O nosso destino

“Meu destino é ser onça”, de Alberto Mussa, resgata e restaura o mito tupinambá e contribui para se conhecer um pouco mais da construção do Brasil
O escritor Alberto Mussa, autor de “Meu destino é ser onça”
01/04/2009

Alberto Mussa, 47 anos, é autor do livro de contos Elegbara (1997) e dos romances O trono da rainha Jinga (1999), O enigma de Qaf (2004) e O movimento pendular (2006), obras permeadas por vasta pesquisa histórica revestida de ficção. Enquanto seus contemporâneos estão à volta com abordagens urbanas e a tríade sexo, violência e solidão, Mussa vem preferindo revolver arquivos e registros do passado, que, muitas vezes, se encontram em péssimo estado de conservação, preservados por funcionários abnegados. São desses parcos registros de memória que ele vem pacientemente extraindo boas histórias. Prática literária similar exercida, por exemplo, pelo norte-americano Gore Vidal (Juliano, Criação, Washington D. C., entre outros), que vem, há algum tempo, incluindo personagens fictícios a episódios históricos de dois grandes impérios — romano e norte-americano. No Brasil, outro exemplo próximo é o da ficcionista Ana Miranda, que já romanceou a vida do poeta Augusto dos Anjos (A última quimera), Gonçalves Dias (Dias e dias) e o conhecido Boca do Inferno, sobre Gregório de Mattos.

Em seu novo livro, Meu destino é ser onça, Alberto Mussa reúne escritos e acaba, também ele, recriando e reelaborando textos que costumam ter pouco destaque em nossos livros escolares e que, nem por isso, são menos importantes. O período abordado desta vez (em torno de 1550), que demarca a chegada e a disputa de vários colonizadores europeus, tem sido muito explorado tanto por ficcionistas quanto por estudiosos e acadêmicos, vide Desmundo (saga de sete órfãs enviadas pela rainha de Portugal no ano de 1555 numa caravela a fim de se casarem com cristãos que viviam no Brasil), de Ana Miranda; A muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, assim como, os estudos presentes no primeiro volume da História da vida privada no Brasil, organizado por Fernando Novais; O Brasil dos viajantes (organizado por Ana Maria de Moraes Belluzo) e, ainda, Os índios e a civilização, de Darcy Ribeiro.

Neste livro, Mussa dá continuidade ao que parece ser um projeto literário, ao restaurar mitos, lendas, mentiras e verdades sobre nossas origens e ancestrais. Desta vez, ele resgata registros deixados sobre os índios Tupinambá (que “habitavam faixas costeiras da Bahia, do Maranhão a partir do século 17 e do Rio de Janeiro — onde eram mais conhecidos por tamoio”), sobretudo, escritos pelo frade francês André Thevet, que adentrou a selva, ao lado de um intérprete, e acompanhou a ocupação da Baía de Guanabara pelos franceses. Mussa baseia-se no relato de viagem que Thevet fez no Brasil no longínquo ano de 1550, quando conviveu com os Tamoio a fim de conhecer hábitos e aspectos de seus cotidianos, descritos em seu relato intitulado Cosmografia universal. Além dessa fonte, Mussa inclui em seu livro referências menos conhecidas do próprio Thevet e, também, de diversos cronistas da época, como Padre Anchieta, Hans Staden, Léry, Gabriel Soares de Souza, Gândavo, Vicente do Salvador e outros. Em todos, ele tece pequenos comentários. Padre Anchieta, por exemplo, considera que: “Poderia ter sido um grande cronista”; Lery: “É fonte muito boa”; Gândavo: “É fonte paupérrima, no que respeita à mitologia. É também dos autores mais etnocêntricos e antipáticos aos indígenas”. Já Thevet: “É disparado, o melhor de todos os cronistas”.

Texto coloquial e contemporâneo
Vale destacar que Mussa não apenas restaura esses relatos históricos. Percebe-se que uma de suas maiores preocupações foi oferecer ao leitor um texto coloquial e contemporâneo, bem melhor para se ler do que os próprios originais escritos há séculos, em especial o testemunho de Thevet, que incorre, na maior parte das vezes, numa visão etnocêntrica (como, de resto, a de qualquer um), ao descrever os índios como seres selvagens, ingênuos, inferiores, burros, enfim, bárbaros incivilizados que viviam à margem em suas crendices: “Essas pobres gentes, quando viajam pelo mar, vendo que ele está furioso, têm sempre a pluma de certos pássaros, que se assemelham às nossas perdizes, e alguma outra coisa, que jogam nas ondas espumantes e furiosas do mar, pensando por esse meio aplacar sua cólera”. Resgatados por Mussa, esses registros têm importância porque nos permitem reflexões não apenas sobre a prática da antropofagia, mas também para conhecermos o modus vivendi e operandi dos Tupinambá, ou seja, como os índios viviam, pescavam, caçavam, faziam fogo, recorriam a crenças, etc.

Além de restaurá-los, Mussa compara esses registros sobre os Tupinambá, citando as visões desses cronistas sobre o cotidiano dos indígenas e uma de suas práticas mais controversas e comentadas, o canibalismo. Para o autor: “no jogo canibal, cada grupo depende totalmente de seus inimigos, para atingir, depois da morte, a vida eterna de prazer e alegria. O mal, assim, é indispensável para a obtenção do bem; o mal, portanto, é o próprio bem”. Contudo, para os cronistas europeus, o canibalismo era um ato bárbaro e de selvageria. Já no livro de Mussa, ele ganha contornos dramáticos, com “dinâmica e sentido próprios”, uma vez que se tratava de um modo de transformar o mal em bem, ou seja, ritual próprio de uma cultura, não sendo visto pelos índios como ato de violência. Antes, significava busca por uma espécie de purificação espiritual.

Além de organizar esses registros, Mussa não só os restaura, mas também “dialoga”, compara-os, uma vez que apresentam pontos de vistas distintos sobre os índios e suas tribos. Num trabalho minucioso, ele coteja as abordagens das lendas, valores e modos de olhar desses cronistas sobre nossos antepassados, expondo verdades e mentiras “construídas” ao longo dos tempos. Uma delas diz respeito sobre o quase completo extermínio dos povos indígenas, algo que, registra o autor, não foi obra dos colonizadores europeus, mas “essencialmente de índios contra índios”. Mussa indica que não foram as guerras, mas as doenças, particularmente, epidemias de gripe e varíola, que os dizimaram.

Entusiasmo pelo tupi
A relação de Mussa com a cultura indígena veio quando, há alguns anos, ele resolveu se submeter a uma pesquisa de ancestralidade, que, por meio de informações genéticas, se consegue descobrir se uma pessoa possui ascendência negra, indígena ou branca: “O que eu estava buscando, na verdade, era uma ancestralidade africana. Sempre fui muito ligado à cultura afro-brasileira”, afirmou em entrevista. Mas o resultado do teste foi outro: “Descobri que era indígena”, disse. Entusiasmado pelo tupi antigo, Mussa chegou a ambicionar um doutorado em lingüística sobre migrações indígenas, mas o interesse acadêmico arrefeceu e ele prosseguiu a empreitada, agora visando “fazer literatura”.

O livro é encerrado com o processo do canibalismo explicado e resumido com riqueza de detalhes a partir dos relatos dos cronistas colhidos por Mussa. No entanto, a despeito de não ter pretensão acadêmica, creio que Meu destino é ser onça se enriqueceria ainda mais com uma boa contextualização desse período histórico brasileiro (a fim de explicar ao leitor menos informado sobre fatos e questões relacionados ao Brasil Colônia), bem como, um texto introdutório ou uma apresentação que explicasse a biografia desses cronistas que muito contribuíram para a historiografia literária brasileira. Também teria sido pertinente a inclusão de algumas ilustrações da época, como as que constam do livro Viagem ao Brasil, de Hans Staden, ou mesmo de Frans Post, Rugendas ou Debret.

A contribuição maior de Meu destino é ser onça está em resgatar e comparar as diferentes visões desses cronistas, na tentativa de criar um texto cujo fio é configurar uma saga, recuperar essa “autêntica epopéia mítica”, narrativa mitológica que precisa ser ainda mais abordada e conhecida pela sua importância histórica e literária.

Leia entrevista com Alberto Mussa

Meu destino é ser onça
Alberto Mussa
Record
270 págs.
Alberto Mussa
Nasceu no Rio de Janeiro em 1961. É autor de Elegbara, O enigma de Qaf, O movimento pendular, entre outros. Traduziu diretamente do árabe a coletânea de poesia pré-islâmica Os poemas suspensos. Sua obra já recebeu os prêmios Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Casa de Las Américas e Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.
Suênio Campos de Lucena

É jornalista e escritor, autor de 21 escritores brasileiros e Depois de abril.

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