Numa manhã finalmente mais fria esse ano, acarinhado por lã de alpaca nos ombros e café na mão, li a crônica Ode aos irmãos Aniceto e fui para bem longe de 2021, só retornando quatro páginas depois, reconduzido pelo próprio Ronaldo Correia de Brito, autor do texto que integra o livro A arte de torrar café.
Lugar-comum na literatura dizer que é viagem no tempo e no espaço. Mas se a gente olha na lupa esse lugar-comum, suas raízes e efeitos, nem sempre isso acontece, não é verdade? Apesar das intenções de autoras e autores, nos mais diferentes gêneros de escrita. Esse deslocamento é segredinho entre texto e leitora, texto e leitor. Creio que ocorra de modo muito próprio em cada uma e cada um de nós.
Esse é o vigésimo de cinquenta e cinco textos do livro. O quintal do autor é o mundo: muito Recife, Inhamuns, mas além do Atlântico também. Leio muito devagar. Leio outros livros simultaneamente, outros textos, crio textos, é uma palavraiada só. Mas vou persistir nesta percepção: desconfio que essas crônicas do Ronaldo Correia de Brito não sejam, independentemente de seu tamanho, seu número de toques, que não sejam brisa breve. São densas, oceânicas. Densas apesar de escritas sem rebuscamento, sem dificuldade desnecessária. Não li outros livros dele, os romances festejados do autor (confesso que agora estou atiçado para isso). Mas nesse livro garanto que o texto é do mais alto nível, de quem alcança criar camadas de significação, descomplicadamente.
A voz do outro
“Numa tarde do mês de março, em 1956, quando eu acabava de chegar ao Crato, vindo de Inhamuns, cinco homens bateram à nossa porta, na rua dos Cariris.” Pronto, eu estava lá. Nessa crônica dos irmãos Aniceto ele fala da família de músicos, de pífaro zabumba e caixa, famosos entre os locais, numa outra significação de famoso. “Feliz do povo que se reconhece nos seus músicos e poetas. O artista ideal será capaz de incorporar a grandeza, estranheza e diversidade de seu lugar, de sua gente e da natureza que o cerca”, escreve mais ao final. Parece que é uma declaração de sua própria poética, porque é isso que percebo da postura de Ronaldo Correia de Brito nos demais textos desse livro. Ele faz emergir a experiência de sua vida, não a partir do próprio umbigo, exclusivamente e em curta circunferência orbital. Mas de tudo em redor, o mundo de muitos, em direção a si, do jeito que o afeta (também). Resulta que ele, narrador-personagem, é narrado como personagem, como se outro, o que é muito bem-vindo e soa mesmo diferente, em comparação ao repetido eu-eu-eu, agulha travada no vinil.
(Paro pra pensar no que acabo de escrever: não nego, ao contrário, valorizo tanto a escrita de si, ao mesmo tempo em que condeno o excesso do que chamei de eu-eu-eu. Não sei hoje definir a diferença. Sim, desejo no que leio o que é mais próprio da autoria — o Eu de outrem —, mas talvez seja isto: esse Eu que está em tudo e em todos, o Eu que está no que e no como conta do mundo, dos seres, das vivências. É ainda pouco preciso, portanto perigoso, mas prefiro registrar e dividir a angústia desse não entendimento.)
Ele não deixa de emitir opinião, não. Mas não é o “eu acho” que dita o ritmo. Há uma crônica ou outra, mais na segunda metade do volume, com críticas a modos de viver, comportamentos sociais, algum lamento, nunca fora de contexto.
Inventário
Nos textos do conjunto, é bem frequente e variada a costura de histórias vividas ou escutadas pelo autor a textos clássicos da humanidade. Cultura, uma coisa só, não a caixinha do popular à parte da erudita. A pessoa que lê muito e vive intensamente, ela existe! Ela pode existir em uma só. Faz muito mais sentido, aliás, que seja assim.
Ronaldo monta um certo inventário do que atenciosamente presenciou em sua trajetória. Não traz uma cultura popular do sertão, por exemplo, a que acessou como um estudioso faz (e tem sua importância incontestável). Mas é o que viveu e persiste nele. São cantos de fundo religioso e pagão, fazeres (como a torra do café, plantio e colheita de algodão), costumes como dos velhos carnavais (e eu que não curto carnaval quase visto fantasia, tão encantadora é sua visão da festa).
Ainda trecho dessa crônica dos músicos do Crato:
Somente quando me tornei estudante de medicina em Pernambuco, abri os olhos para outras formas de conhecimento, desprezadas nos cursos formais. Batizei esse saber de Universidade Popular da Cultura Livre e busquei formação com vários artistas, mulheres e homens sábios, alguns analfabetos.
Ronaldo é médico. Não conta tanto de sua atuação profissional, ela aparece mais vezes como pano de fundo de acontecimentos, mas o que aparece em algumas das crônicas deixa claro que é uma das linhas de força de sua experiência. É um médico-antropólogo, um médico-repórter.
“A partir da década de 1970, procurava os irmãos Aniceto de caderneta e lápis em punho, gravador e máquina fotográfica”, conta Ronaldo. Na crônica A caminho de Juazeiro, também foi de gravador, caderno, lápis e máquina fotográfica vivenciar e registrar a romaria de Padre Cícero. Não sei se alguma vez ele se encontrou com Ignácio de Loyola Brandão. Fiquei imaginando o papo dos dois. Ambos têm o costume das cadernetas. Ambos, esse amor por viajar, fugir do obviamente turístico, conhecer cidades pequenas, o Brasilzão além das capitais.
Em Nota do autor, isso está posto. Mas é diferente a vivência que proporciona ao leitor, à leitora, quando essa atenção e disposição emergem de dentro das histórias. Eu disse que era lento para ler, mas recomendo mesmo isto: leia aos poucos. Cada crônica tem suas próprias camadas e referências, suas costuras. Com 55 publicadas, temos aí livro para longa convivência e releituras, reencontros.
Contador de histórias
É necessário registrar outra característica marcante: o autor não fornece moral das histórias. Muitas ficam, acredito que de propósito, sem conclusão. Preocupa-se, como um bom antropólogo, em expor as relações em vez de explicar. E como faz isso? Faz como um bom contador de histórias, como aquele que “se chamava Otacílio Valdevino, também poderia ser Vicente Moreno”, no texto O rifle e a lança. “E quem falou que eu sei contar história?”, disse o contador.
Pois é.
Releio e noto que nessa resenha faltou apontar defeitos.
Pois é.
Vou tentar: a crônica que abre o livro e dá nome a ele pode ser lida na chave de manual para escritores e escritoras, iniciantes ou experientes. Autoajuda disfarçada?, me pergunto. Além da alegoria em si, é dedicada a um editor, personagem-função fundamental na literatura, o que é uma lição valiosa. Mas não, isso não é um defeito, bem longe disso.
>>> Leia o conto inédito A plenos pulmões, de Ronaldo Correia de Brito.