O peso da solidão

Os contos de “Entre amigos”, de Amós Oz, apresentam as dificuldades da vida num kibutz
Ilustração: Amós Oz por Fábio Abreu
03/06/2014

Em Assim falou Zaratustra, o sábio de Friedrich Nietzsche diz no discurso O regresso a seguinte frase: “Oh! Solidão, solidão, minha pátria! Como é divina e terna a tua voz que me fala!”, num louvor à solidão que tornaria possíveis vivências únicas, bem como seria, dentre outras qualidades, uma característica de um espírito livre.

Contudo, no kibutz Ikhat, de Entre amigos, novo livro do israelense Amós Oz, a solidão, que não é vivida na ausência do outro, não é terna nem divina; é um peso que, na companhia do outro, parece sufocar qualquer espírito livre.

Entre amigos é composto por oito narrativas que parecem ter sido escritas como contos independentes, interligados por personagens em comum, depois reunidos num romance. Seu narrador, que não se identifica, mas de tudo sabe e tudo observa, é um onisciente e onipresente espectador e narrador das histórias que também são suas.

Assim, aos poucos, vamos tomando conhecimento das agruras e problemas enfrentados no kibutz, tais como hipocrisia, separações de casais, disputas internas de poder, fundamentalismo e traços de xenofobia por parte dos líderes, que pode resultar numa crueldade disfarçada de “honorabilidade e de apego a princípios”, segundo o personagem Roni Shindlin. Enfim, um lugar onde “Todos são companheiros mas poucos são amigos”, nas palavras do secretário Ioav Karni.

Porém, o que marca aquele lugar é a solidão, sejam solteiros ou não, presente no modo como vivem interiormente e como se relacionam com os demais. Seus hábitos são de pouca ou nenhuma intimidade entre si.

Muitos dos personagens, à primeira vista, parecem seres comuns vivendo tranquilos e felizes no kibutz; contudo, basta lermos mais algumas linhas para encontrarmos uma luta interna como no caso de Tzvi Provisor, homem de quase 50 anos, que “trazia pendurado no cinto um rádio transistor do qual extraía uma corrente perpétua de péssimas notícias”, e que as repassava constantemente a todos, por acreditar que seria uma tolice fechar os olhos para os aspectos da vida, e que, se podiam fazer pouco, pelo menos era preciso dizer; o que lhe rendeu a alcunha de “Anjo da morte”.

Apesar disso e de evitar o contato físico, era homem de habilidades, como todos no kibutz: um jardineiro paisagista de grande qualidade. Uma compensação, talvez, pela morbidez das notícias que compartilhava.

Inusitado
Mas a solidão também produzia o inusitado. Boaz, marido de Osnat, a lavadeira do kibutz, trocou-a por Ariela, que trabalhava no galinheiro, dirigia o comitê de cultura e era divorciada de um oficial do exército que a abandonou por uma soldada.

Alguns dias depois, Ariela se desculpa com Osnat num bilhete e busca a fuga da solidão na sua companhia. Diz ser tratada com secura por Boaz, mas que essa secura a atrai, “como se ele não tivesse nada, como se tivesse vindo direto de um deserto de solidão”. E completa: “[…] agora eu quero compartilhar de sua solidão [Osnat], como quis por um momento tocar a solidão dele”. Mas Osnat não a responde.

O deserto de solidão do qual falou Ariela é alegoria da vida de cada personagem do livro. Assim como o deserto é algo comum à vida dos judeus na sua história, a solidão no kibutz é comum ao deserto que persiste dentro de cada um, onde o fato de estarem em comunidade apenas os faz somarem solidões.

E quando, na soma das solidões, um se afasta, a solidão cresce, como no caso angustiante de Nahum Ashrov, eletricista de 50 anos que, depois da morte da esposa e do filho, tem na filha, Edna, de 17 anos, sua única companhia.

Entre eles, cada um vivia na sua solidão, nem sequer se tocavam; o que não queria dizer que fossem indiferentes um ao outro; pelo contrário, eram próximos, mas “Essa proximidade quase não se expressava em palavras, mas numa certa compreensão mútua e profunda”, dentro do silêncio. Até que Edna vai morar com o mulherengo David Dagan, seu professor, da mesma idade de Nahum, e um dos dirigentes do kibutz; inflamando a solidão do pai.

Já em Moshe Iashar, de 16 anos, um jovem de aparência triste que visita o pai constantemente fora do kibutz, num hospital, a solidão está na incapacidade de se relacionar. Sempre isolado, passa horas a ler na biblioteca. Com ele descobrimos certos detalhes fortes da vida no kibutz Ikhat que podem asseverar a solidão lá dentro, como o infligido afastamento do mundo exterior e dos parentes que ficaram lá fora. Nas palavras de David: “Quando viemos para este país, simplesmente deixamos os pais para trás. Cortamos na carne viva, e pronto”.

Esse afastamento parece mudar os jovens. Na visita de Moshe ao pai, este não o reconhece prontamente. Talvez devido à senilidade do velho, talvez porque a cena simbolize a mudança pessoal realizada no kibutz, pois, quando finalmente, depois de várias respostas do filho à pergunta do pai, “Onde está Moshe?”, o pai o reconhece, mas parece insatisfeito: “O pai passou a mão pela testa e como se estivesse acordando observou com tristeza: ‘Você é Moshe’” (grifo meu). Sem exclamação, apenas uma constatação.

Fragilidade
Outro personagem, Roni Shindlin, conhecido como “o palhaço”, por fazer piada com tudo, tem um filho frágil que sofre bullying dos colegas da casa de crianças, onde elas ficam, obrigatoriamente, separadas dos pais. Atitude criticada por muitos e que onera a solidão no kibutz e a do filho, potencializando sua fragilidade e a solidão do pai, que teme por ele e nada se conforta na esposa rígida e dura — quando toda rigidez e dureza pode ampliar a solidão da parte que a sofre.

Na história final, o solitário pacifista e sobrevivente do Holocausto, Martin Vanderberg, tem seus últimos dias. Um velho doente, professor de esperanto e sapateiro do kibutz que “não acreditava na instituição familiar, porque a vida do casal em si mesma cria uma barreira supérflua entre célula familiar e sociedade”. E isso o deixava mais só.

Morreu por asfixia. Para o seu enterro nenhum parente foi encontrado, e quando a pá de terra caiu sobre o seu caixão, “um ruído oco e seco se ouviu”, como a falta de ar que lhe levou, como a solidão em que viveu. “E sobre o novo túmulo ainda pairou por algum tempo uma pequena nuvem de poeira”, feito uma efêmera companheira se despedindo.

E assim se dá a contradição do conceito de kibutz: a solidão que não deveria existir, por se tratar de uma comunidade, existe, assim como existia em Zaratustra no texto O regresso: “Ó Zaratustra, sei de tudo; e também que no meio de muitos homens estavas mais abandonado, único que és, do que jamais estiveste comigo! Uma coisa é o abandono, outra é a solidão – Isso aprendeste agora!” (grifo do autor).

Diferença visível no kibutz, onde ninguém estava abandonado, mas todos estavam sós, onde talvez até mesmo os trabalhos e obrigações diárias provocassem solidão, já que lhes deixavam pouco tempo para pensarem em si.

O curioso é que, na vida regrada do kibutz, onde o individualismo era negado a qualquer custo, com leis rígidas contra a independência e as iniciativas particulares, a solidão era individual, e a exigência de trabalho e decisões em comunidade era inversamente proporcional a essa solidão que seus membros sofriam.

Repressão
Sendo todas as decisões tomadas em conjunto, que decidia o que, quando e onde alguém iria estudar, viver vigiado e não podendo ser dono do próprio destino configurava-se na repressão dos próprios desejos, da individualidade e da intimidade, que remetia a um isolamento e, por conseguinte, à solidão.

O fato é que a solidão já estava personificada na própria existência do kibutz, isolado do mundo ao redor, numa comunidade fechada.

Mas a solidão em Entre amigos não está somente nos personagens, está também ao seu redor, como no livro que Moshe leu, Morremos sós (1955), do historiador britânico, David Howarth, que trata de uma história de heroísmo e resistência de soldados noruegueses na Segunda Guerra mundial.

E é de uma conclusão de Mosh que vislumbramos um entendimento para a solidão no kibutz Ikhat: “A partir do que lia nos livros ia chegando cada vez mais à simples conclusão de que a maioria das pessoas necessita de mais afeto do que aquele que podem obter”.

Contudo, toda a solidão no kibutz está envolta de sutil e poética delicadeza, como em: “Uma vez Carmela ficara de pé entre a luz e a parede conversando com uma das outras garotas, e ele [Moshe] passara e acariciara sua sombra com a ponta dos dedos”; “Lá fora a chuva e o vento fustigavam as persianas cerradas e um galho de fícus se esfregava seguidamente na parede externa como a pedir comiseração” e “Os lampiões de cerca desenhavam poças de luz de um amarelo-pálido. Um deles parecia agonizar, sua luz pestanejava, como que a hesitar”, dentre outros.

Essa personificação da natureza e dos objetos, como parte da comunidade e da tristeza dela, reflete como os moradores do kibutz sentem o mundo ao seu redor, além de dar o tom da melancolia, tão comum à solidão.

Enfim, nas páginas de Entre amigos, a angústia, o sufocamento e a clausura são atributos da solidão, num mundo que conserva, mesmo num universo à parte, as mesmas dores, descaminhos e esperanças de qualquer lugar.

Entre amigos
Amós Oz
Trad.: Paulo Geiger
Companhia das Letras
136 págs.
Amós Oz
originalmente Amos Klausner, nascido em Jerusalém, em 1939, foi combatente na Guerra dos Seis Dias e do Yom-Kippur, e fundador do movimento pacifista israelita Shalom Akhshav. Premiado com a Legião de Honra, na França e o Prêmio Príncipe das Astúrias de letras, entre outros, é autor de livros de sucesso como De amor e trevas, A caixa preta e Meu Michel. Oz, palavra hebraica que escolheu para seu sobrenome, em 1954, quando ingressou no Kibutz Hulda, significa coragem.
William Lial

É poeta, ensaísta e mestre em Literatura Comparada. É autor de SombrasNoturno e O mundo de vidro. Além de colaborar com jornais, revistas e sites de literatura, também mantém o blog http://williamlial.blogspot.com.

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