O que você quer saber de verdade

Lemony Snicket desafia o leitor com uma mescla original de humor negro e absurdo
Ilustração de Carson Ellis para “O compositor está morto”
01/06/2013

Se há algo que Scarlett O’Hara tem a ensinar às criaturas que são inúteis e existem, é o modo adequado de se fazer um juramento a fim de que este seja realmente levado a sério. Então, munido de um pôr do sol às costas e de um rabanete na mão direita, jurei que (1.) minha primeira bolsa de estágio seria bem gasta ao comprar toda a coleção Desventuras em série, (2.) meu primeiro salário com carteira assinada compraria o box especial, com os mesmos títulos em inglês, e (3.) meu trabalho de conclusão de curso seria centrado nessa série de livros.

Contexto é bom, às vezes. O ano de 2005 me trouxe grandes mudanças — de cidade e de nível educacional. Curitiba, pelo menos, foi simpática o suficiente para me apresentar a uma biblioteca pública muito melhor do que qualquer outra que eu já frequentara. Sorte semelhante não tive em relação ao curso superior: ainda que o renome da universidade seja plenamente justificado, não posso dizer que tenha apreciado os cinco anos do bacharelado em Direito.

Também em 2005, li os cinco primeiros volumes (são treze, no total) da supracitada coleção de romances infanto-juvenis, escritos por Lemony Snicket, heterônimo de um escritor menor, Daniel Handler, que também é seu porta-voz oficial — o investigador responsável por relatar as vidas infelizes dos irmãos Baudelaire não concede entrevistas. Não perdi os pais em incêndio terrível nem fui perseguido por um ator vilanesco com múltiplos disfarces interessado em minha herança, mas me identifiquei com a trama da série. Talvez por ser um leitor ávido, tal como Klaus, um dos três sofridos protagonistas. Talvez por, como este, também usar óculos. Talvez por ter sofrido em igual medida pela queima dos inúmeros títulos da prodigiosa biblioteca da mansão Baudelaire.

Mas o mais provável é que tenha entendido perfeitamente Klaus ainda no primeiro volume de suas desventuras — intitulado Mau começo — quando ele precisou ler um livro de teor jurídico a fim de encontrar uma forma de evitar o sucesso de um dos planos do vilão, o temível Conde Olaf. Eis o trecho:

Era um livro de texto longo e difícil, e Klaus foi ficando cada vez mais cansado à medida que transcorria a noite. Seus olhos às vezes se fechavam. Pegou-se lendo a mesma frase de novo, e de novo, e de novo. Pegou-se lendo a mesma frase de novo, e de novo, e de novo. Pegou-se lendo a mesma frase de novo, e de novo, e de novo. Mas aí lhe vinha à lembrança como haviam brilhado as mãos de gancho do colega do conde Olaf na biblioteca, e ele então as imaginava dilacerando sua carne, e mais que depressa acordava e retomava a leitura. 

Foi então que se deu a cena com o céu incandescente, o rabanete arrancado da terra e — como esquecer? — a trilha sonora de Max Steiner. Com tantos aparatos cinematográficos, como não levar a sério três juramentos seqüenciais? Todos foram devidamente cumpridos.

Lemony Snicket obteve renome internacional por seus livros infanto-juvenis. O mesmo universo apresentado nas Desventuras em série deu origem a outros livros relacionados: Lemony Snicket: autobiografia não autorizada — em que o leitor aproveita para (des)conhecer melhor o narrador-personagem; Raiz-Forte: verdades amargas que você não pode evitar — uma compilação de aforismos que ensinam o que é a vida; The Beatrice Letters — cartas trocadas entre o autor e a moça “querida, adorada, morta” a quem são dedicados os seus livros; e Quem poderia ser a uma hora dessas? — livro que dá início a uma nova coleção, intitulada Só perguntas erradas, circunscrita à época em que Snicket ainda tinha treze anos.

Mas não só de YA — Young adult, termo cada vez mais utilizado, equivalente ao nosso infanto-juvenil — vive o homem. Hoje, o público infantil brasileiro também pode apreciar um bom número de obras do autor, publicadas pela Companhia das Letrinhas. E a boa notícia é que o estilo de escrita do autor não foi descaracterizado na mudança entre as faixas etárias recomendadas — em especial, no que diz respeito àquilo que chamo de “seu humor negro-absurdo-didático”.

Ilustração de Carson Ellis para “O compositor está morto”

Em 2010, foi publicado O pedacinho de carvão. O público que já acompanhava o autor reconheceu, de pronto, as ilustrações de Brett Helquist — também responsável pelas gravuras de Desventuras em série. A metalinguagem característica de um autor que adora conversar com o leitor está presente — “A história começa com um pedacinho de carvão que, para todos os efeitos, era capaz de pensar, falar e andar por aí” —, em uma trama que, simultaneamente, busca subverter estereótipos e encontrar alguma autenticidade num mundo pós-moderno e injusto. Sendo assim, um bêbado Papai Noel, que confunde o temperamento artístico de uma criança com má-criação, vê fracassar sua boba lição de moral quando o menino fica feliz por encontrar, na meia natalina, um pedaço de carvão perfeito para criar “arte abstrata usando linhas pretas e rústicas!”. E, para a felicidade do minério que dá título à história, também o utiliza para cozinhar comida coreana genuína — outra paixão de ambos — em um restaurante que homenageia um poeta coreano aprisionado injustamente.

Um contraponto interessante à obra anterior se encontra em O latke que não parava de gritar. A história começa com o nascimento do protagonista: “A coisa que nascia era um latke, uma palavra que neste livro significa ‘bolinho de batata’”. Ele não pára de gritar desde que foi frito pela metade e conseguiu escapar, partindo em uma jornada pedante pela conscientização de luzinhas piscantes, bengalinhas doces e pinheiros a respeito de como o Natal e o Chanucá são “completamente diferentes”. No fim, ele encontra uma família que entende toda a sua importância para a celebração… e que o come.

O compositor está morto, por sua vez, apresenta um novo patamar de ambição artística em seus livros infantis. A morte de um compositor, possivelmente assassinado, leva uma orquestra inteira a ser investigada. Além de o mote dar ao autor a chance de, mais uma vez, relatar possíveis atividades criminosas (ocasião perfeita para um toque de humor negro), também lhe dá a oportunidade de, aos poucos, ensinar às crianças como uma orquestra funciona. O texto — aliado às ilustrações de Carson Ellis e, em especial, à música de Nathaniel Stookey (especialmente composta para acompanhar o libreto, vem gravada em um CD anexo) — permite que os pequenos descubram falhas na investigação do vaidoso inspetor e se interessem pela arte musical, na qual compositores diversos são reiteradamente assassinados por deslizes da orquestra.

Em breve, mais um título de Snicket chega às livrarias. 13 palavras parece fruto de uma proposta dadaísta, como se o autor tivesse retirado 13 pedaços de papel de um saco, cada qual com uma palavra, e resolvido criar uma história a partir delas, naquela ordem. As ilustrações de Maira Kalman também aparentam obedecer a uma lógica semelhante: quando a palavra número 2 — melancólica — junta-se à número 1 —passarinha —, todo o cenário se modifica: a janela mostra que já se tornou noite; o título de um livro muda de “Um conto por dia” para “Kafka”; o amarelo da parede ganha toques opressivos. O clima alegre e inusitado da maioria das ilustrações e situações do enredo contrasta com a persistência do estado melancólico da passarinha protagonista.

Sem dúvida, deve haver quem acredite que tais livros não são apropriados para crianças. Penso que essas pessoas são as mesmas que ficam incomodadas quando os filhos perguntam: por que as pessoas confundem arte com má-criação?; por que o herói de uma história às vezes é tão chato?; por que o Spalla gosta tanto de se exibir na orquestra?; por que a passarinha continua melancólica, mesmo após comer bolo e ganhar um chapéu que é pura extravagância e ouvir uma mezzo-soprano cantar?; ela é que nem a tia Ana? etc.

Acho que não sou um desses. Empolgo só de pensar na possibilidade de ter de pensar um pouco e começar a minha resposta com “O que você quer saber de verdade?”.

Lemony Snicket
Heterônimo do escritor Daniel Handler, este um americano nascido em 1970, em San Francisco, onde mora até hoje. É casado e não tem filhos.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

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