entretém?
Mas eis a questão
No entanto/enfim, eis que surge uma dúvida em relação ao ensaio A filosofia da composição, de Poe — será ele de fato fruto de uma necessidade (ou extravagância) de explicar o surgimento e, detalhe por detalhe, a minuciosa elaboração da própria obra? Sendo assim, esse texto serve como desmistificação da tão super(sub)estimada inspiração ou espontaneidade? Nada pode, na obra analisada pelo ensaio, ser atribuído a acidente ou intuição?
Ou, ao contrário e ironicamente, é um exercício de humor (extravagância…) do autor que, uma vez com sua obra escrita-revisada-trevisada-e-pronta, decide criar um texto (outro) explicitando o pseudo-árduo-trabalho necessário para criá-la? Será, de fato, o poema The raven fruto de uma pré-elaboração, de uma precisão e de uma rígida construção matemática?
Mas aí voltamos àquela grande questão que perpassa todas as épocas da humanidade, sempre curiosa por descobrir quem surgiu primeiro — o ovo ou galinha?