O povo de Ubaldo

Obra de João Ubaldo Ribeiro é fundamental para a discussão da identidade cultural brasileira
João Ubaldo Ribeiro por Osvalter
01/10/2008

No momento em que escrevo este texto, o novo acordo ortográfico já foi sancionado pelo presidente Lula. Para quem ainda não sabe, trata-se de uma formidável articulação política entre os países falantes de língua portuguesa, que, diga-se, contam até mesmo com um órgão a seu dispor: a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. De volta ao acordo, há quem defenda a mudança, uma vez que a medida tornará, em tese, a língua escrita em Portugal mais próxima da que é escrita no Brasil, fazendo com que, efetivamente, estejamos unidos pela “pátria que é nossa língua”, como cantou o poeta. De outra parte, há aqueles, no Brasil e em Portugal, que se opõem à mudança, apontando que essa tal unidade em torno do idioma deixa de lado séculos de formação e tradição cultural. Em certa medida, essa discussão vem bem ao propósito quando se observam eventos ocorridos em 2008 em torno do universo das letras.

Para além da discussão acadêmica do acordo, que, com efeito, já estava em gestação muito tempo antes deste governo chancelá-lo, outros acontecimentos trouxeram, como que para dar sustentáculo a essa decisão, a relação entre Brasil e Portugal no âmbito dos livros e da literatura. Prova disso foi a última Bienal Internacional do Livro em São Paulo, que, entre outros países, homenageou Portugal. Curiosamente, também no segundo semestre deste ano, foi concedido ao escritor João Ubaldo Ribeiro o prêmio Camões de Literatura de 2008, pelo conjunto da obra. Ao analista mais cético, não resta dúvida de que houve certa convenção na seqüência dos fatos relatados.

Em que pese essa teoria da conspiração, vale a pena ressaltar que o prêmio concedido ao escritor baiano João Ubaldo Ribeiro — cuja obra agora é relançada pela Alfaguara — é merecido. Como poucos escritores do Brasil, Ubaldo conseguiu construir um edifício literário que se destaca não somente pelos recursos estilísticos de sua prosa, com elementos singulares que o referendam como um dos grandes autores brasileiros do século 20, mas, também, pela capacidade de elaborar uma distinta galeria de personagens, repletos de características que os tornam, muitas vezes, inesquecíveis. Por essas razões, já seria possível dissertar a respeito da obra de João Ubaldo, tomando alguns de seus livros como base para efetuar, como sói a alguns scholars, um estudo de caso ancorado em literatura comparada entre Brasil e Portugal, por exemplo. Ou, por outra, observar a influência da língua portuguesa em sua modalidade de norma culta no romance de Ubaldo Ribeiro, algo que até poderia ser pertinente, mas não necessariamente atrairia a atenção da maioria dos leitores. Desse modo, este texto, antes de fazer jus a um formato mais teórico, estruturado, quem sabe, nas leituras certamente interessantes de Bakhtin, do pensador da cultura Terry Eagleton e do pós-estruturalista Stephen Greenblatt, prefere uma análise mais próxima do que efetivamente João Ubaldo Ribeiro escreveu e, especialmente, pelos temas abordados por ele. A discussão, nesse sentido, remete à reflexão mais abrangente das escolhas de Ubaldo. Para tanto, é necessário observar de perto sua formação.

Nascido em Itaparica em 1941, os anos de gestação do escritor tiveram como eixo central a figura do pai de João Ubaldo Ribeiro, um humanista, segundo ele já relatou em entrevistas, muito rígido. Disciplinado desde o início a ter um preparo intelectual acima da média, Ubaldo estudou inglês e outros idiomas, como alemão, francês e espanhol já aos 10 anos de idade. Nesse ponto, é possível afirmar que Ubaldo teve uma formação clássica que foi elementar para a elaboração de sua arte literária. É comum, aliás, ouvir o autor citar os cânones tanto como obras de referência quanto de influência. Nesse caso, Homero e Shakespeare freqüentemente aparecem em seus depoimentos. O interessante, no entanto, é perceber de que maneira essa relação se estabelece na obra do autor. Em muitos escritores, as referências funcionam como que para dar arcabouço livresco à obra, assinalando a esmo um nome aqui e acolá; recortando arquétipos tão normais quanto inócuos, como o da personagem feminina forte, ou do narrador-autor, entre outros. Em João Ubaldo Ribeiro, tal referência é percebida sem a necessidade de prefácio. Com isso, em vez de aparente, a influência é inerente, como algo que perpassa a obra sem ser artificialmente planejado, a fim de se mostrar aos leitores e aos críticos. E é bom que se diga, aliás, que o escritor não costuma enxergar com bons olhos o papel de certa crítica, pois, conforme já disse em outra entrevista, muitos resenhistas não contam com preparo para desempenhar esse tipo de trabalho.

Identidade
Se a angústia da influência não interfere na leitura das obras de João Ubaldo, é possível reparar em um elemento central em seus textos literários: a questão da identidade cultural. Nos livros Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro, até mesmo o leitor mais desavisado há de perceber que a discussão de fundo toca no tema da identidade, ora de forma exagerada, ora de maneira irônica, como quem olha para a História do Brasil desconfiando das interpretações oficialescas. Vale a pena registrar que as interpretações do Brasil, mais do que a leitura de jornais e demais periódicos, foram essenciais na tentativa de entender o País ao longo do século passado. Haverá quem diga que tal objetivo é, de fato, impossível; entretanto, cumpre ressaltar que esse debate de fundo fez a cabeça de muitos intelectuais brasileiros. Para citar os mais comentados, Sérgio Buarque de Holanda e o homem cordial, Gilberto Freyre e a formação da família patriarcal; e Caio Prado Jr. e o sentido da colonização, sem mencionar, nominalmente, as obras de Paulo Prado, Darcy Ribeiro, Roberto Schwarz e Roberto Da Matta. Todos esses autores, de alguma forma, interpretaram o Brasil, buscando significado para além da história e da memória coletiva, que, vez por outra, é suplantada pelo esquecimento. Tal esquecimento, grosso modo, faz jus à sensação de que não sabemos efetivamente o que somos ou, por outra, como fomos constituídos como nação.

A hipótese de alguns maledicentes, com efeito, é justamente esta: o Brasil não é uma nação. E se se utilizar o texto de Sérgio Buarque de Holanda ao pé da letra, logo no início, é bem verdade que o pensador dispara: “somos desterrados na própria terra”. Em verdade, a provocação está mais relacionada à forma como o brasileiro aqui se institucionalizou, diferentemente de se relacionar com a memória. Nesse ponto, é possível apontar uma intersecção entre essa discussão e as obras de Ubaldo, que, à sua maneira, propõe uma nova visita às nossas raízes mais profundas nos livros Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro. No primeiro, observa-se um narrador com prosa convulsiva que se recorda, com inúmeras digressões entremeadas aos diálogos, de sua trajetória como sargento de polícia. Nesse posto, ele deve fazer uma prisão antes da aposentadoria. Trata-se de um adversário de um eminente chefe político da região de Aracaju. No caso deste livro, Ubaldo remonta, de certa maneira, à sua própria trajetória ao revisitar o Nordeste do País. A obra do escritor, assim, volta-se para dentro antes de se expandir para retratar o Brasil. Nesse “conhece-te a ti mesmo”, o autor descortina os meandros, os vícios e os demais detalhes que fazem o Brasil como ele é. Publicado originalmente em 1971, o livro não pertence, ao menos do ponto de vista da história de certa crítica literária, à escola do regionalismo, que, naquele momento, já havia atingido seu ápice com a prosa pedregosa de um Guimarães Rosa. Ainda assim, o texto traz elementos que dão ao leitor o sabor do versar do matuto, o modelo de brasileiro que vive nas matas, às escondidas, à espera de uma tradução significativa para, com efeito, existir como sujeito e como cidadão brasileiro.

A questão da identidade aparece, ainda, subjacente à proposta temática do livro. Afinal, o Brasil que aparece ali, escancarado nas páginas do autor, é muito mais arcaico do que a nação que emerge, galopante, no início da década de 1970, durante o breve período do “milagre econômico”, operado pelas figuras de proa da ditadura militar no Brasil — algumas dessas personagens, aliás, permanecem como verdadeiros medalhões do saber econômico nacional, a despeito da ideologia e do grupo político ao qual estiveram associados. Dessa forma, o comportamento rude é o padrão, por mais que uma classe média educada queira despontar como nova cara do país. A virtude da narrativa de Sargento Getúlio, que conta com pouco mais de 160 páginas, é traduzir o rural que existe a despeito do urbano. É significativo, não custa salientar, que até a década de 1920, o Brasil era fundamentalmente um País matuto, dos grandes fazendeiros que se mudaram para a cidade e, à sua maneira, iniciaram uma espécie de reforma burguesa nos centros urbanos. É dessa época, por exemplo, a efervescência de São Paulo e Rio de Janeiro como “capitais da cultura”, esta, em verdade, mais do que aquela. O abuso de poder, a corrupção e a tentação autoritária sequer soam como disparates em um lugar que não há separação visível entre os espaços público e privado. O resultado é uma peça literária de imaginação, muito embora o status de grande obra só seja concedido aos textos que possuem elementos de um certo realismo.

Ironia ao povo brasileiro
No que se refere à discussão identitária do Brasil como nação, é forçoso assinalar que por muito tempo — e, de certa maneira, até hoje — tentou-se construir tal sentido simbólico a partir da imagem (ou melhor dizendo, imagens) de um Brasil gigantesco. Mais recentemente, essa discussão assumiu um tom mais técnico, a partir da noção dos BRICs (grupo de países emergentes: Brasil, Rússia, Índia e China). No passado, para além do período ufanista da ditadura militar, essa visão também foi articulada ao longo da História, em uma espécie de “visão do paraíso”, numa alusão a outro texto de Sérgio Buarque de Holanda. Nesse caso, temos o mito do achamento, a tese de que o Brasil foi escolhido tendo em vista suas belezas naturais, sua riqueza de fauna e flora, para além da diversidade cultural elementar de seu povo. Na esteira dessa linha de raciocínio, atribui-se às terras nativas as palmeiras mais originais, mesmo que não sejam as selvagens de Faulkner; bem como os painéis mais grandiosos, mesmo que não tenhamos tido feitos heróicos que justificassem a emergência do neoclassicismo à maneira Jacques-Louis David como expressão da estética visual.

A História do Brasil, nesse sentido, soa sempre favorável e bastante ufanista em determinados feitos. Conforme análise de alguns autores, como o historiador e também acadêmico José Murilo de Carvalho, trata-se de uma tentativa de legitimação de certo discurso, mais afeito à nação grandiosa do Brasil. A também historiadora Lilia Moritz Schwarcz analisa essa visão idílica em seu recente O sol do Brasil, ao interpretar algumas questões não reveladas da famosa “Missão Francesa no Brasil”. Na literatura, em um pequeno grande livro, o escritor Lima Barreto faz menção a uma terra conhecida como Bruzundanga, mas se trata de um roman à clef efetivamente pouco lido até mesmo pelos estudiosos. O que finalmente remete a João Ubaldo Ribeiro e a seu Viva o povo brasileiro. Publicado pela primeira vez em 1984, a obra é considerada uma das grandes narrativas da segunda metade do século 20 no Brasil. Em recente enquete no blog do escritor e jornalista Sérgio Rodrigues (www.todoprosa.com.br), constatou-se que este era o principal livro de ficção dos últimos 25 anos (a pesquisa foi feita em 2007), ultrapassando o também bastante popular Quase memória, de Carlos Heitor Cony; e o cult Dois irmãos, de Milton Hatoum.

O que chama a atenção nessa escolha é que não se trata de um livro fácil. A começar pelo seu tamanho — na atual edição da Alfaguara tem 640 páginas —, Viva o povo brasileiro é um romance que, longe de ser best-seller, dialoga com a história do Brasil. E, por favor, leitor, esqueça aqui as recentes adaptações da vinda da Família Real para o Brasil. A despeito da qualidade de imaginação de algumas narrativas, como a de Ruy Castro em Era no tempo do rei, alguns livros optaram por pintar por demais alguns personagens, retomando, equivocadamente, a proposta de Carlota Joaquina, o filme da diretora Carla Camurati que marcou o retorno da produção cinematográfica no Brasil na década de 1990. Na narrativa de João Ubaldo Ribeiro, a começar pelo primeiro parágrafo, o que se lê é o contraponto, a história pontuada pela ironia contumaz de um narrador que observa, a um só tempo, de forma bem-humorada e bastante crítica alguns acontecimentos marcantes da história brasileira, sempre marcada pela maldade, pelo preconceito e pela desigualdade entre os habitantes.

Que não pense o leitor, entretanto, que se trata de um romance político. Muito embora o significado da obra possa estar associado a esse contexto mais polêmico, é certo que o livro prima, antes de mais nada, pela possibilidade de fruição que proporciona a quem decide encarar a extensa narrativa, graças, aqui, à forma com que o autor estabelece uma espécie de condução. Em outras palavras, a prosa de Ubaldo é fluida, com períodos longos, possibilitando aos leitores acompanhar a seqüência narrativa da estória que ora se confunde com a História factual. O estilo, aliás, em determinados momentos se assemelha ao formato leve de suas crônicas semanais publicadas n’O Estado de S. Paulo e n’O Globo. É claro que a temática é absolutamente distinta dos textos editados nos periódicos. Nesses textos, mais breves e ao sabor do momento, o escritor propõe um tipo de conversa com seus leitores, estimulando, sempre que possível, um debate em torno da política nacional. Assim, tanto no governo FHC quanto no de Lula, o escritor se posicionou contrariamente a certos escândalos, como a polêmica votação da reeleição e o famigerado caso do Mensalão. Em ambos os casos, essa posição lhe rendeu mais patrulha por parte de certo grupo de leitores do que popularidade, ainda que esta tenha aparecido de forma rarefeita.

Um Brasil demasiadamente selvagem
De volta ao livro, ainda no tocante à questão da identidade, o leitor entra em contato com um País demasiadamente selvagem, com direito às passagens em nada edificantes ou triunfalistas dos heróis sem caráter que estiveram por aqui por ocasião da presença dos holandeses; ou então quando se menciona a participação do Brasil na Guerra do Paraguai e na Revolta de Canudos. A escolha, nesse caso, não é puramente aleatória: o leitor com interesse aguçado há de observar que se trata dos períodos decisivos da formação do Brasil como nação. A versão oficial, quiçá mítica, desses relatos permanece no imaginário local a despeito do processo de esquecimento. A narrativa de Ubaldo, em contrapartida, indica uma interpretação corrosiva dos fatos. Certamente, haverá quem enxergue ali a verdade, do mesmo modo que o leitor desprovido de imaginação invalidará o livro por falta de verdade factual. Pouco importa. O necessário, aqui, é a constatação de que se trata de uma obra elementar para a discussão da identidade de um país que se projeta, muitas vezes, de forma equivocada diante do espelho. Entre o ufanismo e o complexo de vira-latas, há um Brasil inseguro, bipolar e ávido pela busca de algo que lhe dê sentido. O mérito da leitura de Viva o povo brasileiro é que o texto não despreza as outras leituras sobre identidade cultural; antes, com luz própria, torna-se necessária, mesmo em se tratando de um texto ficcional.

No círculo literário, há quem afirme, sempre nos bastidores, que Viva o povo brasileiro é fruto de uma encomenda editorial, fato que, se for efetivamente verdade, só comprova o talento do autor — que já confessou começar a escrever um livro pela introdução, sem muita cerimônia. E esse talento não é reconhecido apenas pela crítica especializada nacional e estrangeira, mas também junto ao grande público leitor do Brasil, essa pequena massa humana que ninguém sabe direito o que pensa e como pensa. Assim, membro da cadeira número 34 da Academia Brasileira de Letras, o autor também é lido e consumido pelas multidões, haja vista as duas adaptações com base em suas obras. O sorriso do lagarto, adaptado para a televisão; e A casa dos budas ditosos, adaptado para o teatro e que teve como protagonista a atriz Fernanda Torres. No que se refere à peça, é sabido que abarrotou alguns dos principais teatros do Brasil apresentando as heterodoxas memórias de alcova de uma senhora.

Se, por um lado, o sucesso consolida a trajetória do escritor como um grande autor brasileiro, por outro, também é possível observar que a questão de identidade nos seus livros de fôlego sai do primeiro plano e abre espaço a outro tipo de experiência literária, talvez mais próxima à preocupação mercadológica dos grandes grupos editoriais, ainda que tanto o autor quanto o editor possam negar veementemente isso. Mais do que responder às demandas do factual, a obra e o texto de João Ubaldo Ribeiro são elementares para a cultura brasileira porque se associam diretamente com um modo curioso e, de certa maneira, original de olhar para o Brasil e para os brasileiros. Nesse caso, antes de ufanismo e outros arroubos de “dever cumprido”, a literatura de Ubaldo empresta um significado à idéia que se faz do País, sem prejuízo estético, literário e conceitual do que se estuda em outras áreas, como História do Brasil e Geografia.

A respeito do acordo ortográfico entre os países de língua portuguesa, é interessante observar que a unidade em torno do idioma não vai se transformar, via decreto, na sublimação das identidades e das partes que compõem uma nação. Ao menos não por agora. Isso porque se notam inúmeras idiossincrasias que muitas vezes não cabem nos tratados, tampouco nos textos de base, evidentemente porque só existem na literatura. É essa a seara de João Ubaldo Ribeiro, um escritor que descobre o Brasil dentro de si mesmo.

LEIA ENTREVISTA COM JOÃO UBALDO RIBEIRO.

Viva o povo brasileiro

João Ubaldo Ribeiro
Alfaguara
640 págs.
Sargento Getúlio
João Ubaldo Ribeiro
Alfaguara
168 págs.
João Ubaldo Ribeiro
Nasceu em Itaparica (BA), em 1941. Passou a infância entre Aracaju e Salvador. Em 1957, começou a trabalhar como jornalista, tendo exercido os cargos de repórter, redator e editorialista. Como escritor, além dos romances O sorriso do lagarto, Viva o povo brasileiro e Sargento Getúlio, Ubaldo assinou roteiros para televisão e participou da elaboração do texto que deu origem ao filme Deus é brasileiro, dirigido por Cacá Diegues. Atualmente, o escritor também colabora para o jornal O Estado de S. Paulo, para o qual elabora uma crônica semanal comentando os principais temas do cotidiano, assim como algumas de suas memórias.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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