O vestido de casamento

No vertiginoso “Vasto mar de sargaços”, Jean Rhys explora a paranóia e as dificuldades do choque entre culturas
Jean Rhys, autora de “Vasto mar de sargaços”
01/06/2013

Estamos num momento de crise. O jovem Edward Rochester acaba de ser vítima de um feitiço, articulado por sua esposa Antoinette e executado pela velha babá Christophine. O feitiço é uma poção do amor, um ato desesperado de Antoinette para reavivar a paixão de Rochester. O problema é que ninguém leva muito a sério a prática da obeah, mesmo nas Índias Ocidentais do século 19, onde estamos agora. Rochester percebe que o feitiço falhou, ou que talvez nunca tenha passado de folclore, e, na sua esperteza de cavalheiro inglês velando seus interesses, interioriza a magia como pretexto para intensificar seu ódio pela esposa e por tudo associado a ela.

Se esse pequeno trecho parece uma versão exótica de histórias vitorianas do século 19, é porque a trama de Vasto mar de sargaços, de Jean Rhys, é também uma reciclagem dilatada da trama de Jane Eyre, de Charlotte Brontë. Mais que do “dar voz” à “louca do sótão” — Antoinette/Bertha —, é dessas dilatações dos espaços entre as peripécias da trama original que emerge a força do romance.

Mas voltemos à crise. Rochester acorda com algo parecido com um chumaço de cabelo na boca, vomita, observa a esposa dormindo, percebe os restos de vinho com a poção de amor diluída, e parte para as ruínas de uma construção antiga conhecida por ser um local mágico para “se curar”.

O paradoxo da obeah é que ela parece existir somente de viés. A prática da magia é dispensada pelos personagens como mero folclore, mas eles hesitam em falar diretamente sobre ela; um artigo lido por Rochester reforça esse enviesamento, ao mesmo tempo em que produz o efeito de uma sátira perigosa. Ninguém viu, nem nós nunca vemos Christophine preparar a magia. Ela mesma diz não passar de um mito, mas a princípio se recusa a preparar a poção de amor para a cada vez mais desesperada Antoinette. Assim que entra na casa da babá, Antoinette desvia o olhar dos objetos e líquidos estranhos no chão.

O gatilho de Rhys
Numa carta para o seu editor, Jean Rhys revela que apesar de reconhecer o gênio das irmãs Brontë, fica “chocada com o retrato de lunática que [Charlotte Brontë] traça, as cenas crioulas erradas, e sobretudo a crueldade real do sr. Rochester. Afinal de contas, ele era um homem abastado e haveria maneiras mais gentis de dispor (ou esconder) uma mulher indesejada”. Essas informações estão na contra-capa da edição brasileira de Vasto mar de sargaços. O que nossa edição não traz é o poema Obeah nights, da própria Rhys, o gatilho que dispara a escrita do romance com o qual estava lutando há anos e que inaugura em sua poética o tom “selvagem”, caribenho, mágico, pós-colonial exemplificado no primeiro parágrafo desta resenha, e o qual será fundamental para Rhys lidar com a crueldade de Rochester em Jane Eyre.

Lendo Obeah nights depois de Vasto mar de sargaços, começa-se a ter a impressão de que o “clique” disparador de Rhys tem a ver com um esgarçamento, com uma miscroscopia à qual o amor entre o inglês e a crioula é submetido. O poema é escrito em tom de reminiscência e trata dos motivos que fizeram Rochester trancar Bertha no sótão. O personagem até chegou a tentar verdadeiramente amar sua esposa, mas só até ela começar a “ficar louca” e a odiá-lo. Ele se vangloria de, na noite crítica, ter “domesticado uma garota selvagem”, tê-la intoxicado de luxúria. Mas “noites sempre chegam ao fim”, e ele era “são demais”, para encarar a loucura.

Rhys revela também que sempre soube que a história de Rochester e Antoinette nunca poderia ser dita de modo “direto”. Desde o começo, é a partir da voz, dos olhos, do vocabulário e da raiva de Rochester que Rhys precisa começar a contar a história de Antoinette, uma expatriada, uma não pertencente, como a própria Rhys.

Porém, o romance começa pelos olhos de uma criança assistindo a uma mudança drástica e incompreensível no seu modo de vida: Vasto mar de sargaços tem início sob o pano de fundo do Ato de Emancipação que abole a escravidão nas Antilhas. A pequena Antoinette, filha de donos de escravos acostumados com o alto posto oriundo deste dispositivo colonial, passa a primeira parte da história sob a influência dessa cisão de poderes, representada pela progressiva loucura da mãe e a crescente violência e zombaria dos empregados. A menina que, sabemos, também ficará louca, encontra refúgio, como toda criança, na segurança de eleger locais específico como pequenos oásis: “Tenho a árvore da vida no jardim e o muro verde de musgo. A barreira dos rochedos e as montanhas altas. E a barreira do mar. Estou segura. Estou a salvo dos estrangeiros”. Ilhas de segurança num país insular, o refúgio de Antoinette é uma paisagem natural que terá um sentido muito mais sombrio para o estrangeiro.

Mas um refúgio a que teremos pouco acesso. Pois a parte dois, que constitui a maior parte do romance, é narrada anos depois pelo jovem Rochester, que chega às Índias Ocidentais para conhecer a deslumbrante crioula que lhe fora prometida como esposa, cuja herança assegurará seu futuro (e sua ruína).

Narrativa da paranóia
O mundo pelos olhos de Rochester nas Índias Ocidentais é aquele do desconforto resultante do embaçamento das arestas culturais que sustentam a sociedade vitoriana — a verdadeira sociedade. Exemplos disso abundam em cada frase da narração, que é essencialmente a narrativa vertiginosa da paranóia. Rochester compõe a máscara da imperturbabilidade, do estoicismo, mas não demora para surgirem fofocas e intrigas sobre a loucura no sangue da família de sua esposa. (As fofocas são entreouvidas, como se vindas do som do vento nas copas das árvores, e nele escuta-se os sussurros de toda uma terra que conspira para expulsar o invasor, um paranóico tentando resistir à convicção de que até a natureza, sempre idílica e inocente, parece conspirar contra ele). O ódio de Rochester progride junto com a trama, e esse sentimento progressivo é o signo que dá o sentido de Vasto mar de sargaços como “prequel” de Jane Eyre.

Aqui a força do romance começa a se mostrar. Pois, como agora estamos sob a mediação de Rochester, toda a vida subjetiva e confusa de Antoinette, principalmente a memória da loucura da mãe, só existe como um segredo bem guardado com o leitor. E é por causa desse conhecimento privilegiado que é impossível não sentir empatia por Rochester, que apesar de tentar domar Antoinette através do sexo e da nova identidade — ele começa a chamá-la de Bertha —, mostra-se também alguém cujo sentido de poder e identidade foi pego no meio do tiroteio semântico intercontinental.

O leitor sente constantemente que Rhys, que se mudou ela própria para a Inglaterra aos dezesseis anos, teve sua indignação com Rochester constrangida, no processo de escrita, por uma espécie de consciência das forças históricas invisíveis em ação sobre os indivíduos — uma consciência que assume forma literária, lindamente assim descrita por Henry James: “Universalmente, as relações não param em nenhum lugar, e o extraordinário problema do artista é senão desenhar eternamente, por uma geometria própria, o círculo dentro do qual elas devem assim parecer”.

A duplicidade de vozes em Vasto mar de sargaços permite Rhys trabalhar com dois modelos de visão de mundo que sentem a princípio os mesmos sentimentos um pelo outro, porém cada uma reportando-se a duas estruturas sociais distintas. Há outras duplicidades no romance: duas casas incendiadas, duas mulheres “loucas”, dois continentes. Mas o que interessa a Rhys são realmente os sentimentos de amor/ódio, ou a rápida metástase que transforma um sentimento no outro. Rhys sabe que amor nunca é simples e puramente amor, e o mesmo vale para o ódio, e através deles emerge o caráter diga-se epistemológico de Rhys: segundo Obeah nights, foi o ódio de Rochester, em Jane Eyre, o ponto de onde Rhys partiu para tentar conhecer sua vida “aventureira” nas Índias Ocidentais. O Mar de Sargaços, famoso por afundar as mais corajosas navegações, não é mencionado no romance que o tem como título, mas aparece em Obeah nights

Perhaps Love would have smiled then
Shown us the way
Across that sea. They say it’s strewn with wrecks
And weed-infested
Few dare it, fewer still escape
But we, led by smiling Love
We could have sailed
Reached a safe harbour
Found a sweet, brief heaven
Lived our short lives*

como símbolo do que o amor poderia atravessar caso os dois se deixassem levar pela estabilidade vitoriana de seu significado — caso não estivesse sob o signo da obeah.

A saída possível
Mas no fim é a vida refratada e enviesada de Antoinette/Bertha que está realmente em jogo para Rhys. Na curta terceira parte do romance, Rochester sai de cena quando adentramos novamente na consciência de Antoinette, agora numa Inglaterra em cuja existência ela ainda não acredita.

O que Brontë narra com sua “objetividade” vitoriana, Rhys narra com ironia modernista: trancada no sótão, a narração da vida de Antoinette é gerada do imaginário daquelas lembranças de infância até então protegidas conosco. A feiúra objetiva da loucura que escandaliza a todos em Jane Eyre é representada em Vasto mar de sargaços sustentada em suas próprias raízes: seus monólogos, suas confusões mentais, sua consciência do destino, e a única memória feliz de infância — um vestido vermelho-fogo que Antoinette usou no último encontro com o garoto que a amava — é o que fornece as ferramentas e a pirotecnia para seu ato final. É como se Rhys tivesse pensado: trancafiada fisicamente em Jane Eyre, vou libertá-la fazendo-a sonhar livremente seu pesadelo.

Mas que pesadelo é esse? O que significa? Ao longo do romance, toda a sua loucura era, externamente, nada além da insegurança quanto à sinceridade do amor de Rochester. Tudo o que ela esperava era que ele a trouxesse paz, que a acordasse de seu estupor. Que estupor? Como sua mãe, ela percebe que o cavalheiro inglês com quem se casou não estava interessado nem podia compreender a fissura cultural em que Antoinette caminhava. A loucura é o ataque ao status de permanência do pesadelo. Não pertencendo a nenhuma posição social reconhecível e desconfiando Inglaterra, promessa eterna que “ninguém nunca viu”; tendo sofrindo violência de todos os lados — sua amiga de infância, pobre e negra, joga uma pedra nela; o casarão da família é incendiado por ex-escravos; o marido a odeia; sua mãe está louca demais para sequer reconhecer a filha —, realidade e pesadelo tornam-se a única face de uma moeda que teima sempre em mostrar o mesmo lado, não importa o quanto a giremos.

O pesadelo, o estupor, a anestesia de onde explode a violência evocam outra relação do modernismo com a História: “A História é um pesadelo do qual estou tentando acordar”, como Joyce faz Stephen lamentar, não sem uma incongruente nota trágica. A incongruência, a vergonha externa de proferir uma frase dessas como se a vida fosse uma peça — é isso o que mais aborrece Rochester nas loucuras inconvenientes de Antoinette. O que Antoinette deseja — o que Rhys articula e coloca em jogo — é o desejo de escapar de uma culpabilidade que a antecede, originada por uma posição social que informa sua existência aos outros. Uma existência da qual a única saída disponível é o trágico.

Mas Jean Rhys viveu bastante. Morreu com oitenta e sete anos. A fama advinda do sucesso de Vasto mar de sargaços, em 1966 (até então todos os seus livros eram recebidos com indiferença) “chegou tarde demais”. Como Rochester, de quem Rhys tem tanto ou mais quanto de Antoinette, a autora era “sã demais” para ensaiar uma loucura, e recebia a tristeza de sua eterna condição de estrangeira com uma boa aparência e um sorriso reconhecivelmente bonito.

O poeta caribenho Derek Walcott, Nobel de 1992, escreve um poema com o título Jean Rhys. Nele há a encenação de um casamento, o último. Vemos o destino reservado a Rhys, à escritora Rhys, agora vestida com um antigo símbolo da felicidade, cujo significado acaba desbotando nas longas travessias entre Caribe e Inglaterra:

where one night
a child stares at the windless candles flame
from the corner of a lion-footed couch
at the erect white light,
her right hand married to Jane Eyre,
foreseeing that her own white wedding dress
will be white paper.**

NOTA
Aqui estão as traduções — feitas pelo autor da resenha — dos dois trechos dos poemas citados.

*Talvez o Amor teria então sorrido
Nos mostrado o caminho
Através daquele mar. Dizem que é repleto de naufrágios
E infestado de algas
Poucos ousam, menos ainda escapam
Mas nós, levados pelo Amor sorridente
Poderíamos ter navegado
Alcançado porto seguro
Encontrado um doce, breve paraíso
Vivido nossas curtas vidas.

** Onde uma noite
uma criança encara a chama imóvel das velas
de um canto de um sofá pata-de-leão
na luz branca ereta
sua mão direita casada com Jane Eyre
prevendo que seu alvo vestido de casamento
será um papel branco.

Vasto mar de sargaços
Jean Rhys
Trad.: Lea Viveiros de Castro
Rocco
192 págs.
Jean Rhys
Nascida no Caribe, em 1890, e radicada na Inglaterra desde os 17 anos, Rhys foi uma das primeiras escritoras a falar da questão feminina e da colonização em sua obra, precursora das chamadas narrativas pós-coloniais. Publicou a coletânea de contos The left bank, o romance Quartet e Vasto mar de sargaços.
Leonardo Petersen Lamha

Tem 25 anos e é pós-graduando em Literatura na PUC-Rio. Escreve ocasionalmente em http://llamha.blogspot.com.

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