A plenos pulmões

Em plena pandemia, um homem de classe média-alta relembra seu passado como militante de esquerda, tendo como pano de fundo um segregado Recife
Ilustração: Mello
01/06/2021

Para Anco Marcio

Não tinha a pretensão de liberar bloqueios emocionais e energéticos por meio da respiração acelerada. A marcha com as máscaras sobrepostas, uma cirúrgica e outra de tecido, enchiam os pulmões de gás carbônico, um efeito mais que natural.

Antinatural seria morrer de Covid-19.

— Aproveite o ritmo holotrópico, nele você se move em direção à totalidade.

Desejava apenas sair de casa, romper o isolamento e a rigidez dos músculos e articulações. O amigo sugeriu percorrerem as ruas do bairro, quando poderiam girar em volta de uma praça, olhando os espelhos d’água criados pelo paisagista Burle Max, todos poluídos, sujando as flores brancas das vitórias régias.

— Desacelere, aqui é o CPOR.

Na ditadura militar, os automóveis reduziam a velocidade até quase zero, em frente aos quartéis. Os milicos temiam bombas arremessadas por subversivos, de dentro dos carros. Lembrou a infância cheia de terror e a cidade onde nascera. Ao passar próximo à casa dos leprosos, descia a calçada, cobria o nariz e a boca com a mão e ficava longo tempo sem respirar. Por sorte, o percurso não era extenso.

— Ar, ar, ar, implorou sem fôlego. Essas máscaras me sufocam.

Morreria vítima da ignorância. A hanseníase se transmite em gotículas de saliva. O bacilo Mycobacterium leprae é eliminado pelo aparelho respiratório da pessoa doente na forma de aerossol, durante o ato de falar, espirrar, tossir ou beijar. Mortos não falam, espirram, tossem ou beijam. Todos na casa em ruínas já haviam deixado esse mundo, há pelo menos um quarto de século.

O mesmo não conseguia dizer dos militares. Pareciam eternos no poder.

Quando ingressou na universidade, exigiram que servisse o exército. Foi chamado ao Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, o mesmo que avista agora. Pediu adiamento de incorporação, mas jurou à bandeira. O quartel o deixou excitado, nunca soube o motivo de uma vexatória ejaculação.

Depois da formatura, foi convocado novamente. Precisavam de médicos na fronteira da Amazônia. Suportou horas de aliciamento e olhares sedutores dos oficiais. Teve a mesma excitação da primeira vez, sem ejacular. Mostrou-se agressivo, falou coisas perigosas, os colegas temeram que fosse preso.

Por sorte, não foi.

Mas naquele tempo poderia ter sido.

A mãe iria chorar na Praça da Sé, em frente à Igreja Matriz, com um lenço preto na cabeça, exibindo a fotografia do filho vitimado.

— Ei, cara, você esqueceu a continência à bandeira, o companheiro de marcha lembrou.

— Vai tomar…, Claudio!

O amigo sofre um transtorno obsessivo compulsivo que o obriga a seguir pelos mesmos lugares, o tempo cronometrado num relógio de pulso. Ele submetera-se aos caprichos do maluco, valia a pena sua conversa provocante, as perguntas e ideias que o deixavam mais tonto e inquieto. A coluna cervical reclamava dos movimentos laterais, dos giros bruscos da cabeça, do incômodo diálogo com um interlocutor caminhando ao lado, no ponto oposto ao seu meridiano.

— Responda e me encare de frente, o pai ordenava.

Pobre pai, morreu sem realizar o desejo de ver o filho militar, forjado na refrega e no fogo. Viu-o apenas receber o bastão e o lenço azul dos escoteiros, um menino de sardas, contaminado por versos.

— O que estragou seu humor? — o amigo queria saber.

— A reunião do condomínio.

— Muito bom.

— Porque não foi você quem aturou dezenove imbecis falando através de uma plataforma Zoom. Os caras ficam mais arrogantes online.

— Só tinha homens?

— E cinco mulheres. Apenas duas falaram, três se esconderam por trás dos maridos.

— Sabia que o seu prédio está numa exposição virtual, no Museu da Fundação Joaquim Nabuco?

— Sério?

— Ilustrando a permanência do modelo colonialista e patriarcal da Casa Grande e Senzala. Na foto, os morros de Casa Amarela aparecem por trás dele. Você escolheu bem onde morar.

— E ia morar onde?

Dois homens brancos, um alto e corpulento e outro de menor estatura, balançando a bunda a cada passo, caminham e conversam. As máscaras exigem um esforço adicional da voz para conseguirem se ouvir.

— Escutou o que eu falei?

— Distraí-me com aqueles dois caras. Sai cada figura do esconderijo.

— Mas não sai do armário.

Os militares também não saem dos quartéis, nem largam o osso do poder, roem-no até o tutano.

Fios telefônicos obstruem a calçada.

— Deu uma pane na internet de casa.

— A minha não teve problema.

— Veja a exposição, seu edifício ficou imponente. Traz a assinatura Moura Dubeaux, a construtora que já pôs abaixo metade do patrimônio arquitetônico do Recife, sobretudo o civil. Os caras são iguais à Rainha de Copas, de Alice no país das maravilhas. Não podem ver um casarão antigo com um terreno ao lado que gritam: “Cortem a cabeça!” No caso deles, a sentença é “ponham abaixo!” E tudo em conluio com a prefeitura, o governo do estado e a marinha.

Claudio metralha os desafetos, não descansa a língua um segundo, não perdoa os inimigos, nem os amigos.

— Olha o nome que botaram no teu prédio: Edifício Engenho do Prata. Os moradores devem sentir nostalgia dos engenhos.

— Eu não sinto.

— Desculpe, esqueci, você é um coronel sertanejo igual ao que governou Pernambuco como se fosse uma capitania hereditária.

Claudio gargalha provocativo.

— Bata mais leve ou desisto da caminhada.

— Outro equívoco, você não é da Serra do Araripe, é do Sertão dos Inhamuns.

Tosse e chuta uma lata de refrigerante.

Ele se magoa, encolhe querendo parecer menor, sente o chute como se tivesse sido desferido no próprio traseiro, apenas não gane como os cães de rua. Habituou-se ao orgulho pernambucano, à arrogância recifense, ao Capibaribe e Beberibe formando o Atlântico. Fizeram a Revolução de 1817, a única anticolonialista do país.

— Se orgulhe e chute à vontade, admiro o passado de vocês. Apenas o passado. O presente é uma vergonha.

— Nunca pensei que tal mundo

Com sermões o implantaria.

— E admiro os poetas, especialmente esse Auto do frade, de João Cabral.

Volta a encolher-se, parece oprimido pelas ruas dilapidadas. Lembra versos de Joaquim Cardozo, um poeta esquecido, mas silencia. Seu filho considera sinal de envelhecimento quando uma pessoa começa a cantar trechos de músicas ou dizer poemas a cada impressão do mundo.

Arrepende-se de ter saído, mas o psiquiatra que lhe prescreveu antidepressivos recomendou caminhadas. As quarentenas tornaram as pessoas mais loucas, não apenas em Portugal, no mundo inteiro.

Claudio põe a mão em seu ombro. Ele sente o calor da mão grande e ossuda. Ganha alento e se arrisca a dizer os versos de Cardozo:

— Velhas ruas!

Cúmplices das trevas e dos ladrões,

Escuras e estreitas, humildes pardieiros.

Quanta gente esquecida e abandonada!

Claudio consulta o relógio, cumprimenta uma pessoa que se aproxima em sentido contrário e retoma a conversa, indiferente aos versos.

— Ainda não sei por que brigou.

— Você não para de falar. Parece uma matraca.

Tocam corneta no quartel, um som desafinado e histriônico.

— Briguei porque sou contra vigilância armada.

— Tem isso no seu prédio?

— Tem. Uma moradora perguntou se eu amo a vida. Respondi que sim, mas não sou refém dos perigos da cidade, nem gosto de armas. Relataram assaltos e tiroteios noutros condomínios. Só pensam em segurança, em ganhar mais dinheiro e blindar os carros. Um deles contratou guarda-costas. Fazem reformas milionárias nos apartamentos e se trancam neles. Nem tomam conhecimento da área coletiva. Nem sabem o que significa coletivo ou social. Cuidam apenas de seus bunkers.

— Não se queixe, você está entre iguais.

Claudio ri, mas é impossível adivinhar a expressão de seu rosto por baixo da máscara. Ao final de cada fala, emite um guincho, como se uma pedra se alojasse na garganta e ele precisasse eliminá-la. Mastiga o cascalho e só depois de bem triturado volta a falar.

Foi um dos primeiros a contrair a Covid-19, meses depois contaminou-se novamente. Impossível saber por qual cepa, já que somos um laboratório de vírus.

Aceleram o passo, o quartel fica para trás nesse primeiro giro.

A cada obstáculo, Claudio põe a mão no ombro do amigo, tentando desviá-lo de perigos, sem lembrar o uso recomendado de álcool gel nas mãos, antes e depois de qualquer toque. Andar pelas ruas é uma prova de obstáculos: buraco, rampa, tapume, metralha, lixo, cercado, papa-metralha, tonel… A cidade se desfaz da memória de casas, jardins e quintais. Vítima do desamor de seus habitantes, entrega-se à ganância de empreiteiras e construtoras. A sombra das árvores é substituída pela sombra dos edifícios com muitos andares.

— Tem árvores no seu prédio gigantesco?

Claudio carrega nos adjetivos, quando deseja insultar alguém.

— Algumas palmeiras.

— Imperiais, com certeza. Trazidas pelos colonizadores portugueses, plantadas pelo príncipe regente. Dava distinção aos proprietários de cafezais. E aos usineiros também.

— Bobagem.

— Bobagem, nada. É um símbolo de status social. Você mora com a elite econômica.

Ri, tosse, ajusta a máscara com as duas mãos, o que não é recomendado. A máscara nunca deve ser tocada antes de se lavar as mãos e pôr álcool gel, não pode ser guardada no bolso, nem pendurada na cadeira.

— Já falei que essa não é minha gente.

— E quem é sua gente?

— Os catrumanos que fuzilaram em Canudos, bombardearam no caldeirão da Santa Cruz do Deserto, deixaram morrer de fome e doenças nos campos de concentração do Ceará, na seca de 1932.

— Bonito. Mas você ampliou o significado de catrumano.

— Pare de me questionar.

— Catrumano é usado por Guimarães Rosa, no Grande sertão: veredas, para se referir à gente miserável que habitava o deserto sertanejo. E você se considera um catrumano.

— Não propriamente, mas esse é o meu povo.

— Está sofismando. Nosso povo é aquele que consideramos em tudo igual a nós. Riobaldo intui que a miséria excessiva está aquém de qualquer possibilidade de convivência, de qualquer padrão moral, de qualquer romantização: ela é feia, suja e perigosa.

— Você pensa assim?

— O texto é de Walnice Galvão, apenas memorizei e repito. Riobaldo sentiu medo dos catrumanos porque teve consciência de que não pertencia àquela classe e também porque sentiu necessidade de dominá-la.

— Dominar os miseráveis?

— Sim. É um sentimento mais verdadeiro do que o seu. Ou se acha um seguidor do Conselheiro?

Ele lembra Maiakovski, ao passar na segunda volta em frente ao quartel, o mesmo onde se negou a servir à pátria. E se tiver uma nova ejaculação! Sobe o pau da cancela, sinaleiras vermelhas acendem. Três carros ganham a rua, cheios de militares. E todo esse exército aguerrido, aonde vai confabular? O que tramam contra nossa saúde ameaçada pelos vírus? Gente ociosa, sem nada de bom a fazer.

Nenhum milico usa máscara, os oficiais exibem ventres salientes, o último veículo é um caminhão cheio de soldadinhos verde oliva, risonhos e engraçados.

Quarentena é inútil contra eles —

mandolinam por detrás das paredes:

“Ta-ran-tin, ta-ran-tin,

Ta-ranten-n-n…”

Crianças adoram circo, palhaços e malabaristas.

Ele aproveita a parada obrigatória e descansa, conta as batidas do pulso, borrifa as mãos com álcool e ajusta as máscaras sem os cuidados preconizados.

Não há sorveteria aberta, nem cafés e nem bares. Na praça com os lagos de Burle Max, lavadores de carro entregam o corpo sujo às moscas. Rapazes e moças, que compravam e fumavam maconha debaixo das árvores, temem descer dos prédios. Fumam em confortáveis varandas e desaquecem o mercado. As chamas dos borós e cigarros de tabaco, vagalumes acesos na noitinha, se apagaram. O vírus espiona e impõe medo, mais que os soldados circulando. Sem clientes de cannabis e sem carros que possam lavar, os flanelinhas pedem uns trocados para o gás de casa e o remédio do filho doente.

Passam ao largo dos flanelinhas sem causa política.

Longe de alcançar a totalidade holotrópica, o oxigênio rarefaz no cérebro como o ozônio na estratosfera. A bolha de gás carbônico acumulado no interior da máscara pode explodir a qualquer momento e nem será por uma causa justa. O que é justo? A luta que fantasiou travar ao lado dos conselheiristas contra as tropas republicanas, no arruado de Canudos?

Vítor se levanta de uma cadeira de plástico e vai até ele. Pede dinheiro. Claudio prossegue a caminhada, não pode desaquecer. Vítor está sempre chapado, emagreceu bastante e o rosto lembra um boneco de cera de Madame Tussauds. Os flanelinhas da praça precisam comprar bujões de gás e medicamentos para os filhos. Se ele der vinte voltas, ouvirá vinte vezes a mesma conversa e terá de abrir a carteira vinte vezes. Deixa-se abordar, tornou-se uma droga de fácil consumo. Vítor afundou no crack, mal consegue lavar os carros. Largou a companheira e o filho e mora com um travesti. Esconde a muamba no meio das plantas aquáticas. Antes da pandemia, todos fumavam juntos. Um especialista saberia distinguir pelo cheiro a qualidade da cannabis consumida nos vários bancos da praça.

Vítor barganha, o preço do bujão de gás subiu, houve vários aumentos durante a pandemia. Sérgio, um rapaz negro que sofreu acidente de moto e anda com dificuldade, percebe o movimento suspeito e se aproxima. Também precisa de dinheiro para o filho doente. O repertório é o mesmo, falta imaginação aos flanelinhas, argumentos mais convincentes.

— Como explica a exposição do Museu Joaquim Nabuco? Fotografaram seu edifício com os altos de Casa Amarela ao fundo. Casas amontoadas sobre casas, crescendo em andares, à margem de barreiras. De vez em quando deslizam e soterram quem mora mais abaixo. O curador argumenta que o modelo colonialista e patriarcal da Casa Grande e Senzala permanece vivo na sociedade recifense. Se a sua gente está do outro lado, por que não se muda para um morro de Casa Amarela?

— Você quer que eu enlouqueça como Tolstói? Que largue a família e o conforto para morrer numa linha de trem?

Ele se chateia com a indolência dos flanelinhas, o modo como se deitam na grama da praça, a cara para cima e a boca aberta, expondo os dentes que depressa irão se estragar. Tudo apodrece ligeiro nos rapazes de beleza fugaz, são frutos dos trópicos, de pele suja pelas tatuagens enjambradas, cicatrizes e deformidades por acidentes de moto, indiferença intelectual. Nunca pergunta até que séries cursaram, somam e subtraem os ganhos pequenos do ofício não regulamentado, biscates e contravenções. Conhece e cumprimenta a todos, há os donatários de pontos de estacionamento e lavagem e alguns piratas que buscam estabelecer um território na capitania, mas depressa são enxotados, às vezes apanham forte e precisam se aquilombar noutros becos.

É duro viver, romantiza que é maneiro apenas para as moças e rapazes dos edifícios em volta. Antes da pandemia marcavam presença nos bancos, queimando fininhos em grupo e levando bagulho para casa. Cumprimentavam os trabalhadores flanelinhas traficantes com o punho. Íntimos, fumavam do mesmo toco salivado, como se fizessem parte de uma democracia racial e social de brancos de ascendência portuguesa, holandesa e judaica com mestiços de Gilberto Freyre, que nunca ascenderam da senzala à casa grande e parecem ter se acostumado ao vinhoto da cana, sem provar do açúcar refinado.

Ele supõe ter raiva de seus iguais ocupando os maiores espaços da cidade, desde a chegada do administrador colonial português Duarte Coelho. Se revolta quando lê sobre o massacre dos índios caetés, no lugar Igarassu, onde mandou-se erguer a Igreja dos Santos Cosme e Damião, em louvor à vitória de católicos sobre os gentios. Todos dizimados com seus arcos e flechas pelos canhões do capitão-donatário, municiados de pedras, pregos, bolas de ferro e pólvora, instalados nos conveses da frota naval ancorada num braço de mar.

A bordo, assistindo ao extermínio dos nativos, aquele que se tornaria pai de numerosa prole pernambucana, o considerado herói Jerônimo de Albuquerque Maranhão e sua irmã Dona Brites de Albuquerque.

Ele prefere negar seu passado e presente branco e imaginar-se ao lado dos catrumanos flanelinhas traficantes de maconha, que de noite retornam aos puxados nos morros, aos quartos de nove metros quadrados sala cozinha banheiro, onde enchem o juízo de aguardente e big brother e retornam no dia seguinte à mesma vidinha, sem questionar a sub-humanidade em que se esfumaçam, nem invejar o carro que lavam porque aceitam que não é deles e nunca será. Até o dia em que…

Nesse dia Ele se transformará num Antonio Conselheiro sem fé religiosa ou num Beato José Lourenço sem beatitude, e, e, e,

— O que você imagina fazer ao lado dessa gente, homem de muita fé? pergunta Cláudio, essa turma só pensa no bujão de gás e na oportunidade de ir ao Shopping Rio Mar.

As moças e os rapazes dos edifícios fumam maconha na praça e nunca são incomodados pelos policiais homens fardados dando voltas e garantindo a segurança deles. Quando pedalava a bicicleta numa rua de Águas Compridas, onde aluga o quarto, André foi abordado por dois militares que perguntaram pela maconha. Falou que não era traficante, apenas consumia. Antes de sair de casa, tinha fumado com a mulher e o sogro um fininho do tamanho de um charuto e os meganhas sentiram o cheiro de longe.

Revistaram-no e como não acharam nada, decidiram dar umas porradas preventivas, na presença dos vizinhos, que olhavam a cena acostumados e indiferentes. André, protestou, mesmo sabendo que suas queixas só complicavam a situação. Ofendido, com o rosto inchado e sangrando, apanhou a bicicleta e foi queixar-se aos colegas da praça, que avaliaram o estrago no rosto, os dentes conservados inteiros, alguns hematomas e equimoses e consideraram ganho para quem habituou-se a levar o pior sempre.

Com apenas quinze anos André foi viver com mulher de vinte e sete, que pegava arrego na casa da avó, aposentada de um salário mínimo. André ainda não completara vinte e três anos e já fizera um périplo por cinco esposas diferentes, nas quais emprenhara quatro meninos e uma menina. Alto, pernas finas, sempre de calção, camiseta regata e sandálias havaianas, administrava os estacionamentos da rua dando gritos e orientando as manobras. Não sabia pilotar um carro mas ordenava os giros e pedia pagamento adiantado, mostrando uma cartela ou falando no leite das crianças que nunca criou nem educou.

A pouca luz na praça realça as sombras. Dos apartamentos descem empregados puxando cães pela coleira, recolhem cocô em sacos plásticos e jogam nos troncos das árvores e canteiros de flores. Usam máscaras no queixo ou cobrindo apenas a boca. Os narizes sobressaem nos rostos como as bolotas vermelhas dos palhaços.

Quando chegam ao primeiro jardim, na última volta da maratona, Claudio chama atenção para um aglomerado de pessoas no território dos flanelinhas André, Vítor e Sérgio, onde o paisagista Burle Max construiu o maior dos três espelhos. Anderson e Bruno, que brigavam para lavar um carro e faturar, largam os baldes cheios de água suja retirada dos tanques e correm para o meio da confusão.

Dezenas de entregadores delivery, estacionados com bicicletas e motos em frente aos poucos restaurantes funcionando, ariscam-se a perder as chamadas para conferir o que acontece. Gritos, assobios e torcidas lembram as arquibancadas de uma partida de futebol, os desocupados também se agitam em brigas secundárias ao jogo principal. A centelha de ódio se transforma em fogo, se alastra com a rapidez das fake news, inconsciente, irresponsável. Algo mais ordenado poderia mover a onda noutra direção, igual a maré viva em lua cheia e nova, enchendo, secando, porém nada se delineia no horizonte, e todos se encaminham para coisa nenhuma.

Claudio acelera o passo e Ele fica para trás, temeroso de se aborrecer com o tumulto. Cansou de presenciar arruaças. São orgásticas, atingem o clímax de violência e tragicidade e se esgotam, se apagam. Se há fumaça há fogo? Aqui, apenas fumaça.

O trânsito alcança o máximo congestionamento, o barulho supera os decibéis permitidos por lei, ninguém sabe para onde seguir, nem quando tomará a primeira dose de vacina. No ponto oposto, duas dezenas de mulheres e homens arriscam a saúde agitando bandeiras vermelhas. Pedem a restituição dos direitos políticos de um candidato que foi preso quase dois anos, injustamente. Há meses, chegam às quintas-feiras com microfones e caixas de som e bradam discursos libertários. Nenhum flanelinha ou entregador a domicílio se mobiliza. Apenas os cães ladram forte.

Um vendedor de pipocas conta a Ele que a ex-mulher de Vitor trouxe o filho de quatro anos, um menino magro e de cabelos ralos, para ver o pai e pedir dinheiro para o gás e a comida. Falta tudo em casa, desde o início do Tempo de Ira e da pandemia, quando os pobres voltaram à condição de miseráveis e a passar fome. A mulher parte em cima de Vítor, bate e dá chutes nele. Ninguém se dispõe a separar o casal, todos querem ver sangue, de preferência muito, como nas rinhas em que os galos se atracam com os esporões e os bicos, se arrancam as cristas e furam os olhos, rasgam-se os pescoços e os peitos até se matarem. Para decepção da plateia, Vítor não contra-ataca, somente protege o rosto.

Alguém compra um saco de pipocas e dá à criança abandonada entre os adultos, assistindo ao espetáculo sem compreender. Vagabundo, a mulher insulta, cachorro, grita cada vez mais forte e reclama que trocou a mulher e o filho por um sujeito nojento e prostituto. Parte novamente em cima e consegue morder o pescoço de Vítor, mesmo usando a máscara ela morde forte com os caninos vampirescos, a máscara branca se tinge de sangue, o mesmo sangue que o rapaz tenta estancar com a flanela de seu trabalho.

A mulher não desiste, arranca o calção do corpo moído de pancadas, expõe a cueca suja e o sexo que encheu-a de esperma em incontáveis noites e manhãs, até o seu útero gerar o filho que perambula indefeso pela praça soturna. Quer o dinheiro do gás e da feira, saia de onde sair, até mesmo do bolso dos que agora tentam imobilizá-la, segurando os braços e as pernas incansáveis.

No terceiro círculo do inferno, Claudio ri do espetáculo despudorado, em que tudo se escancara, até os genitais sem expressão. A mulher atira longe a máscara ensanguentada, não pensa em reaproveitá-la lavando, nem desiste da luta. Recua e volta, se atira tantas vezes sobre o homem que esgota a força e o repertório de insultos e chora. Chora chorando, com os olhos cheios de lágrimas salgadas. Esquece o filho pequeno, não se importa com seu paradeiro, os sentimentos maternos são pareados aos do pai que o abandonou.

Os cachorros ladram alto, não há lua cheia nem é meia noite de quinta para sexta-feira que justifique o clamor. Talvez alguém ali seja o sétimo filho homem de uma progênie de sete filhos homens, ou bateu na própria mãe e condenou-se à sina cruel de correr enlouquecido por cemitérios e portas e nunca conhecer descanso. Mas não é isso, nenhum deles é lobisomem por destinação ou moléstia, apenas não conseguiram escapar à maquinação do colonialismo, à força dominadora da escravidão, do patriarcalismo, da desigualdade.

De longe, alguém apela para não esquecerem as máscaras, é necessário usá-las e prevenir a Covid-19, apesar de o presidente da república fazer campanha contra o uso delas.

— As máscaras, grita um coro nos apartamentos em volta, os patrões ordenam que os empregados subam com os cães assustados.

E Ele sente necessidade de que algo externo aconteça e arranque os catrumanos da indiferença e os afaste da morte que se aproxima lentamente. E intui horrorizado que essa força é externa e não interna. Assiste ao combate por um botijão de gás e percebe que no interior das pessoas tudo está calcinado, esvaziado, e que elas são indiferentes a tudo e não fazem planos para além do dia seguinte.

Quando olha as fotografias do massacre em Canudos e no Caldeirão, se pergunta como deixaram aquilo acontecer e sonha em lutar ao lado daquela gente. Imagina-se de metralhadora em punho defendendo o arraial erguido no deserto pelos sertanejos, trabalhadores da terra e não jagunços como Euclides da Cunha os deformou e diminuiu. Mas agora os seus pés pesam como o chumbo, impedindo-o de se mover. Olha a dispersão dos que assistiam ao teatro ruim, deseja enxotar os rapazes para o trabalho de flanelinha, embora nem haja carros para lavar e o ofício humilhante e clandestino só aumente a impotência para a vida e os aprofunde na miséria.

O importante é que Ele ainda não morreu. E o que significa morrer para um poeta? Poderia não ter saído de casa ou nunca mais sair de casa, para não expor a sua incapacidade de ação. No exército, recebeu uma carteira de reservista com o carimbo de incapacidade física temporária. Apenas física? se interroga.

O meninozinho caminha com o saco de pipocas. Um dia, se sobreviver tanto, poderá ser como o pai. Agora, os cabelos são escassos e as perninhas finas mal o sustentam. Mesmo assim, desce os degraus de pedra que o separam do espelho, onde o pai tira água para seu trabalho de lavar carros. A mãe nunca falou em ninfeias ou vitórias régias, talvez porque nunca se interessou em saber o que fossem, mais provavelmente porque nunca teve chance de saber o que fossem, mas o menino se encanta com as flores. Debaixo de camadas de lodo e lixo, peixes e tartarugas se movem e se aproximam da superfície. Por intuição, o garoto percebe o que desejam e divide suas pipocas.

De repente, Ele também sente fome, mas não tem forças de ir a um restaurante. Ali perto, no bistrô de um francês que participou do movimento estudantil de 1968, em Paris, conheceu Jean-Paul Sartre e tinha a carteira do partido comunista, servem o melhor filé da cidade. Talvez escute do chefe, pela enésima vez, que rasgou a carteira do partido no dia em que ficou sabendo que Sartre, depois de sua visita à Rússia, omitiu para os leitores e discípulos os horrores cometidos por Stalin — O cidadão soviético é completamente livre para criticar o sistema, mentiu. Despudorado, mas nada comparável ao apologismo da cumplicidade de Bertolt Brecht, que defendeu e apoiou o Grande Pai Assassino Stalin.

Lembra-se, com alívio, que o restaurante está fechado por causa da pandemia.

Ao passar debaixo de uma árvore, ouve os gritos da turba se dispersando.

Claudio emerge da sombra e segura seu braço com firmeza.

— E agora, poeta? pergunta com brusquidão.

*Os versos de Maiakovski foram traduzidos por Haroldo de Campos; as citações de Varlam Chalámov, por Denise Sales e Elena Vasilievich.

>>> Leia resenha do livro de crônicas A arte de torrar café.

Ronaldo Correia de Brito

Nasceu no Ceará e vive em Pernambuco. É contista, romancista e dramaturgo. Autor do romance Galileia, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Publicou ainda os volumes de contos Faca, Livro dos homens, Retratos imorais, O amor das sombras e os romances Estive lá fora e Dora sem véu. Tem livros e contos traduzidos para o francês, espanhol, inglês, alemão, italiano, búlgaro, húngaro, hebraico, e adaptados para cinema e televisão.

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