Outro dia o escritor João Anzanello Carrascoza comentava sobre o livro Como funciona a ficção, de James Wood. Estava empolgado com as ideias do autor, crítico literário. O assunto surgiu no saguão do aeroporto de Congonhas, porque perguntou do livro que eu tinha na mão e contei que estava lendo para resenhar A coisa mais próxima da vida. Carrascoza lembrou das ideias de Wood sobre a importância do detalhe no romance, algo que a contemporaneidade um pouco atropelou, em nome do dinamismo ou o quê. Pode ser que não esteja sendo exatamente fiel a essa conversa e até colocando imprecisamente comentários na boca de Carrascoza. Tudo bem, li que a crítica é também literatura.
O papo com João me influenciou sim. E esse detalhe sobre o tamanho dos detalhes na literatura saltou adiante nas percepções dos quatro ensaios, todos palestras apresentadas entre 2013 e 2014, antes de virarem livro. Nesses textos, Wood parece colocar em prática o que prega — além de difícil, isso é raro. Então quando ele afirma, com a ajuda de variados exemplos, que os detalhes é que dão vida às obras de ficção, ele mesmo recheia os ensaios com causos da vida pessoal, passagens de livros marcantes e personagens — principalmente personagens.
Penso nos detalhes como nada menos que fragmentos de vida que destacam do friso da forma, implorando-nos para serem tocados. Os detalhes não são, é claro, apenas fragmentos de vida: eles representam essa fusão mágica, em que a máxima quantidade de artifício literário (o gênio do escritor para a seleção e a criação imaginativa) produz um simulacro da máxima quantidade de vida não literária ou real, um processo por meio do qual o artifício é então, de fato, convertido em vida (ficcional, ou seja, nova).
Vá! Não pesquei na prosa de Wood o trecho mais representativo da clareza com que se expressa. Mas é tão legal! Traz outro João escritor para essa conversa, um que já citei em outras resenhas aqui do Rascunho: João Carlos Marinho, autor do clássico infantojuvenil O gênio do crime. Tem uma gravação em vídeo no youTube (eu mesmo a fiz) em que diz que o mais importante na longevidade de uma obra não é a linguagem. Ela importa, mas fundamental é a vida do livro. A vida pulsa nos detalhes, e Wood dá como exemplo um conto de Tchekhov chamado O beijo. Esse é o assunto do segundo ensaio do livro: Observação séria.
Nesse ensaio, veja como ele faz o que diz, como uma perseguição por coerência: engata em lembranças de sua infância na Inglaterra, evocando a mentalidade da época de seus pais, o clima da escola, com regras duras, opressão. “O diretor da escola só tinha provavelmente cinquenta e poucos anos, mas nos parecia uma figura fantasticamente antiga. Ele era um clérigo solteiro e usava o uniforme de seu ofício: um paletó preto, camisa preta sem botão e um grosso colarinho clerical branco.” O tal diretor aplicava punições a travessuras e desobediências com as costas de uma escova de madeira e os pais do pequeno James em vez de se revoltarem perguntavam o que ele tinha feito. Wood não deseja a seus filhos uma infância como a dele, mas queria que eles tivessem atenção aos detalhes, esses resumos concentrados da experiência com início e fim indeterminados (ou não sabidos previamente) chamada vida.
As ideias, como é próprio do gênero ensaio, se costuram para frente e para trás. No primeiro texto, Por quê?, que começa com a descrição do que acontece no enterro de um amigo, Wood trata do poder da Literatura fazer caber a vida, ao mesmo tempo em que a vida não cabe, excede. “…daí a caracterização que John Donne faz de nossa vida, em seu sermão do século XVII sobre o livro de Jó, como uma sentença já escrita por Deus: ‘Nossa vida é não mais do que um parêntese’ (…) A ficção realiza o feito notável de nos permitir tanto expandir como contrair os parênteses.” No começo, lembrando do enterro, chamou-lhe atenção como amigos recordavam o morto por passagens específicas, muitas delas divertidas, numa busca de resumir a importância do que se foi por suas vivências. Os discursos nos enterros podem facilmente ser tolos, mas a literatura, quando dá certo, pulsa nessa frequência.
Eu ia correndo à vida. Aos sete, a gente é assim. Pula de um doce pra um brinquedo. De um brinquedo pra uma tristeza. Tudo rápido, no demorado da infância. O pai chegava, Olha o que eu trouxe pra você?, e abria a mão: um punhado de balas Chita! O mundo, então, era aquele sabor em minha boca, eu concentrado em mastigar, querendo outra, e mais outra, satisfeito de estar ali, fiel ao meu instante.
Esse começo do romance Aos 7 e aos 40, João Carrascoza fez pulsar exatamente pelo detalhe (bombado por precisa dose de lirismo), o momento de o pai dar bala ao filho; detalhe = vida. Por isso você estava feliz no aeroporto, falando de Wood, né? Esse cara valoriza suas buscas, João.
Retrô
James Wood dá sinais ao longo dos ensaios que sente falta não de inovações, mas de escritas que valorizem o que faz dos clássicos, clássicos. Grandes personagens, por exemplo, descrições e criação, em vez de realismo.
É o que a literatura tem em comum com a pintura, o desenho, a fotografia. Poderíamos dizer, segundo John Berger, que os leigos meramente veem enquanto os artistas olham. Num ensaio sobre o desenho, Berger escreve que “Desenhar é olhar, examinando a estrutura das experiências. O desenho de uma árvore nos mostra não uma árvore, mas uma árvore sendo olhada” (…) Berger está dizendo duas coisas. Primeiro, assim como o artista se empenha — e por muitas horas — em examinar aquela árvore, do mesmo modo a pessoa que olha atentamente para o desenho ou lê uma descrição de uma árvore na página aprende a se empenhar, também; aprende a transformar o ato de ver em olhar. Segundo, Berger está afirmando que todo bom desenho de uma árvore tem uma relação com todo bom desenho anterior de uma árvore, uma vez que os artistas aprendem olhando o mundo e olhando o que outros artistas fizeram com o mundo.
Esse trecho eu li quase no mesmo dia em que assisti a uma gravação em vídeo do escritor Ariano Suassuna falando de arte e lembrando, se não me engano, o pintor Degas. Segundo ele, o pintor viu numa exposição um homem rir de uma tela sua. Perguntou do que o homem ria e era porque a mulher no quadro tinha a barriga verde, que mulheres não tinham barriga verde na verdade. Segundo Suassuna, Degas explicou que aquilo não era uma mulher, mas que era um quadro.
Com esses casos, chegamos também ao terceiro ensaio, Fazer uso de tudo. Wood analisa a própria função da crítica literária. Compara as análises feitas por acadêmicos e por escritores. Defende o olhar do escritor sobre a literatura, afirmando que a crítica é também uma construção literária. “Eu chamaria a esse tipo de crítica uma maneira de escrever através dos livros, não só sobre eles. Esse ‘escrever através’ se dá muitas vezes pelo uso da linguagem da metáfora e de símiles que a própria literatura utiliza. É um reconhecimento de que a crítica literária é única porque aquele que a exerce tem o grande privilégio de fazê-lo no mesmo meio que está descrevendo. (Pobre do crítico de música, do triste crítico de arte!).”
No quarto ensaio, Desabrigo secular, o tema provocador dos pensamentos de James Wood é o exílio — tanto o forçado por questões político-violentas quando a mudança por questões particulares, aparentemente menos violentas (muitas vezes apenas aparentemente). Também nesse a conexão com a literatura se dá pela transformação das memórias e apreensão dos detalhes, que em descrições bem construídas têm o poder de fazer caber as vivências mais significativas, fazer pulsar essa coisa tão próxima da vida.