O que se insinua talvez seja mesmo

“Um livro em fuga”, de Edgar Telles Ribeiro, oferece ao leitor uma linguagem clara, direta e ágil, com intensas doses de lirismo
Edgard Telles Ribeiro, autor de “Um livro em fuga”
01/02/2009

A existência aconteceu, foi boa (excelente até), mas vai acabar. É isso, e bem mais, que está problematizado literariamente em cada e todo momento de Um livro em fuga, romance recente de Edgar Telles Ribeiro. O protagonista, que não tem o nome revelado, é — a exemplo do autor — um diplomata. Entre Samarkan, um país distante do Brasil (uma passagem entre ocidente e oriente), e o Rio de Janeiro, incluindo temporadas em Brasília, toda uma trajetória de quem já pulsou será revisitada. Muito se foi, e não volta. Se houve ganhos, as perdas também se fizeram. De balanços a reflexões, a narrativa oferece ao leitor uma linguagem clara, direta e ágil, com intensas doses de lirismo e até uma certa ternura discreta.

Cada encontro presente recupera uma experiência pretérita. Em um ponto planetário, um conhecido perdeu a mãe. Laços conectavam essa família ao protagonista. Em uma outra estada no local, o personagem-centro estava casado, com uma mulher com quem viveu durante 15 anos. Essa ausência pontuará o reencontro com o amigo, agora órfão. A morte da idosa insinua que o final da existência não é apenas uma hipótese distante. Um dia, ou uma noite, fatalmente a Indesejada das Gentes se fará presente para o embaixador em trânsito. E o trânsito é tamanho que ele até parece não ter um espaço, pouso, seu no vasto mundo ficcional estabelecido por Edgar Telles Ribeiro:

Tenho-me limitado a ir do trabalho para casa e da casa para o trabalho. […] A cidade, caótica e bela a sua maneira, resiste como pode à devastação criada por obras permanentes, das avenidas que subsistem os antigos canais fluviais aos edifícios que avançam sobre o verde da mata e dos jardins, derrubando árvores e, mais grave, histórias. […] Hoje, restou apenas o silêncio dos mais velhos, que balançam a cabeça tristemente quando o passado é evocado.

Vários passados se abrem ao personagem-centro, seja ao dialogar com um interlocutor que deixou o passado pobre rumo a um porvir próspero depois de entregar o pai a algozes fardados. Ou, então, ao retornar a seu Rio de Janeiro para rever a ex-mulher e presenciar um beijo dela com outro homem: tudo que houve entre os dois parece, então, para ele, ruir naquele instante. E mesmo ao viver breve temporada no presente com uma amante do passado que, de um segundo para o outro, revela que está com casamento marcado: as esperanças de um novo futuro nem chegam a se esboçar. Sobretudo, o passado que volta e a perspectiva de que o futuro não é para sempre se desenha no momento em que o protagonista se dá conta de que a sua mãe está pronta para morrer:

Mas não há como encobrir a verdade: o caso é grave. O diagnóstico médico sobre o mal que aflige mamãe somente foi obtido após a realização de uma batelada de exames clínicos. Justapõe um termo por mim desconhecido, polimialgia, a um adjetivo familiar, reumática — duas palavras que não parecem combinar. Talvez porque, no lugar de baterem em meus ouvidos (e cederem espaço a um silêncio apreensivo), permaneçam imóveis no meio do texto, fixas em minha tela como estrelas sem brilho, desafiando minha compreensão: polimialgia reumática

Personagens convidados?
O protagonista convive e recupera episódios de encontros e desencontros com outros personagens, mas — simultaneamente — também se vale dessa matéria de memória e presente, o seu agora, para compor um livro. Ele é escritor e questões a respeito de criação literária e fabulações aparecem no texto. A força simbólica de ser um intelectual que estabelece símbolos e mundos outros reforça o porquê da participação do personagem-centro em reuniões sociais. Há, como acontece na realidade, muita gente ávida por estar próxima, até demais, de um autor e, no caso deste enredo, a interferência de uma outra personagem (protótipo de escritora), que gosta de orbitar homens de letras, terá uma função relevante.

A personagem que se quer escritora, mas jamais escreveu uma linha, pois, para ela, escrever não passa de um detalhe, sim, mero detalhe; essa autora sem obras deflagrará o desfecho de Um livro em fuga. É dela a idéia-força que fará com que a narrativa se prepare o texto para receber o ponto final:

Quantas vezes eu não alimentara, como escritor, a fantasia de desaparecer ao final de um texto meu — sem deixar vestígios? Não podendo fazê-lo em livro próprio, por que não sair de cena ao abrigo de uma obra alheia, passando de autor a personagem?

Clea, a personagem em questão, pretende ajudar o protagonista a terminar o seu próprio livro que, ao que se insinua, mesmo que como um espelho que deve ser mirado com desconfiança, é o próprio romance de Edgar Telles Ribeiro. Um livro em fuga, assim, entre outras camadas, discute a noção de autoria, se autor pode ser o narrador, ou não, entre outras faixas de apreensão, eis que a obra tem no título, a chave ou rosebud para possível compreensão: tudo está em fuga: palavra chama palavra, palavra que se transforma em outra, mote se condensa em outro assunto e surge assim outro tema e, de repente, mesmo sem perceber, o leitor pode se dar conta de que o livro se aproxima da página 238 e, de fato, a experiência de leitura já era uma vez e foi uma aventura incrível.

Um livro em fuga
Edgard Telles Ribeiro
Record
238 págs.
Edgard Telles Ribeiro
Prosador e diplomata. Anteriormente, transitou pelo jornalismo, cinema e magistério da sétima arte. Sua debutância na prosa extensa, o romance O criado-mudo, foi vertido para idiomas dos seguintes países: Estados Unidos, Alemanha, Holanda e Espanha. Abocanhou variados prêmios, de comendas da Academia Brasileira de Letras ao Jabuti.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho