Os 30 anos de Lavoura arcaica

O que mudou na literatura brasileira depois do lançamento do livro de Raduan Nassar, em 1975? Em que momento histórico, cultural e político nasceu Lavoura arcaica?
Raduan Nassar abandonou a literaratura para criar galinhas.
01/01/2006

O que mudou na literatura brasileira depois do lançamento do livro de Raduan Nassar, em 1975? Em que momento histórico, cultural e político nasceu Lavoura arcaica? Três décadas depois de seu aparecimento, a novela ainda mantém inalterados sua força, seu lirismo e sua inventividade? Doze escritores comentam a importância da obra de Raduan Nassar que, em 2005, ganhou uma edição comemorativa pela Companhia das Letras.

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Sobre árabes

Lavoura arcaica é um caso à parte. Entre os romances de grande introspecção psicológica, foi dos poucos que li com verdadeiro prazer. Do ponto de vista estritamente estético, há muita coisa a ser dita. Mas vou destacar um outro aspecto: Lavoura é o primeiro romance brasileiro que dá a personagens árabes densidade humana e dimensão trágica.

É curioso que, durante a leitura, a gente vá percebendo que se trata de uma família de imigrantes libaneses bem aos poucos: cabras, alfazema, tâmaras, uvas, pão, nomes portugueses juntos de nomes árabes, um avô que diz “maktub”, um pai que faz um discurso moral por meio de uma parábola e um filho que o refuta com uma variante dessa mesma história.

É com esse fundo mediterrânico que se desenrola a tragédia familiar, precipitada pelo dilema universal do incesto. Esse é o detalhe: na verdade, estamos diante de um conflito universal, de um conflito entre homens. Muito longe dos “turcos” estereotipados que vendem miudezas em muitas literaturas. Raduan tem mais esse mérito. Devemos isso a ele.

Alberto Mussa é escritor, autor dos livros O trono da rainha Jinga, O enigma de Qaf e Elegbara. Mora no Rio de Janeiro (RJ).

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Nem de joelhos nem aos berros 

Todo mundo sabe que Raduan Nassar é um grande escritor. Bastaram dois livros para que isso se evidenciasse. Está mesmo nos manuais. Com Lavoura arcaica e Um copo de cólera, o autor construiu dois monumentos da literatura brasileira, num casamento raro de escrita visceral, plena de significados, com um trabalho de linguagem de um apuro digno do de um ourives. Depois cansou. Cansou da literatura e de sua pose — pose dela, literatura, e de grande parte dos que dela se aproximam. Raduan virou as costas para a literatura, desistiu da coisa, saiu de cena, e foi o que bastou para ser santificado em vida. Tanta gente faz isso, tantos mudam de profissão a todo momento, mas quando um escritor resolve fazer outra coisa na vida as pessoas são tocadas por um alvoroço. Não importa se é gesto de liberdade de dizer não a algo que não interessa mais ou suposto recuo diante do sucesso absoluto. Que livros teria escrito Raduan Nassar se tivesse continuado a produzir e publicar regularmente até hoje? Como seria tratado pela crítica e pelo público? Também isso não é importante. Efemérides? Nem santo nem demônio, Raduan Nassar é um escritor de raro talento e que deve ser lido como tal, nem de joelhos nem aos berros. É essa a melhor maneira de homenagear a sua literatura, ou simplesmente a literatura, com ou sem pose.

 Amilcar Bettega é escritor. Autor de Deixe o quarto como está e Os lados do círculo. Mora em Paris.

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Boa lembrança                                              

Conheci Raduan Nassar poucos meses depois da sua grande estréia nas letras nacionais. E ficamos amigos para sempre. Nestes últimos tempos, a geografia e as circunstâncias — mais estas do que aquela, talvez —, fizeram com que perdêssemos o contato. Imagino-o assoberbado em sua lavoura de arroz, no interior de São Paulo, enquanto, aqui no Rio de Janeiro, carrego as pedras de uma sobrevivência cada vez mais arcaica. Nesse interregno, porém, ele continuou — e continua — representando, para mim, o papel do amigão de boa lembrança e melhor presença.

Fomos apresentados por Wladir Nader, escritor, à época jornalista da Folha de S. Paulo, dono da editora Vertente e editor da revista Escrita, da qual eu era colaborador freqüente. Cerca de dois anos antes disso (em 1973), o Wladir me contou uma coisa curiosa. Ele havia escrito uma resenha arrasando o meu segundo romance, Os homens dos pés redondos, para um jornal de bairro paulistano. Mas o dono do jornal, um amigo dele, o aconselhara a não publicá-la. “Por quê?” — perguntou-lhe o Wladir. “Porque li o livro e acho a sua crítica injusta” — respondeu-lhe o dono do jornal. Era ninguém menos do que Raduan Nassar, de quem eu viria a me aproximar — quando ele já despontava para uma legítima fama —, graças à intermediação do mesmíssimo Wladir Nader.

Durante muito tempo, sempre que chegava a São Paulo ligava para ele. E logo era convidado para ir à sua casa. E estávamos freqüentemente na linha interurbana — com ou sem motivo para isso. Às vezes ele brincava, dizendo que estava ligando para me convidar para o café da manhã.

Isso depois que participamos de duas delegações brasileiras ao Salão do Livro de Paris, em 1987 e 1998. E lá andávamos sempre juntos — do café da manhã aos almoços e jantares os mais variados, sobretudo na casa dos Raillard — Alice, Georges, Henri. Tradutora do Raduan e conselheira da Gallimard, Alice Raillard era uma espécie de nossa “madrinha” francesa. E o seu filho Henri viria a ser nosso tradutor.

Bons tempos. Pelo menos em termos de convívio. De repente minhas idas a São Paulo rarearam e perdi o Raduan de vista. Mas fico feliz por estar vivo e ainda aqui, fazendo parte do coro que entoa louvores aos 30 anos de um dos mais belos textos da literatura brasileira. Espero que ainda pertençamos a este nosso mundo na comemoração do cinqüentenário do Lavoura arcaica, querido Raduan. Enquanto isso, que tal um café, amanhã de manhã?

Antônio Torres é escritor, autor dos livros Essa terra, Um táxi para Viena d’Áustria e O cachorro e o lobo, entre outros. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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O medo da invasão e da evasão

Raduan Nassar conjuga dois livros em um. Uma inversão: da costela de Eva (ou Ana, pivô da disputa entre pai e irmão em Lavoura arcaica), nasce Adão. Um copo de cólera começa com “A Chegada” e termina com “A Chegada”, e toda a ira do chacareiro com as formigas em sua plantação soa como se não tivesse existido. Foi um rompante? Um surto? Uma alucinação? O terror lançado em direção ao formigueiro é a projeção da ineficácia do personagem em dominar a própria ordem, e seu ódio envolve a mulher em uma briga corporal, verbal e de nervos. É o receio do elemento imprevisível que desarticula a família. Lavoura arcaica, seu primeiro livro, tem seu início marcado pela “Partida”. Gênesis e Apocalipse irmanados. Depois da chegada de Um copo de cólera, vem a partida de Lavoura arcaica. Se um oferece o medo da invasão, o segundo explora o medo da evasão, que os segredos de família, proibidos e ilícitos, possam se tornar públicos com a saída de André, jovem do meio rural arcaico que resolve abandonar sua numerosa família do interior para ir morar em uma outra cidade e acaba resgatado de volta. Ambos tematizam a disciplina. A autoridade que logo perde a espontaneidade quando posta à prova e se transforma em descalabro e autoritarismo. No fundo, as palavras não bastam para disfarçar a segurança. No fundo, a palavra é lodo e pântano, cal e deserto.

Raduan conceitua o desequilíbrio, o controle aparente que existe na estrutura familiar e que coagula quando se conhecem mais fundo as relações. A loucura é toda subjetiva em Lavoura arcaica, feita de insinuações, de pistas e de indiretas, tal o acesso de ódio de Um copo de cólera. A submissão dos filhos com o pai, o incesto entre irmãos, o castigo de uma fé menor do que a sedução, as mortes que não saram como nas tragédias gregas, que apenas prolongam o impasse da vida consumida e ainda inexplicada. O autor circula entre o tom bíblico e as dúvidas apócrifas, mandingas e superstições, crenças e promessas, ameaças e castigos, não há separação da fala do pensamento, mundo ancestral de perguntas feitas para não gerar respostas, mas enigmas. A linguagem poética atua para corromper o tempo da narrativa e bipartir a memória em dois atos: o que foi e o que se imaginou ter vivido. Os mesmos bichos: as moscas em Lavoura arcaica perderam as asas e se transformaram em formigas em Um copo de cólera.

Fabrício Carpinejar é poeta. Autor de Como no céu/Livro de visitas, entre outros. Mora em São Leopoldo (RS).

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Raduan Nassar por Osvalter

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Carga dramática

Os anos 70 tiveram bons livros de ficção brasileira. Os melhores contos de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan são desse período. Os romances de Antonio Callado e Ivan Angelo captaram o clima político. As experimentações de Osman Lins marcaram época. Mas Lavoura arcaica tem um lugar peculiar entre esses exemplos de literatura duradoura, talvez porque tenha características de todos eles. É uma prosa poética, de alta temperatura, que traduz a asfixia de uma sensibilidade individual diante da autoridade patriarcal — o que Luiz Fernando Carvalho traduziu muito bem para a linguagem pictórica e sonora do cinema. Poucos livros brasileiros têm essa carga dramática, essa proximidade densa com os limites. Não espanta que depois dele Raduan só tenha conseguido reescrever o também excelente Um copo de cólera e alguns contos. Ele disse praticamente tudo que tinha para dizer. E isso é muito mais raro do que se pensa.

Daniel Piza é colunista de O Estado de S.Paulo e autor, entre outros, de Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial). Mora em São Paulo (SP).

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Contexto para entender Raduan

Era o ano de 1975. Quem me pediu para ler o Raduan Nassar foi o João Antônio, a quem encontrei pela primeira vez no gabinete do diretor da Light, que fizera questão de que eu conhecesse aquele escritor paulista que morava no Rio.

Uma história puxa a outra. Daqui a pouco lhes digo quem era o diretor da conhecida empresa. Ou melhor: digo já. Era Rubem Fonseca, de quem eu tinha lido os contos de Os prisioneiros (1963), seu livro de estréia, A coleira do cão (1965) e Lúcia McCartney (1967), publicados por pequenas editoras, uma das quais a GRD, de Gumercindo Rocha Dórea, a quem devemos a revelação deste extraordinário escritor. A Artenova lançara seu primeiro romance O caso Morel (1973), mas ele se tornaria famoso por Feliz ano novo (1975), o livro que bateu todos os recordes da censura nos anos pós-64: ficou proibido por treze anos!

Os leitores de Rascunho saibam que nós três estávamos no gabinete do diretor da Light por causa da literatura! E isso pode ajudar a situar o contexto em que Lavoura arcaica foi lançado.

No Brasil, a mídia e o público leitor, quando um livro é proibido, tomam logo partido contra a proibição. É uma coisa bonita esta orquestra que atua em favor da liberdade. Depois do veto, quem não leu a obra — que é sempre a maioria, pois os leitores de livros no Brasil são uma ilha dentro da pequena ilha dos que lêem alguma coisa — vai ler. Ou não. Mas fica a favor do proibido.

Depois, deu-se então uma reviravolta, nascida de leituras equivocadas de State, classic and the organic elite: the formation of an entrepeneurial order in Brazil 1964-1965, tese de doutoramento de René Dreifus, defendida na Universidade de Glasgow. Publicada em português pela Vozes (1981), revelava que o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) congregava empresários, militares, técnicos e intelectuais que queriam derrubar o governo constitucional de João Goulart.

Logo correu pela mídia uma lista negra de conspiradores, pinçada com muitos equívocos e alguma maledicência. O financista carioca Afonso Almiro foi confundido com Almino Afonso, ex-ministro do Trabalho de Jango. Em Glasgow a banca nem notou a trapalhada que no Brasil causou um estrago danado. Não pela leitura do livro, mas pela leitura do que dele se escreveu na imprensa. Depois dizem que resenha não tem importância. Tem, sim. Escolheram cabeças para denunciar. Nélida Piñon, Alceu Amoroso Lima e Rubem Fonseca, entre outros, apareciam no livro como participantes de reuniões e trabalhos de redação de artigos e roteiros de cinejornais do Ipes, mas apenas os dois ficcionistas foram citados na imprensa, o que os obrigou a explicarem sua atuação no instituto.

Escrevo este artigo para dizer algo à margem das justas celebrações dos 30 anos do extraordinário romance deste excelente escritor que é Raduan Nassar. Quando a maioria estreava com contos, ele veio com um romance inovador. Não tive tempo de prestar a atenção que ele fazia por merecer. São também muito bem escritos os contos que reuniu em Menina a caminho. É também de fina estampa a trama de Um copo de cólera, novela excepcional.

Nas poucas vezes que o encontrei na vida, achei-o uma figura afável, receptiva, companhia agradável. Dos anos 70, que nos deu Lavoura arcaica, restaram inumeráveis autores e obras, tão ou mais importantes. Por que o silêncio sobre uns e o turíbulo cheio de incenso para outros? Já é tempo de um balanço.

A atenção a Lavoura arcaica, justa e merecida, é um bom começo. Sugiro que o Rascunho, que é plural, não caia na esparrela dos diversos complôs de silêncios e revise aqueles anos. Infelizmente, poucos estão fazendo este trabalho: aquela geração quase desapareceu da mídia, embora tenha escrito obras fundamentais. Alguns livros nunca mais foram reeditados.

Deonísio Da Silva é autor de Teresa, namorada de Jesus e Avante, soldados: para trás, entre outros. Mora em São Paulo (SP).

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Estarrecido

Estudante pobre em Juiz de Fora (MG), em 1979 entrei na Viviane Livraria e Papelaria, no calçadão da Rua Halfeld, que, no segundo andar, tinha algumas prateleiras de livros. Eu sempre ia lá xeretar, quase sempre saindo de mãos abanando… Um dia, no entanto, me deparei com um título estranhíssimo, Lavoura arcaica, de um autor de nome também estranho, Raduan Nassar. Abri o livro, disfarçadamente, porque os vendedores eram instruídos para não deixar que se fizesse isso, e me deparei com as primeiras palavras: “Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral,  etc”. Fiquei estarrecido, porque é como se o autor estivesse falando de mim… Escondi o exemplar atrás de outros na estante, consegui um dinheiro emprestado com amigos, voltei, comprei, enfiei-me no meu quarto de república e… nunca mais fui o mesmo…

Luiz Ruffato é escritor, autor de Mamma, son tanto felice, O mundo inimigo e Eles eram muitos cavalos, entre outros. Mora em São Paulo (SP).

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Escritor interrompido

Nenhum escritor brasileiro com tão poucas páginas conheceu o prestígio que Raduan Nassar granjeou com apenas duas novelas e cinco contos, aos quais foi agregada uma retumbante recusa da carreira literária. A obra de Raduan é composta, portanto, por seus três magros livros e pelo personagem que ele criou. E as duas instâncias, a obra escrita e a obra vivida, ocupam lugar de destaque em nossa cultura.

Espécie de eremita, ele se afastou da cidade de São Paulo e de seus valores cosmopolitas para afirmar um vínculo matinal com o campo, com o lugarejo interiorano e com os seus personagens. Assim, a recusa da literatura vem acompanhada pela recusa da cidade grande e seus signos. Diz Raduan numa entrevista: “sempre me mantive a distância de toda especulação teorizante ou programática, sobretudo por uma questão de assepsia, quer dizer, para preservar alguma individualidade da minha voz”. Na mesma entrevista, ele propõe um afastamento ainda maior entre o escritor e as questões teóricas: “com a folha de teoria a gente faz uma bolinha e manda longe com um piparote”. O personagem se aproxima assim da imagem de Cristo expulsando os vendilhões do templo, mas que prefere sufocar a discussão a manter um exercício literário desmistificador.

Numa tradição extremamente urbana e obcecada pelo papel intelectual do escritor, face mais visível na cultura paulista e em suas filiais ainda hoje, Raduan afirma a relação densa com o meio rural. Uma das suas declarações mais bombásticas foi proferida quando interrompeu sua obra após grande reconhecimento crítico, declaração que deve ser lida com a sua apimentada semente de deboche: “agora vou me dedicar à criação; não à criação literária, mas à criação de galinha” [cito de memória]. Nas últimas três décadas, ele se dedicou a esta e outras artes rurais, escrevendo apenas um conto novo (Mãozinhas de seda, 1996), reflexão sobre a impossibilidade de desmascarar os intelectuais e suas fatuidades. Ele poderia repetir um dos silogismos da amargura de Cioran, que também foi um filósofo da desistência: “O intelectual representa a maior desgraça, o fracasso culminante do homo sapiens”. Ao invés de apontar os impostores, Raduan prefere a sugestão irônica, num texto que acaba em rendição: “custou mas cheguei lá, sou finalmente um diplomata”. Ficam valendo a obra anterior e o silêncio que a sucedeu.

Também a sua obra é uma recusa do ideário modernizante que nutriu as ilusões do século 20. As suas duas novelas se complementam de forma perfeita. André, narrador de Lavoura arcaica, afasta-se da família interiorana e religiosa para experimentar o mundo, cuja função é curá-lo de um amor incestuoso, mas incontornável. No seu exílio no quarto de pensão da grande cidade, ele continua preso à casa paterna e à impossibilidade de herdá-la segundo os valores ancestrais. Ao ser resgatado pelo irmão mais velho, ele verbaliza seu drama, dando voltas analíticas em torno de seu incômodo por pertencer e não pertencer ao mundo familiar. Seu discurso é sinuoso, aparentado da poesia e dos versículos bíblicos, pois ele não nomeia claramente os sentimentos, que são turvos. No final, quando o mais velho está convencendo André a retornar, aquele diz: “seja simples no uso da palavra” — um pedido para que reconquiste a essência do mundo original. Mas ele volta como emissário da luxúria, desencadeando a inevitável tragédia.

André não se sente confortável na casa de seus familiares, por isso tenta fugir. Já o narrador de Um copo de cólera não se sente confortável na cidade, que ele conheceu num período de ditadura, e faz a volta para o campo, instalando-se em uma chácara, espécie de meio caminho entre a arcaica vida agrícola e a nova e insatisfatória existência urbana. O embate desta outra novela se dá entre o homem em processo de animalização, de retorno a um modelo rural, e a mulher frágil, representante da cidade. O narrador é uma espécie de “imenso feto” tentando achar o caminho para o útero de seu universo inaugural.

Fuga da casa na primeira novela. Tentativa de volta na segunda. A obra de Raduan Nassar ocupa este entre-espaço. Está na divisa do mundo rural e do urbano, da poesia e da prosa, do verbo e do silêncio, da vidência e do artesanato, num tributo ao poder encantador da palavra, ao seu valor poético-demiúrgico.

Para tentar entender o lugar de Raduan na literatura brasileira é preciso primeiro pensá-lo dentro da tradição paulista. Num estado em que os produtos intelectuais se sobrepõem aos literários, Raduan não descende de nenhuma das revoltas de vanguarda, de nenhum estilo urbano, dos muitos que o estado produziu. Ele me parece mais próximo de Monteiro Lobato, este ancestral poderoso, que sentiu o conflito dos dois chamados — o da roça e o do mundo. Cada um dando respostas diferentes, um combatendo até os últimos momentos, outro fazendo da rendição resistência, Lobato e Raduan são os mais densos produtos ficcionais produzidos em São Paulo no século 20.

Miguel Sanches Neto é escritor e crítico literário. Autor de Um amor anarquista e Chove sobre minha infância, entre outros. Mora em Ponta Grossa (PR).

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Pulsação de vida

Em 1988, quando conheci Raduan Nassar, cometi a imprudência de perguntar se ele ainda escrevia. Desde então, esse assunto sumiu de nossas conversas, embora ele tenha feito ótimas observações aos dois manuscritos que lhe pedi para ler. Mas a leitura não obriga ninguém a escrever, muito menos a publicar.

O silêncio de um escritor talentoso pode ser considerado um lance de extrema vaidade. No entanto, coragem e ousadia extrema é parar de escrever quando a seiva da experiência já secou. Foi o que fez Raduan Nassar, depois de ter publicado três livros — um romance, uma novela e uma coletânea de contos —, todos de alta qualidade estética.

A linguagem do escritor paulista, sobretudo a de Lavoura arcaica, explora ao máximo a sonoridade das palavras: uma poética autônoma em busca de sua própria significação, que é ao mesmo tempo pessoal e universal. Não se trata, é claro, de uma linguagem pautada num experimentalismo superficial ou num mero exercício de estilo. Raduan usa aliterações, rimas internas, paronomásias e outros recursos retóricos para fazer com as palavras uma festa de sons, mas sempre a partir de uma experiência. Ou, como ele mesmo costuma dizer, usando sua expressão preferida: uma pulsação de vida.

Essa experiência do narrador está na raiz de uma poética que, em Lavora arcaica, revela alguns laços de parentesco com a cultura árabe, diversificada e milenar, como são as culturas mediterrâneas. Mas o romance não deve ser enquadrado por categorias do tipo “literatura de imigrantes ou de imigração”, um rótulo que apenas confina esse ou aquele escritor em molduras terminológicas.

Numa entrevista ao jornal britânico The Guardian (14/12/05), Philip Roth declarou que não se considerava um escritor judeu-americano, e que detestava esse e outros rótulos. Segundo Roth, “literatura judaica e afro-americana são clichês jornalísticos… não dizem nada sobre seres humanos. A América é, em primeiro lugar e antes de tudo, minha língua. E os clichês sobre identidade nada têm a ver com o modo que uma pessoa experimenta de fato a vida”.

A referência à cultura mediterrânea em Lavoura arcaica é apenas um dos vetores que formam uma rede de relações poéticas, intertextuais e simbólicas que apontam para um drama familiar. No centro desse drama reside o conflito entre pai e filho, cujo desdobramento encontra sua veia trágica na relação passional e incestuosa entre os irmãos. É o motivo do incesto — o mais temível e terrível dos tabus — que dá ao romance uma dimensão trágica. Mas é a linguagem — o estilo, a cadência e o tom — e sua relação íntima com o tema que dá grandeza a uma obra que cresce e se enriquece a cada releitura.

A atitude maniaque de Raduan no trabalho com a linguagem lembra a de um Flaubert contemporâneo, radical e destemperado que busca a precisão e o efeito sonoro das palavras e do movimento rítmico da frase. Soma-se a isso uma certa visão niilista que norteia o pensamento de uma das personagens da novela Um copo de cólera.

Niilismo não rima com cinismo, muito menos com o conservadorismo político tão em voga nos dias de hoje. É antes uma atitude de descrença absoluta de qualquer coisa, inclusive do mérito. E também uma crítica a todo tipo de manipulação, gregarismo e troca de favores, temas que ele trata com uma ironia cortante no conto Mãozinhas de seda.

Quando nada se espera de um narrador niilista, basta ler Menina a caminho, que conta a incursão de uma criança no cotidiano de uma cidadezinha do interior paulista.

Menina a caminho da descoberta do mundo adulto, pontuado pela ameaça, humilhação e violência. Ou seja, este vasto mundo em que vivemos.

Milton Hatoum é autor dos romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte. Mora em São Paulo e assina uma coluna sobre literatura na revista EntreLivros.

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Um triunfo

Não hesito em dizer que Raduan Nassar é a figura mais extraordinária de nossa geração literária, um verdadeiro fenômeno, que ainda não foi completamente entendido. Em primeiro lugar, pela qualidade de sua obra. Lavoura arcaica — que já é um triunfo desde o título — é daqueles poucos livros que já nasceram clássicos. Mais que clássico, é um livro lendário (e o mesmo se pode dizer de Um copo de cólera). Mas Raduan também é extraordinário na sua relação com o ato de escrever. Ele quase não publica, mas não é preciso que o faça; o seu silêncio já é literatura, a sua simples presença entre nós já apela à imaginação. O que é o sonho de qualquer escritor.

Moacyr Scliar é escritor, autor de O centauro no jardim, A mulher que escreveu a Bíblia, Max e os felinos, Os leopardos de Kafka e Na noite do ventre, o diamante, entre outros. Mora em Porto Alegre (RS).

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Outros andares

Festejar é bom quando é em nome de muitos. Há momentos em que a constelação deve prevalecer sobre o astro. Não consigo enxergar a curta obra de Raduan Nassar isoladamente, só consigo enxergá-la agindo ao lado de determinadas obras e, é claro, coagindo outras (livros interessantes sempre assustam seus pares).

Vinte anos atrás, pouco antes de ler Raduan pela primeira vez, eu refletia muito sobre a noção de que a literatura e quem a produz são regidos por convenções maleáveis que, com o tempo, vão mudando. Igual ao que ocorre com os organismos vivos na natureza. Essa noção não é aristotélica, hegeliana e teleológica. Ela é darwinista. Não faz parte de sua configuração a idéia de que as pessoas, a história, a ciência e a arte caminhem para algo superior e perfeito, algo que em última instância seria a realização plena do cosmo e do homem. Se no objetivíssimo campo da física a própria definição do que seria o tempo vem variando muito ao longo do tempo, que dizer das convenções culturais e, por isso, subjetivas, que definem o que é bom e o que é ruim na literatura contemporânea?

No mundo e na consciência humana tudo muda, tudo é eterna transformação. Quando li Lavoura arcaica pela primeira vez, certos conflitos entre forma e fábula, presentes nesse livro, me jogaram de volta à questão da maleabilidade da malha literária. Durante a leitura senti o mesmo forte impacto da maioria de seus leitores: nessa narrativa o muito novo (a forma surpreendente, as imagens poéticas) e o muito antigo (a trama convencional, as personagens presas a hábitos medievais) se chocam de maneira formidável. Apesar de na época o desenlace do romance ter me parecido bastante insatisfatório (de lá pra cá continuo discordando do autor), penso que o atrito entre uma grande obra e um leitor-escritor é algo necessário e até desejável. É algo que atrapalha a falsa harmonia do cânone e confirma a maleabilidade do sistema literário.

Lavoura arcaica e Um copo de cólera, lido na seqüência, foram a lépida escada-rolante que me levou direto para o andar de cima, justamente o da literatura que, em vez de se deixar abocanhar e incorporar pela tradição, abocanhou e incorporou a tradição. A breve literatura de Raduan remodelou com vigor, em muitos leitores (inclusive em mim), a massa endurecida da tradição.

Não sei bem por quê, mas na minha estante afetiva Raduan está sempre ao lado de Osman Lins. Apesar de jamais ter voltado a ambos ao longo dos anos, sem a ajuda desses dois prosadores reconheço que não teria chegado aos andares de atmosfera mais rarefeita: Hilda Hilst, Uilcon Pereira e Campos de Carvalho.

Outros andares, outras festas na seqüência infinita de festas e andares do shopping center das Letras, local que outros chamam borgeanamente de universo.

Nelson de Oliveira é escritor e crítico literário. É autor de O oitavo dia da semana, Naquela época tínhamos um gato, Verdades provisórias e Subsolo infinito, entre outros. Vive em São Paulo (SP).

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Baliza e farol

Li Lavoura arcaica assim que foi publicada sua primeira edição. Impressionaram-me, em primeiro lugar, a potência e a riqueza das imagens, e o tônus daquele discurso torrencial, que se derramava página após página, mesclando a simbologia dos elementos básicos da vida rural e o acervo das parábolas bíblicas com um vocabulário organicista, quase naturalista, de gosto meio mórbido. Uma mistura que me lembrava, também por representar a irrupção do desejo carnal e profanador no meio de um universo construído com as tintas violentas do sagrado, a leitura a que me dedicava com mais entusiasmo naquele último ano de faculdade: a poesia e a prosa confessional de Baudelaire.

Também me causou impacto a cerrada fatura da novela, com os vários planos nos quais se modulam a voz do narrador e a voz das personagens, principalmente a voz do pai, que é glosada, imitada, incorporada e, ainda assim, a cada passo, combatida pelas explosões de ira e de incontinência da voz da personagem narradora. Bem como a econômica nota final, que desapareceria na edição revista, na qual o autor explicitava, com o cuidado de referir a página da ocorrência, os textos que incorporava ao seu discurso e as fontes mais remotas do desenho geral do livro.

Naquela época, o país vivia ainda sob a ditadura. A leitura dos textos contemporâneos tendia, por costume e por desejo, ao registro alegórico, em busca da denúncia da opressão. Nalguns textos, a leitura alegórica encontrava terreno propício. Noutros, especialmente nos que se colocavam sob a rubrica “realismo mágico”, a operação era mais difícil e nem sempre bem-sucedida (embora a própria denominação forçasse a clave da leitura realista). Como contraponto lógico do predomínio da “alegoríase”, era sensível certa desconfiança generalizada em relação a textos nos quais os dramas da consciência e das paixões aparecessem ostensivamente desvinculados da situação política pela qual o país passava.

Era talvez possível ver na figura opressiva do pai e no isolamento da família uma alegoria da situação do país, na qual mesmo o espaço privado era submetido a uma autoridade feroz, e a saída era a loucura ou o crime. Essa foi uma das leituras, ao menos nos anos que se seguiram ao lançamento da novela, e eu mesmo a vi exercida aqui e ali. Mas esse era um olhar pequeno, uma forma pouco interessante de reagir ao sentido “arcaico” do livro, isto é, à sua força específica, que vinha de se apresentar como um texto fora do tempo, no qual o que contava eram as paixões humanas, uma espécie de revivescência de mitos, medos e anseios terríveis, isto é, uma espécie de tragédia.

Desde 1975, quando o li duas vezes em seguida, não tinha mais voltado ao livro. Agora, para este depoimento, li-o pela terceira vez.

O impacto do poder da linguagem e da construção textual se renovou inteiramente. Mas já agora a impressão de potência e de beleza feroz se deixou em parte empanar pela evidenciação dos procedimentos narrativos. O desenvolvimento ternário das notações, em forma de amplificação, por exemplo, que se torna especialmente recursivo no último terço do livro, bem como o paralelismo previsível das frases ao longo de um mesmo parágrafo, que me haviam passado despercebidos ou tinham sido interpretados, em conjunto com a nota final do autor, como provocativos índices de um tipo de escrita ostensivamente literária, agora vieram para primeiro plano de uma forma nova para mim e seu efeito principal foi produzir algum cansaço e monotonia, sensações que estavam ausentes da memória da leitura.

Por outro lado, o tema do incesto, em si mesmo, e a forma como foi tratado, com o aparato mítico que a crítica depois foi ressaltando, tem agora menos impacto ou impacto muito diferente de quando o livro foi lançado, naquele momento ainda marcado pela censura e pelo puritanismo de fachada imposto pelos militares.

Quero com isso dizer que a leitura que fiz agora foi bem mais fria do que as duas primeiras, sob a pressão da novidade. E por certo muitos fatores, incluindo a fortuna crítica do autor e a construção da sua figura pública como ex-escritor militante, devem ter influído para criar a sensação que tentei reproduzir aqui.

São, porém, passados 30 anos entre uma leitura e outra. De modo que, quanto a mim, se esse foi todo o desgaste causado ao livro, tendo em vista os muitos textos que ele gerou, não creio que haverá outros mais, e que Lavoura arcaica continuará a ser baliza e farol para a escrita em prosa no Brasil.

Paulo Franchetti é escritor e crítico literário. É autor do livro de contos O sangue dos dias transparentes. Mora em Campinas (SP).

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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