O poeta que amplia a noite

Produção poética de Fernando Fiorese é reunida num livro em que borbulham — a todo o instante — vida e morte
Fernando Fiorese, autor de “Aconselho-te crueldade”
01/07/2002

Em Juiz de Fora (nome que soa estranho a ouvidos distantes da história mineira), no sudeste de Minas Gerais, “a arte acontece cada vez que lemos um poema”. Roubo com muito cuidado a expressão cunhada por Jorge Luis Borges — um gênio capaz de criar várias novas almas humanas — quando fez algumas palestras entre 1967 e 1968, na Universidade de Harvard, e tentou dissecar a poesia. Borges lembrou a expressão do pintor americano Whistler que disse em uma discussão que a “arte acontece”. Por mais rasteira que tal frase possa parecer, sim, a arte acontece a todo instante e se consolida na poesia como a criação diária de várias vidas. A poesia cria a vida para que este ciclo seja eterno.

Como a tarefa de eternizar a arte poética está nas mãos dos bons poetas (nada mais óbvio), ela agiganta-se segura na produção incansável de Fernando Fiorese, 38 anos, que em silêncio quase sepulcral vem tecendo versos ao longo dos últimos 15 anos. Agora, a voz de Fiorese vai ecoar por (infelizmente) apenas restritos rincões deste mundo na coletânea Corpo portátil, que reúne sua poesia realizada entre 1986 e 2000, em Ossário do mito (86-89), A primeira dor (94-98), Pequeno livro de linhagens (97-98), Corpo portátil (98-2000) e Papéis avulsos. E o que esperar de um poeta quase inédito, nesse turbilhão de versos (muitos de qualidade bem duvidosa) que abarrota o mundo? Recorramos mais uma vez a Borges: “A vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia — a poesia está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante”.

E isso — a vida — encontra-se em abundância nos versos de Fiorese. Salta a todo instante, a cada verso, a cada sílaba. A vida está impregnada na poesia de Fiorese — é claro que isso não seria premissa para a grande poesia, pois a vida também é, muitas vezes, medíocre —, mas no poeta ela floresce das mais diversas formas, até encontrar a morte, o que para muitos é outra forma de vida. Mas não esperemos a complacência de uma existência pacata, sem preocupações, como nos pinta o estereótipo mineiro (e por isso mesmo apenas um estereótipo). Fiorese é um poeta preocupado com temas universais, que afligem, de alguma maneira, do guardador de carro ao “doutor” dono do carro. Estão em seus versos a morte, o amor, a preocupação com o tempo, as cidades e, num cantinho especial, o amor pela literatura e, conseqüentemente, pelos livros.

Logo no primeiro poema, Retratos sem data, Fiorese nos avisa por que caminhos anda sua poesia: “Eis o termo da linguagem: /monstro ou borboleta/ arrastando nosso cadáver”. Eis aí o poeta a nos avisar que há de nos arrastar pelos desvãos da vida, ora como monstro ora como borboleta. São signos que podem representar uma vida toda, tecida entre beleza e atrocidades, tão comuns aos seres humanos (alguns não tão humanos assim). E é nos poemas de Corpo portátil (escrito entre 1998 e 2000) que Fiorese atinge praticamente todos os propósitos de sua poesia — sei que isso pode soar como definitivo, mas não é essa a intenção — ao abarcar a morte/tempo, as cidades, as mulheres e a literatura. No verso “Morrer é ausentar-se da mesa”, do poema Serpente enlutada, temos a síntese da visão apurada do poeta sobre a vida e a falibilidade do homem, que representa toda a razão da existência. É por isso que Fiorese está entranhado na busca de respostas para a morte, para a beleza, para a literatura, para as cidades, para as mulheres… Enfim, para a vida que o cerca. São símbolos que podem ser transferidos infinitamente a outros homens. Aí reside a grandeza poética de Fiorese. Como nos ensina o poeta irlandês Seamus Heaney, ganhador do Nobel em 1995 — “vou cavar o futuro com a caneta” —, Fiorese também busca cavar o seu futuro com os versos. E para vislumbrar esse futuro — que pode ser traduzido em explicações para o presente —, ele utiliza-se da poesia, pois a poesia é vida, como está no poema Casa paterna:

há idades esperando
em cada cômodo da casa

para estar aqui
atravessamos muitas mortes

Os versos “para estar aqui/ atravessamos muitas mortes” remetem o leitor a toda uma vida, ao vislumbre do passado com os olhos no futuro, na esperança. Na poesia de Fiorese, mesmo nos momentos mais pessimistas (eis que o pessimismo é imprescindível à vida como nos ensinou Schopenhauer: “longe de ser negação da vontade de vida, o suicídio é um fenômeno da afirmação vigorosa da vontade”; e o suicídio traduz-se como o único tema relevante nas mãos de Albert Camus), traspassa-se a linha do mero pessimismo para embrenhar-se por frinchas de vida. Eis o poema Engima:

caminho para o acidente:
não poderia recuar
ante um deus desconhecido

O que vislumbra o poeta? Sim, por mais mórbida que a morte seja, Fiorese enxerga as pontas de luz que a poesia (vida) produz. Portanto, não recua diante do inevitável, com doses medidas de racionalidade e paixão (extremamente necessária à poesia). À medida que avançamos na leitura de Corpo portátil, viajamos em versos que descortinam a vida e nos dão a impressão de um trajeto entre a esperança (vida) e a desesperança (morte), o que também não chega a ser assustador, pois o sorriso do desconhecido descortina-se a todo momento. Nos poemas de A primeira dor (escrito entre 1994 e 1998), caminhamos com a morte a nos lamber a cara a todo instante. E é uma sensação boa desde o poema A Construção…

pressinto que escava:
será bicho?
será máquina?
será o medo de tudo
que se avizinha
e exaure a morada?

…passando pelo magistral Memorabilia, em que Fiorese avisa: “não há acordo com os mortos:/ da túnica inconsútil restaram/ apenas os alinhavos”, para mais adiante acrescentar: “inútil postular o périplo póstumo/ da bicicleta alemã:/ os pedais riem deste corpo/ sem rodas e sem rumo,/ pedalando para o caos.” Aqui, não seria exagero invocar a obscura Quarta elegia (Elegias de Duíno), de Rilke: “Ó árvores da vida, quando atingireis o inverno?/ Ignoramos a unidade. Não somos lúcidos como as aves/ migradoras. Precipitados ou vagarosos/ nos impomos repentinamente aos ventos/ e tornamos a cair num lago indiferente”, para darmos a grandeza da poesia de Fiorese, que, longe da obscuridade de Rilke, invoca seus leitores a uma reflexão da poesia — mais uma vez, vida —, distante dos joguetes de palavras tão comuns em certa (?) poesia brasileira.

Fiorese afasta-se dos modismos usuais para fazer uma poesia elevada, pois poesia, assim como a vida, deve ser tratada como arte e não como apenas uma brincadeira enfadonha de crianças birrentas. A preocupação do poeta com a poesia espraia-se ao longo do livro, principalmente quando a sua arte está no epicentro dos versos: “palavras são diques ainda/ quando dizes todo o oceano” ou ainda em “escrever é também vingar-se”. Fiorese sabe que tem nas mãos uma vida inteira a despejar pelo mundo e o diz de peito escancarado em Caderneta de campo:

abrir um livro é ampliar a noite
em que um professor de literatura
persegue pequenas verdades policiais
seqüestra-se ao espelho ao sentido
mesmo porque é ele o assassino

mas não o autor dos falsos indícios

Assim como Borges (“O fato central de minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia.”), Fernando Fiorese tece a sua vida numa poesia que amplia muitas vezes a noite e nela podemos contemplar a escuridão, estrelas, meteoros, luas várias, planetas e uma infinidade de vidas a bailar em versos, porque como diz Fernando Pessoa: “grandes são os desertos, e tudo é deserto./ Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto/ Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo./ Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes —/ Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,/ Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.”

Sim, grandes são os desertos e suas almas desertas, mas que se tornam menos áridos e mais aprazíveis na companhia de poesia como a de Fernando Fiorese.

Corpo portátil
Fernando Fiorese
Escrituras
191 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho