O registro provocado do tempo

Original e provocativa, Jennifer Egan enuncia os problemas de nosso tempo e os dramas contemporâneos
Jennifer Egan, autora de “O torreão” e “A visita cruel do tempo”
01/09/2012

Time is on my side (yes it is)
You’re searching for good times,
but just wait and see
You’ll come running back…
The Rolling Stones

Jennifer Egan é uma escritora de seu tempo. Esta é uma das conclusões possíveis que o leitor alcança após ler seus dois romances lançados no Brasil pela Intrínseca: A visita cruel do tempo e O torreão.A afirmação pode soar óbvia e lugar-comum com base no fato de que a autora esteve presente na última Festa Literária de Paraty como uma das principais estrelas do evento, chegando mesmo a dividir a mesa com Ian McEwan, um dos principais romancistas de língua inglesa da contemporaneidade. A este fato, ademais, poderia ser acrescido ainda o dado, importante, de que Egan foi premiada com o Pulitzer em 2011 e considerada pela revista Timecomo uma das pessoas mais influentes daquele ano. Tais considerações, ainda que pertinentes na sociedade da informação, parecem ser efetivamente razoáveis para a constatação que abre esse texto. Todavia, é com base na leitura das obras da autora que os indícios se transformam em mais do que mera impressão. Para o bem e para o mal, como sugere o título de um de seus livros, é o impacto do tempo presente que faz da literatura de Egan um retrato (fragmentado) do que ao menos parte de nossa sociedade é hoje em dia. Vejamos por quê.

Na galeria de personagens construídos por Egan, existe uma espécie de denominador comum: o desajuste. Seja ao formular descrições, seja ao apresentar gestos e atitudes, a narrativa evidencia que não há algo no lugar. Ou, por outra, que existe algo de muito errado com essas pessoas que, aparentemente comuns, urbanas, sofisticadas, informadas, cool, são incapazes de se mover sem exibir sua insegurança, seus temores, suas fobias, suas ansiedades e suas paranóias. Afinal, é assim que travamos contato com Sasha, logo nas primeiras linhas de A visita cruel do tempo.Sasha não consegue se controlar e, ato contínuo, cai na tentação e no impulso cleptomaníaco mais uma vez. Como que numa montagem cinematográfica, numa espécie de montagem paralela, a narrativa passa para o divã do analista, onde este tenta, sem sucesso, encontrar um jeito de dar conta dessa tensão. Todavia, demasiadamente humana que é, Sasha não resiste e sucumbe à tentação que levará à vergonha e à sensação de fracasso. De forma semelhante, ainda que menos dramática, em O torreão, somos apresentados a Danny, que, quando garoto, tinha tudo para dar certo. Aparentemente, acreditou demais no que diziam a seu respeito e, logo no início do romance, está à procura de um castelo onde a história do livro é ambientada. Esse deslocamento inicial, também motivado por uma ruína particular, é “metaforizado”, digamos assim, na tentativa ineficaz de Danny permanecer com os pés firmes no solo escorregadio. E sua fraqueza de espírito é coroada com a incapacidade de se concentrar em algo que não seja seu telefone celular, a ponto de levar consigo uma antena parabólica, outro símbolo de sua inadequação.

O denominador comum entre as personagens tem muito a ver com certa agenda da autora, assunto do qual trataremos mais adiante, mas se manifesta em elementos mais identificáveis, como o aspecto formal de seus textos. Escrevi “formal”, mas o melhor seria sublinhar “informal”. É porque seus textos extravasam uma naturalidade, um eco, que não necessariamente está vinculado aos personagens. Com efeito, pode-se considerar mérito por parte da autora ao conceber uma voz tão convincente a ponto de desenvolver elucubrações sobre os personagens que vivenciam a narrativa de Egan. Os já citados Sasha e Danny, nesse sentido, são, mais do que demasiadamente humanos, absolutamente falíveis e, por isso, críveis de uma forma como poucos protagonistas conseguem ser. Por esse motivo, nós nos juntamos a eles em suas desventuras, exatamente porque sua falência de ordem moral — que alguém poderá chamar de fracasso — é contagiante e consoladora. Em outras palavras, aprendemos que não somos apenas nós os capazes de cair.

Diante desse contexto, uma pergunta óbvia seria mais ou menos na linha “como é que chegamos até aqui?”, ou, mais precisa: “como é que viramos isso?”. Na perspectiva imaginária das obras de Jennifer Egan, o que se lê é que esse constrangimento foi provocado pela incapacidade de lidar com os medos de forma adulta, sem buscar se esquivar de seus temores mais intensos. Não é por acaso que tanto Sasha quanto Danny, nas primeiras páginas de A visita cruel do tempo e de O torreão, sucumbe porque não conseguem enfrentar suas desonras particulares. No caso de Sasha, isso fica evidente não na revelação de sua cleptomania, mas no fato de que ela reluta em dizer o nome do mal que é capaz de praticar como, conseqüentemente, teme dizer a seu terapeuta o que de fato sentiu, num poço sem fundo de auto-engano e frustração. Já no caso de Danny, é o passado que teima em não deixá-lo em paz, quer para lembrá-lo daquilo que um dia poderia ter sido, quer para reafirmar o amargor de seu tempo presente, isolado como um pária, como sugere o pequeno trecho a seguir: “Merda, Danny sofria ao se lembrar dessas coisas, o cheiro do ensopado de atum da mãe”.

Como se nota, a matéria-prima de Jennifer Egan não poderia ser mais preciosa, pensando no escritor conforme a lógica do vampiro, aquele que é capaz de absorver, apenas pelo detalhe, o que há de errado e transformar isso numa narrativa com começo, meio e fim — e estilo. Com esse material em mãos, no entanto, sua estratégia foi outra. Optou, a partir da lógica da narrativa contemporânea, em uma literatura excessivamente fragmentada, dando vozes em excesso a outros personagens, e as histórias se transformam, com efeito, num relato de nossa época — um tempo presente em que ao mesmo tempo nostálgicos e ansiosos desejamos precisamente o que não temos. Se alguém apontar, com base nisso, que sua forma está de acordo com o conteúdo, não estaria totalmente equivocado no diagnóstico. Acontece que esse efeito de sentido por vezes soa excessivo e algo afetado.

Desse modo, muito embora a voz que emana dos textos de Jennifer Egan não seja efetivamente tradicional, em alguns momentos sugere que há um tipo de lacuna que, na melhor das hipóteses, é um traço da personalidade das personagens. Ao mesmo tempo, em outras passagens, a história infelizmente esvazia as possíveis elipses e provocações de texto. Surgem, assim, os flashbacks, cuja principal missão é evitar a sensação de vazio, amparando os leitores nas suas eventuais dúvidas sobre o encaminhamento da história. Entre a experimentação e o didatismo, a autora conscientemente preferiu a segunda opção — ainda que elaborando uma espécie de exercício de estilo.

Outro aspecto que poderia consagrar a literatura de Egan como positivamente enunciadora dos problemas de seu tempo é o sem-número de menções aos dramas contemporâneos. Mais uma vez, seus personagens trazem para os livros os dramas dos adultos na contemporaneidade. Seus vícios e costumes que os infantilizam em vez de libertá-los. O consumo de drogas é tratado nos livros de forma não necessariamente banal, mas ali não existe o louvor do uso dessas substâncias (proibidas?), e sim uma constatação de que se trata de um rito de passagem óbvio, passageiro e cuja lembrança é sempre pesarosa. A voz do narrador, no entanto, se esquiva de fazer julgamentos de valor sobre a conduta de seus personagens, sugerindo uma condescendência daquele que conta história. O ponto chave aqui é a alusão inevitável a esses temas quando se trata de narrativas cujo pano de fundo são as cidades e o ambiente de hoje. É visível na obra de Egan certa obsessão em anunciar ao leitor que sua obra se trata do tempo presente, com suas menções às questões que, parece calcular, são experiências comuns.

A autora, de fato, consegue êxito ao conceber uma narrativa que contém os detalhes ordinários do cotidiano numa prosa que, sim, leitor, é dotada de alta dose de imaginação. Mas esse elemento que faz de Egan a escritora de nosso tempo, capaz de descrever, com precisão, nossas paranóias e nossos medos mais inconfessáveis, acaba também por se tornar refém desses ganchos temporais. Explico-me. É como se a literatura da escritora norte-americana, no afã de traduzir em narrativa encadeada os dilemas e os conflitos de sua geração, acabasse por produzir uma obra tão somente esquemática, isto é, cujo principal argumento é sua associação temporal com os aspectos corriqueiros da vida mundana. E isso tem sido confundido com originalidade e virtude por certa corrente de leitores e da crítica. Mas vou me ater aos livros, porque é dessa experiência que este ensaio trata.

É verdade que em A visita cruel do tempo a autora consegue mostrar que tem capacidade técnica para produzir um texto literário. Atentemos, como exemplo, para a passagem a seguir, uma espécie de epifania urbana, quase poesia em prosa tal o grau de intensidade dramática:

Forço-me a olhar para a banda, e Scotty golpeia os olhos das pessoas com sua camiseta e as chuta com sua bota, e Lou segura meu ombro e o aperta com mais força, vira a cabeça em direção ao meu pescoço e deixa escapar um gemido quente e entrecortado que consigo ouvir mesmo com a música. Ele está perto assim. Um soluço se libera dentro de mim. Lágrimas brotam dos meus olhos, mas só dos meus dois olhos do rosto. Meus outros mil olhos do rosto. Meus outros mil olhos estão fechados.

São passagens como esta que sintetizam as virtudes e os vícios da autora. Afinal, há um bom duelo ali, nessa breve descrição, entre o desejo e a reparação, a vontade de pertencer.

A obsessão das vozes
Nos manuais de teoria literária, os autores ensinam que não é de bom tom associar o narrador à figura do autor. Trocando em miúdos, cumpre entender que a voz que apresenta a história, no livro, é uma voz forjada pelo autor, podendo acontecer em primeira ou terceira pessoa. No caso de Jennifer Egan, por exemplo, é correto assinalar que a autora concebe vozes eficazes para desenvolver suas histórias. Ainda assim, na seqüência de eventos em seus dois livros, nota-se a agenda particular da autora funcionando como marca de estilo. Ao que parece, entre os acontecimentos extremos que vão do 11 de setembro à emergência da “cultura” de séries de TV nos EUA, a imaginação de certos autores, entre os quais podemos incluir Jennifer Egan e, talvez, Nicholas Sparks, o comportamento e a reação das personagens refletem preocupações permanentes por parte dos escritores, como se, de alguma forma, eles desejassem expiar a culpa por ainda estarem vivos, felizes e satisfeitos, malgrado a catástrofe.

Para além disso, existe a obsessão com as perversões cotidianas, que algum autor brasileiro, deveras popular, poderia qualificar como as comédias da vida privada. Em tom de comentário corriqueiro, O torreão sugere que o telefone celular controla e altera o comportamento dos indivíduos em nosso tempo. Os autores têm lá suas obsessões, sem dúvida, mas talvez não fosse o caso de transformar uma diatribe em tema elementar de uma narrativa romanesca. Num ensaio publicado na coletânea Farther away, o escritor-do-momento Jonathan Franzen comenta o fato de que a tendência, ora recorrente, de declarar as nossas emoções via telefone celular tem a ver com o medo do que pode acontecer a seguir. O fato de que o terror está à porta, e o mundo pode ser cruel o suficiente para servir de palco para um atentado terrorista que pode ceifar milhares de vidas como se fossem peças a serem removidas de um plano maior. Talvez a referência de Egan pudesse tratar de algo nessa linha, mas, de qualquer forma, ao menos essa obsessão não acaba por se tornar um exercício ineficaz de estilo. Em vez disso, a autora segue uma estrutura bastante comportada no aspecto formal, muito embora o texto seja excessivamente permeado pelos diálogos, como se determinadas passagens tivessem sido feitas para a adaptação para o cinema e/ou TV.

Nesse quesito, A visita cruel do tempo é, sim, um livro mais arrojado e de maior imaginação criativa. Embora as muitas vozes se sobreponham, há ali um genuíno exercício literário com vistas a produzir um efeito de sentido junto ao leitor. E as passagens aqui são mais líricas do que qualquer digressão com pretensões de crítica de costumes. Aos mais conservadores, no entanto, um aviso: a certa altura do livro, existem passagens que mais se assemelham a uma apresentação de slides, dessas que o mundo corporativo adora preparar. E o livro ainda ganhou o Pulitzer? Sim, aparentemente, esse arroubo foi além da mera provocação — embora, cá entre nós, torcemos para que não se torne tendência. Afinal de contas, não faz muito tempo que um grande jornal deu corda para a síntese dos grandes romances em tweet….

Ao final dos dois livros, aprendemos que Jennifer Egan é uma autora de seu tempo não apenas porque exibe um conhecimento de mundo que extravasa o noticiário do jornal local, mas sim porque consegue demonstrar o entendimento dos tiques, vícios e maus hábitos de certa fatia da sociedade contemporânea — não de toda a sociedade, mas de parcela significativa que vive a lógica das grandes cidades. Para além disso, investe num estilo a um só tempo original e provocativo, algo que nem sempre funciona, mas que não pode ser acusado de atuar na zona de conforto. Num momento em que os grandes escritores preferem se escorar nos gêneros e, sobretudo, nas formas mais conservadoras desses gêneros, Jennifer Egan se utiliza de um estilo que não é o mais bem elaborado, mas é o que melhor traduz, de uma forma ou de outra, as tensões desse homem em queda, ora premido pela exigência de falar ao celular o tempo todo, ora angustiado com a não-realização de seus desejos mais inconfessáveis.

Jennifer Egan é uma escritora de seu tempo, uma época em que todos parecem correr, perdidos, à procura de um sentido.

A visita cruel do tempo
Jennifer Egan
Trad.: Fernanda Abreu
Intrínseca
336 págs.
O torreão
Jennifer Egan
Trad.: Rubens Figueiredo
Intrínseca
240 págs.
Jennifer Egan
Nascida em Chicago, Jennifer Egan é autora dos livros A visita cruel do tempo e do best-seller O torreão, tendo conquistado o Pulitzer e o National Book Awards de 2011. Publicou textos em revistas como The New Yorker, Granta, The New York Times Magazine e Harper’s Magazine, recebendo, por alguns desses trabalhos, prêmios jornalísticos. Em 2012, a autora esteve no Brasil para participar da Festa Literária de Paraty.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho