Quando lemos um jornal, é raro refletirmos sobre a relação de forças que tal tipo de publicação exerce sobre seus leitores, enfim, sobre mesmo toda a sociedade. Um órgão da grande imprensa, seja ele de que tipo for ou qualquer posição que assuma, jamais abandona a pretensão de, através da organização da linguagem, também organizar a linguagem social, de modo que as relações de poder não sejam abaladas. Pelo menos é o que observamos ao analisar a imprensa brasileira, majoritariamente engajada ao lado conservador. Quando declara não apoiar candidato algum por ocasião de eleições, um jornal o faz porque possui, desse modo, o melhor meio de apoiar aquele que defenderá os interesses de seus anunciantes e, em consequência, de seus proprietários. Na verdade, a imprensa não tem o papel de informar; ou seja, esta é a menor das intenções. O que transmite é certo ar — que todos respiramos e não percebemos —, conhecido como ideologia. O romance histórico Última hora, de José Almeida Júnior, toca neste fio quase invisível.
Romances que relatam a História recente muitas vezes são difíceis de ser escritos devido à necessidade de apreensão rigorosa da época retratada e da acuidade na construção de seus personagens, já que existiram de verdade e que cada pessoa pode ter uma visão diferente sobre eles. Deve-se ainda considerar que muitos destes ainda estão vivos nas mentes dos que os conheceram. Última hora, de José Almeida Júnior, é um romance que recupera a história recente do Brasil, sobretudo o Estado Novo e o período que vai até o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954.
Utilizando vários artifícios, como um narrador jornalista de nome Marcos, pertencente ao partido comunista, a narrativa explora os meandros da imprensa da época e sua relação com o poder, passeando entre vários nomes que se tornariam conhecidos na história do jornalismo, como Carlos Lacerda, Samuel Wainer, David Nasser, Nelson Rodrigues, entre outros.
A narrativa começa com Samuel Wainer oferecendo ao narrador um super salário (três vezes maior), para deixar o pequeno jornal de esquerda onde trabalha e aceitar o posto de chefe de redação na Última Hora, diário que Wainer está para lançar, cujo objetivo é apoiar o governo de Vargas, recém-vitorioso nas urnas. Apesar da oferta tentadora, o jornalista resiste, lembrando sua luta contra o presidente, a prisão, as torturas nos calabouços da ditadura do Estado Novo e os anos de clandestinidade. Ele, a princípio, encarna o jornalista que tem um drama de consciência: não quer abandonar suas posições políticas e seus projetos para “vender-se” à imprensa burguesa. Marcos está mergulhado em dívidas e com sérios problemas familiares, mas resiste enquanto pode à oferta.
Reconstituição
Há minuciosa reconstituição do Rio de Janeiro da época, com suas ruas de subúrbio ainda pacatas e o movimento que, pouco a pouco, toma vulto no centro do Rio, seus bares — o Amarelinho aparece com muita frequência —, e também várias boates da zona sul. Outro ponto marcante, que deixa saudade, são as redações dos jornais do período, esfumaçadas pelo cigarro constante de quase todos e contagiada pela paixão da escrita que seus profissionais exerciam sobre as pessoas. Entre estes fatos, também há a precariedade em que muitas vezes a imprensa estava mergulhada.
O livro desenvolve-se em duas frentes narrativas, de modo intercalado; primeiro, os anos cinquenta do século 20; depois, recuando no tempo, a ascensão do integralismo e do comunismo, as manifestações fascistas e a intentona comunista. Desfilam pelas páginas do romance personagens do porte de Luiz Carlos Prestes, Getúlio Vargas entre outros. Há menção às hesitações e às discussões entre os dirigentes do PCB, sobre a elaboração de um calendário para dar início à revolução comunista.
No entanto, o que permeia o livro é a luta de Wainer para alavancar seu jornal e fazer que sobreviva em meio aos barões da imprensa da época, como Chateaubriand, e mesmo já, os Marinhos. Carlos Lacerda, proprietário à época da Tribuna da Imprensa, diário com apenas cinco mil leitores, tenta projetar-se atacando em todas as direções, tentando destruir Wainer e sua Última Hora.
José Almeida Júnior fez uma boa pesquisa, inclusive sobre o funcionamento da imprensa da época, com jornalistas que ficavam vários dias sem voltar para casa e, muitas vezes, dormiam nas redações à espera de algum chamado para cobrir um evento importante. O autor soube também traçar o percurso do jornalismo investigativo (inicial, então), do ambiente na Câmara, no Senado e mesmo no gabinete de Vargas, tornando o presidente um personagem fácil de ser admirado pelos leitores. As tramas políticas, como movimentos de partidos contrários ao presidente, suas tramas, traições, CPIs, são descritas com pertinência. Há também a trama política que, pouco a pouco, vai minando o bastião de apoio a Vargas. Os ataques contra Wainer partem de várias frentes, como aqui, quando Lacerda investiga, desonestamente, as origens da chegada da família do jornalista ao Brasil:
Saí da redação da Última Hora e fui tomar uma cerveja no Amarelinho, acompanhado de Isabela, e Etcheverry. Sentamos numa mesa da calçada, eu com o braço em volta do ombro dela e Etcheverry a nossa frente. O bar estava cheio e barulhento, mas dava para conversar:
— Fiquei com pena do patrão. Está arrasado com essa notícia de que não é brasileiro — Isabela quase gritou para se fazer ouvida.
Capítulo à parte é a presença de Nelson Rodrigues a escrever A vida como ela é, coluna jornalística que apresentava de forma romanceada as desventuras e tragédias envolvendo relacionamentos amorosos, muitas vezes relatados pelos próprios leitores do jornal. Impagável sua postura em relação aos combates políticos, à agitação na redação e às mulheres que o rodeiam. Também há o lançamento de algumas de suas peças. Nelson convida os amigos, distribui ingressos, passeia pela plateia antes do início do espetáculo e está sempre rodeado por muitas pessoas. No dia seguinte, na redação, quando pergunta sobre o que acharam da peça. Seus amigos tentam disfarçar, têm dificuldades de revelar suas verdadeiras opiniões. Na verdade, não entendiam o teatro de Nelson.
O livro estabelece um diálogo com a época de hoje, em que a grande imprensa apresenta um jornalismo contaminado pelas posições políticas de seus proprietários, levando falsamente à crença de que suas posições poderão perdurar, como acreditava a maior parte da imprensa da época. Mas a história possui meandros que escapam a todo tipo de controle, como os fatos que se seguiram ao suicídio de Getúlio Vargas.
A linguagem transcorre fluida, sem empecilhos, tornando a leitura um grande prazer, mesmo que se leve em conta o caráter histórico. Neste tipo de literatura seria comum o autor perder-se em pequenos fatos, em episódios obscuros, necessários segundo a opinião de estudiosos. Mas isso não acontece no romance. A vida pessoal do narrador segue seu fluxo de revelações e conflitos, a relação de Marcos com o filho mostra-se sempre nebulosa, com o garoto não conseguindo entender a ideologia do pai, preferindo as posições políticas do pai de um amigo, que possui uma mercearia e diz-se de direita. A História, apesar da interferência dos homens, segue seu percurso, sempre apresentando seus momentos de imprevisibilidade.
No final, revelando ineficaz todas as tentativas de manipulação por parte da grande imprensa, a ideologia escapa, imperceptível, e o povo se apresenta. Indomável.