Odes à poesia

Resenha do livro "Noite nula", de Carlos Felipe Moisés
Carlos Felipe Moisés, autor de “Noite nula”
01/05/2009

Um livro de poemas é sempre um desafio para o leitor. O verdadeiro poema contém mistérios que nos tocam, sem se nos revelar. É provocante, sentimental, filosófico; coloca-nos em xeque: decifra-me ou retorna, covarde, para seu vazio ancestral. É desafiador porque nos incita à inteligência, ao uso livre do pensar-sentir.

Noite nula, de Carlos Felipe Moisés, contém algumas relíquias que podem ser colocadas no baú de nossa literatura maior — aquela que independe dos jogos interesseiros do mundo material para se mostrar. Assim colocada, ela dormirá o sono profundo em que toda poesia cai, após o dilúvio criativo, após os rumores sociais que envolvem uma publicação.

Noite nula começa assim: um poema chamado Sidney Bechet. Não sei quem é o cara (não tenho obrigação de saber!!!), mas o poema o apresenta a mim.

Não se trata de uma apresentação banal, mas de um retrato feito com palavras. Na verdade, Sidney Bechet não é apenas um retrato. É um movimento desenhando outro. Uma música cantando outra. Um poeta contemplando outro. E isso, me emociona. Então repito o verso: I’m going away from here, antes de fechar o livro, ocultando em algum lugar de mim, a nostalgia que a beleza evoca.

O poema Noite nula tem formato de cordel, ao menos soa como tal. Mas paisagem e personagens são americanos. O poeta esculpe em nosso imaginário o imaginário de outra cultura. É uma forma lúdica de transmitir saber. Nesse sentido, o poema tem um papel fundamental na formação humana — ele brinca com coisa séria!

Noite é elemento fundamental em Noite nula. É mote para o autor esculpir formas em palavras ou palavras em formas, ou ainda, emoção em pedras (nesse caso, as pedras são palavras mortas, congeladas ou apenas, detritos de sentidos que se esgotaram, largados dentro de nós, ou fora, mas sempre, relegados à indiferença que a matéria se impõe quando não permeada de desejo). Pela noite passam vida, morte, poema, poeta, inconsciência, dessentidos… Mas antes que o eu lírico se afogue na escuridão, ele pincela a efemeridade e a  desimportância de acontecimentos e impressões.

A noite é o corpo da alma que é anulada pelo real, pela consciência de que as viagens experimentadas pelo poeta ficarão sob a máscara do homem.  Enquanto ele se conforma com a razão superficial da existência, ela nutre, dentro dele, a poesia que, em algum momento, nascerá.

Theda Bara é poema que soa como uma dança extremamente sensual, é um retrato do artista e da arte se mesclando e seduzindo o leitor, conduzindo-o à mudez do espanto, do êxtase.

O trecho que fecha o poema Carlos Gardel reflete, mais uma vez, a euforia do poeta, diante da arte. Ele não resiste à sedução e, persegue, através das palavras, a perfeição que contempla.

Piantao  piantao piantao:  ele canta e descanta
a angústia alada que lhe sobe à garganta,
lembrança rara, dor sem fim, sonho disperso,
El Morocho a cantar, como quem acabasse
de descobrir o segredo, ah! (e o desdenhasse)
o  vão segredo da origem do universo.

Pode-se dizer que Noite nula são odes à música.  É perfeitamente plausível, mas incompleto. O que temos, em todos os textos, são expressões que remetem ao processo criativo — tentativas de enfocar-lhe a pungência, de corporificar o inefável, que resultam em melodias, como neste trecho de Isadora Duncan:

Para Isadora aquele sonho não é nada.
Qualquer palco em Chicago, Nova Iorque,
Paris, a exígua superfície de uma mesa
num café em Berlim, a terra batida
em redor da Acrópole, em Atenas: todo
lugar é o mesmo lugar onde ela sonha.

Assim se apresentam os poemas de Carlos Felipe Moisés, encantadores. Como escreveu Manoel de Barros uma vez — sei que quem apresenta o artista é a arte que o artista apresenta — Carlos Felipe nos dá o prazer de sua arte.

Parafraseando um verso do fragmento abaixo, do poema Coltrane Ballads: You don’t know what happens with you when Poetry touch  you! It’s rare!

Tentei, tentei, continuo a tentar (
Say it, Over and over again)
mas já o primeiro dos dois agudos
estilhaça todas as vidraças enquanto
uma manada de rinocerontes pisoteia
meu peito vazio
o mundo inteiro range
e desaba
: só estrelas, um cardume
de estrelas a rolar em chamas
por minhas veias & não ouço
mais nada.
Outras vezes
a casa toda desmorona,
rodopia nos ares & no meio da noite
nula uma voz reboa e me diz:
You don’t know what Love is.

Noite nula
Carlos Felipe Moisés
Nankin
96 págs.
Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

Rascunho