O múltiplo inquieto

Além de escritor, Wilson Bueno foi editor, jornalista e agitador cultural. E sua obra precisa ser redescoberta.
Ilustração: Wilson Bueno por Ramon Muniz
01/07/2014

A literatura, para mim, é uma coisa só, e única e insubstituível. Não viveria sem ela. É através dela que me salvo de mim mesmo todos os dias. A minha literatura é, ou pretende ser, o rastreamento dos caminhos e das sendas e — por que não? — dos imprevistos tropeços no escuro.
Wilson Bueno em entrevista a Manoel Ricardo de Lima, Germina, 2007.

O avião pousou precisamente às duas da tarde. A lufada de ar glacial gelou mãos, pele, pés, ossos e atravessou a camiseta, a blusa de lã, o casaco e tudo o mais que carrego. Cruzo os braços e me encolho na poltrona do ônibus executivo em direção à casa de um amigo, bairro do Batel. Ao deixar São Paulo eu já a esperava, mas a frente fria mais parece uma provação do que mera situação climática. Enquanto o ônibus rodopia lembro que esta é a minha segunda vez na cidade de ruas verdejantes. A primeira foi justamente para entrevistá-lo. Passo a mão na janela e vejo os tubos de vidro dos pontos de ônibus. Voltei para rever você, mano.

O ano era 1990 e o país estava mergulhado na mais profunda crise econômica. Eu folheava pilhas de revistas e jornais com imenso tédio. Havia fugido de uma aula de Jornalismo e fiquei banzando na biblioteca do Decom, o Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa. Ainda a queda do muro de Berlim e o confisco da poupança perpetrado por Fernando Collor, quando um encarte caiu. Era o Nicolau. Estava organizando um evento sobre literatura e jornalismo cultural com uma amiga do curso de Relações Públicas e procurávamos alguém especial, mas quem? “O que querem esses estudantes?!” Ouvíamos essa frase todos os dias ao percorrermos os corredores da UFPB porque o evento não era iniciativa do curso nem da Reitoria. Corta e meses depois estamos nós jantando com Rachel de Queiroz, Zuenir Ventura e aquele pelo qual mais lutei: Wilson Bueno.

Eu era um quase etíope de tão magro e talvez por isso fui convidado de última hora para acompanhá-los à recepção oferecida pelo governador Tarcísio Burity. Sorria deslumbrado o jovem de vinte e poucos anos que morava numa república, mas agora estava ali comendo caviar. E então nesta noite o paranaense me ouviu desabafar sobre a clássica divisão entre jornalismo e literatura. Ele me disse para concluir logo o curso e escrever. Também vivia essa sensação e, de uma forma ou de outra, tudo sempre será difícil, concluiu. Mas você não é um autor consagrado?!, perguntei. Ele sorriu e pacientemente explicou ao garoto sobre a sina e a sofreguidão de ser escritor neste Brasil. Depois de meses lutando com palavras ainda tinha de conseguir editora e de lidar com livreiros, distribuição, a crítica, o leitor desinteressado… “Tem de gostar demais desse negócio!”, frisou. Era tarde da noite quando nos deixaram na Praia de Tambaú e continuamos a conversa. Em pauta, a falta de rumo da minha e da sua geração, aquela que descaretou o mundo (expressão dele). Amanhecia quando nos despedimos. Um homem alto, bonito, mãos e voz firmes, mas o que mais me chamou atenção naquela noite foi a sua certeza inegociável pelo ofício da literatura. Nenhuma dúvida ou titubeio nesta vocação. E a preocupação com o país, isso porque literatura para ele era uma espécie de missão coletiva — impressão que viraria pauta ao entrevistá-lo.

Dez anos após esta noite, estou a caminho de Porto Alegre, onde tenho entrevistas agendadas com Moacyr Scliar, Luis Fernando Verissimo e Lya Luft (que resultarão no livro 21 escritores brasileiros) e resolvo entrevistá-lo. Por acaso ele se recordaria daquele jovem que…? Me recebeu de braços abertos em seu estúdio, fundos da casa onde morava com os pais, na rua João Batista Trentin. As paredes repletas de livros dispostos em prateleiras brancas. E então lhe fiz a pergunta que nasceu daquela minha impressão e que iria reverberar nas outras entrevistas.

11 de agosto de 2006. É o seu dia na Flip, a Festa Literária de Paraty. Ele fala ao lado de Ignácio de Loyola Brandão e Miguel Sanches Neto. Estou na segunda fila e me sinto feliz por ele. Tentamos almoçar, mas as agendas não batem e o reencontro não aconteceu. Foi a última vez que o vi.

Jaguapitã, PR
Almoço no Shopping Crystal e saio caminhando pela rua de pedregulho. Nada de sol: frio e chuva. Estendo a mão, mas os táxis não param, embora estejam vazios. Só meia hora depois consigo um.

Quem me recebe é o primo, o psicanalista Luiz Carlos Pinto Bueno, guardião do acervo de Wilson Bueno. Está aposentado e pode se dedicar à psicanálise e em cuidar das coisas do parente. Me mostra caixas e caixas de preciosidades que guarda no primeiro andar de sua espaçosa casa do bairro Jardim Botânico. Fala com muito carinho do primo. Vejo seu RG, algumas fotos, originais, livros, cartas, manuscritos… Não é um reencontro fácil, pois só agora pareço me dar conta de que tudo é passado. O que li nos jornais parece se concretizar. Falamos pouco, como que para nos desvencilhar rapidamente, sobre a noite de 30 de maio de 2010, quando ele foi encontrado morto em seu escritório com a marca de uma faca cravada no pescoço. Na manhã seguinte, jornais e tevês anunciam: Escritor Wilson Bueno é assassinado. Dias depois, um rapaz confessou o crime. Foi julgado há pouco, considerado culpado, mas libertado. O Ministério Público recorreu e o caso deve ser reaberto.

A sua morte foi brutal, como costuma ser todo assassinato. Um desfecho trágico que abriu um flanco, encerrando uma trajetória literária plena de realizações. Muito além do jornal que o deixou conhecido, Wilson Bueno foi o enfant-terrible que morou no Solar da Fossa (Rio de Janeiro) na década de 1970; o hippie, quando largou tudo e foi vender sandálias em Arembepe, na Bahia, e o escritor que em tantas madrugadas teceu cerca de vinte títulos entre romances, contos, poesias, crônicas e infantis. Todos os gêneros foram exercitados por esse homem que não se chamava Raimundo, mas que alcançou vasto mundo cultural, tendo atuado também como editor, jornalista, resenhista e agitador cultural. Ele foi quase trezentos e cinquenta e por isso é difícil aprisioná-lo num perfil, homem e obra avessos a classificações, signos da diversidade de vozes e papéis, emblemas do seu tempo.

De origem pobre, nascido na pequena Jaguapitã, norte do Paraná, no dia 13 de março de 1949, filho de seu Valdomiro e dona Cida; ele, lavrador (mais tarde, motorista de ônibus em Curitiba); ela, costureira, família que resumia a miscigenação dos trópicos: origem espanhola, portuguesa e alemã. “Sou um bugre”, resumia Bueno ao contar como a bisavó índia foi laçada no interior paulista por um alemão. O fato é que começou a escrever crônicas e a publicá-las aos 14 anos no jornal Gazeta do Povo. Alguns anos depois seguiu pro Rio de Janeiro, onde trabalhou na rádio Globo e no jornal O Globo. De volta a Curitiba, manteve uma coluna no Correio de Notícias com o sugestivo título de Conversa vadia, e foi assessor de imprensa do Teatro Guaíra, quando surgiu o convite que mudaria sua vida.

Nicolau
O jornal Nicolau não foi iniciativa sua. O tabloide foi sugerido no início de 1987 por um trio que viu nele talento e coragem para comandar a empreitada: a diretora da Imprensa Oficial, Gilda Poli; o secretário de Cultura, René Dotti, e o jornalista Aramis Millarch. Bueno não idealizou, mas os anos dourados do jornal aconteceram sob seu domínio e da sua brava equipe: Adélia Lopes, Ângelo Zorek, Fernando Karl, Joba Trindade, Josely Vianna Baptista e Rita Brandt, entre outros, cujo QG foi montado nos fundos do prédio da Secretaria da Cultura, na rua Ébano Pereira, no centro de Curitiba.

Encartado em dezenas de jornais, o Nicolau teve trajetória fulminante. As primeiras edições logo alcançaram a tiragem de 150 mil exemplares. Bueno editou o lendário jornal durante sete anos: de julho de 1987 a março de 1994, período em que acolheu e provocou a produção de boa parte da inteligência brasileira, sobretudo, da geração pós-ditadura militar: Alice Ruiz, Arnaldo Antunes, Helena Kolody, Jamil Snege, Manoel de Barros, Milton Hatoum, Paulo Leminski, Valêncio Xavier etc. Como editor, resistia às investidas para publicar matérias oficiais visando divulgar os feitos do governo local. Essa questão política foi um dos seus maiores entraves.

Em recente edição, o jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, dedicou número especial ao Nicolau, destacando a distribuição em escolas e bibliotecas da edição fac-símile de todos os números do jornal, que recebeu prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte como melhor veículo cultural já no seu primeiro ano e foi reconhecido pelo IWA [International Writers Association] como o melhor jornal cultural do país. Um dos colaboradores, o escritor Rodrigo Garcia Lopes, relembra: “O ambiente era ótimo, de grande liberdade… A grande estrela, até por uma questão de temperamento, era Wilson Bueno. As pautas eram discutidas coletivamente… Quando a edição saía, ficávamos todos lambendo a cria, saíamos para comemorar. A gente sabia que cada número era uma vitória, ainda mais dentro de uma estrutura oficial… Minha convivência com o Bueno era boa, ele sempre foi carinhoso e generoso comigo. Lembro-me das crises pelas quais ele passava, e os papos noite adentro tentando acalmá-lo, animá-lo. Bueno estava, entre outras coisas, bebendo muito, e quando Leminski morreu ele, como todos nós, ficou arrasado, e decidiu parar de beber. Acho que ele virou um melhor escritor e ser humano depois disso”.

Prosa e poesia
A estreia literária tardia, aos 38 anos, com o livro de crônicas Bolero’s bar, em 1986, foi saudada por João Antônio em duas páginas do jornal O Estado de S. Paulo. O livro foi reeditado numa caixa em 2007, em conjunto com Diário vagau, iniciativa do escritor Fábio Campana, editor da Travessa dos Editores. Em entrevista a Manoel Ricardo de Lima, Bueno afirmou: “Bolero’s, às vezes, dói em mim como um filme antigo e me vem a vaidade de tê-lo construído, fotograma a fotograma, como peças acabadas, prontas, retratos rebelados do artista quando jovem”.

O período que coincide com o Nicolau é de intensa produção literária. Em 1991 ele lança Manual de zoofilia e, no ano seguinte, o seu livro mais conhecido, a novela Mar Paraguayo, relato sofrido de uma marafona que repassa seus dramas. Em depoimento ao Instituto Goethe, afirmou: “Tudo me indicava a direção de um personagem que fosse um pouco a nossa alma comum, nossa alma cachorra… a linguagem expressada na novela por dois idiomas, o espanhol e o português que copulam e produzem uma terceira língua, o espanhol”.

O livro Meu tio Roseno, a cavalo (2000; finalista do Prêmio Jabuti de 2001) conta a viagem de cinquenta léguas, entre o Guaíra e Ribeirão do Pinhal, de Roseno, feita em seu cavalo Brioso, para assistir ao nascimento de sua filha com a bugre Doroí. E, assim como fez em Mar Paraguayo, essa viagem é mote para o autor praticar uma espécie de “fala de fronteira”, também realizada com a personagem da velha em seu primeiro romance, Cristal (1995).

Em pouco mais de duas décadas, WB se equilibrou entre o “tradicional” — o leitor de poetas, dramaturgos e ficcionistas canônicos, como Machado de Assis e Guimarães Rosa —, e o “experimental”, por não evitar o estranho na linguagem e nos temas de seus livros, todos eles atípicos. Trata-se de uma literatura que se transmuda o tempo todo, onde cada livro é uma coisa, marcado por uma dicção nunca esquemática. Essa diversidade de vozes e estilos, profusão de gêneros e de paródias estão entre os seus maiores legados, importante chave de leitura de seus livros, conforme Leo Gilson Pinheiro define no posfácio do livro de poesia Pequeno tratado de brinquedos (1996). Para ele, Bueno era: “escritor complexo, tortuoso, todo enredado nas curvas e labirintos de si mesmo… galga os degraus da sua Esfinge”.

Encarando a escrita como desafio, WB nunca se acomodou em escrever arrumado, uma vez que, para ele, escrever era incorporar o sujo, o erótico, o sonho, o fantástico, o grotesco, o pobre, o chulo, o animalesco, daí a sua constante recusa em apenas contar uma boa história, com começo-meio-fim. Colocando-se entre o underground e o mainstream, sua ficção sempre oscilou entre personagens marginais e a reverência e o diálogo permanente com autores de tradição literária, como Kafka (A copista de Kafka, 2007) e Machado de Assis (Amar-te a ti nem sei se com carícias; vencedor de Bolsa Vitae, 2004); livros cujos narradores perseguem uma originalidade por vezes exasperante. A busca maior que move os narradores de grande parte da sua obra parece estar em manejar a língua, obsessão que persegue um sofisticado aparato semântico despojado de limites geográficos e linguísticos, a fim de revelar angústias de personagens quase sempre à margem, distantes da zona de conforto da classe média — ponto de partida da maioria dos seus livros, que expõem o modus operandi de excluídos, como o operário, o pescador, a prostituta, o homem simples do campo.

Marca recorrente em boa parte dos seus livros é a exploração das possibilidades da linguagem, aí incluída a subversão total da língua portuguesa e a mistura com dialetos e outras falas, além da mais pura invenção, algo que talvez explique sua trajetória única, diferente, radicalmente pessoal e que destoa dos autores da sua geração, vide Ana Miranda, Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll e Sérgio Sant’Anna, entre outros. Para o escritor Joca Reiners Terron: “Suas narrativas mais apreciadas, como a novela Mar Paraguayo ou Meu tio Roseno, a cavalo, estão impregnadas de uma forma mestiça que trafega entre o lírico e o experimental, desequilibrando-se na selvageria do portunhol sem deixar de lado algum aspecto paródico (feito o machadiano Amar te a ti nem sei se com caricias e os ecos de Rosa em Tio Roseno), mas sem incorrer em pompa”.

A cidade-embrulho
Passeio sábado à tarde pela cidade gelada. As ruas desertas são dignas de seu vampiro mais famoso, e é curioso como constato na prática aquilo que ele me disse muitos anos atrás: Que Curitiba o apaixonava e o irritava na vontade de ser a cidade-embrulho, arrumada, certinha, asséptica, ideal propalado por vários políticos, como se quisessem lhe tirar toda noção de desordem, barulho, sujeira, bagunça, elementos que o interessavam. Mas procuro evitar o olhar melancólico sobre a cidade onde ele viveu desde os seis anos porque, enquanto caminhávamos pela Rua 24 horas, percebi que mantinha uma discreta nostalgia pelo que foi e não volta mais, embora confessasse ter horror ao saudosismo. Disse isso, mas logo reconheceu se pegar vez ou outra lamentando aquilo que poderia ter vivido e não foi, como o amor. “Sem amor a gente fica muito brutalizado”, me disse ao se definir como um romântico brega e sentimental. Mas algumas vezes o vi trocar essa persona de andarilho solitário pelo cara falante, histriônico, irônico, daí a dificuldade de classificação. Esses momentos de melancolia pareciam se alternar e se ocultar sob uma força que o fazia cercar-se de conhecidos e de amores eventuais, que quase sempre não se solidificavam, daí a relação de permanente assombro com Curitiba, seu lugar de conforto e de solidão.

Quando se sentia solitário, enfiava o gorro e saía sem rumo no seu Corsa, mas gostava mesmo era de caminhar. E de ficar dias inteiros só escrevendo em seu casulo. Nos últimos anos, morava sozinho num confortável sobrado, a que chamava de Palacete do Tico-tico (pássaro comum da região), e pode contar sempre com a mão amiga do irmão de criação, João Santana. Estava particularmente feliz porque acabara de se aposentar da função de assessor de imprensa da Assembleia Legislativa do Paraná e finalmente iria realizar antigos planos de viagem. Não só parte da sua literatura, mas a geografia afetiva deste torcedor do Clube Atlético Paranaense gravitava em torno de Lima, Paraguai, Buenos Aires, Montevidéu, Santiago, ruas, vielas e becos da sua amada América Latina. Só então iria à Europa. Era um militante a favor dos nossos vizinhos, hermanos quase sempre trocados pelos States.

A noite escura e nós
É noite, faz frio, chove sem parar, mas não há nada de literário nisso: falta energia no bairro inteiro. Luiz Carlos me deixou, após muito gentilmente dar voltas e mais voltas de carro procurando o acesso da rua de José Castello. Saio do carro e procuro o edifício. Uma mulher passa com um guarda-chuva, peço informação, mas ela finge que não escuta e apressa o passo. Felizmente é cedo ainda e logo acho o endereço.

Passo a sola do sapato no tapete do hall do prédio e encaro os degraus da escada que o porteiro apontou. Evidentemente, o elevador não funciona. São dezenove andares. Enquanto me lanço animadamente à tarefa quase escuto o riso irônico de Bueno me provando com esse tour de fource. Vou iluminando os degraus com o celular, o coração disparado. Enfim, Castello abre a porta do seu monte Everest com uma lanterna na mão. Nos cumprimentamos e começamos a conversar na penumbra. Ao fundo, a janela e a vaga luminosidade das velas e da cidade atravessam o vidro embaçado.

Começo a indagá-lo sobre um ponto que me parece crucial, extraído da sua crônica Wilson, enfim, publicada em 13 de agosto de 2011 n’O Globo, e reeditada em seu livro Sábados inquietos (Leya, 2012): “Wilson Bueno escreveu ficções — arriscadas ficções — que não eram bem suas. Eram suas: mas sempre narradas em línguas alheias. Com sua alma de experimentalista, Wilson se escondia a cada novo livro à sombra de narradores imprevisíveis… Sempre procurei, aflito, pedaços de sua voz em seus relatos. Nunca os encontrei”. Castello considera que Bueno agia como um médium que incorporava vozes alheias, tornando-se: “um inspirado inventor. Estranho inventor, porém, que parecia sempre ausente de suas invenções”.

Quando lançava um novo livro, Bueno o indagava: “Castello, você gostou do meu livro?” No que ele respondia: “Gostei, Bueno; eu sempre gosto, mas eu quero saber: quando Wilson Bueno vai começar a escrever?”. Ele me explica que compartilhou por diversas vezes com o amigo que aguardava ansiosamente pelo momento em que ele demonstrasse no seu texto as suas dores, as angústias, as alegrias, os seus medos, enfim, que as suas experiências também aparecessem na sua ficção, isso porque sua sensação era de que a palavra para Bueno era defesa, invólucro que por vezes atuava como escudo, forma de ele se resguardar. Castello e outros nutriam ânsia em ler as suas questões, extraídas de uma vida digna de ser contada, reinventada, reelaborada. Ele me conta isso com certa frustração porque em nenhum momento questiona o talento e a qualidade do texto de Bueno.

Diz Castello: “Para quem conhecia o Bueno sabia que ele era um homem com muitas aflições, mas estranhamente elas não aparecem no seu texto. É como se o principal dele ele guardasse; não quisesse colocar na sua literatura. Confesso que isso me dava certa aflição: procurar o homem Wilson Bueno no seu texto e não encontrá-lo. Mas talvez a jogada dele fosse essa mesmo: se esconder. Ele via literatura como jogo”.

Na entrevista que me deu, Bueno afirma: “Literatura é jogo de bandido e mocinho, gato e rato. Sou apaixonado pelos autores que tiveram a capacidade de brincar. Lewis Carrol, Edgar Allan Poe, Joyce, Borges, o maior doido que apareceu no século 20, enfim, autores que tornaram a literatura fraude, riso”. Em tempo: Castello não cobra traços biográficos de Bueno em seus livros. Para além dos diálogos com Machado, Rosa, Kafka e outros, ele gostaria de ver esse encontro de Bueno consigo. Percebo que quem fala não é apenas o crítico literário, mas o amigo (os dois foram apresentados pela escritora Hilda Hilst). Para Castello esse encontro ocorre no último livro de Bueno, quando, enfim, ele reconhece a voz do amigo: “Nesse livro eu vi questões que eram decisivas para ele. Os outros livros você pode até gostar (e eu gosto de vários), mas eu não reconheço a voz dele, algo que considero importante”.

Fiat lux. Com as luzes acesas, Castello me diz: “A voz dele aparece de forma clara em seu último livro. Ali é Bueno quem fala”. Em sua crônica, ele afirma: “Agora que está morto, e em um doloroso movimento inverso no qual, já afastada de seu corpo físico, sua voz enfim se ergue, ele nos deixa o livro que dele sempre esperei. Um romance em que não se oferece como porta-voz ou representante, mas no qual, mesmo se reinventando, Wilson se desnuda… é de longe seu livro mais importante”.

Mano, a noite está velha
Poucos meses antes da indesejada das gentes, Wilson Bueno entregou os originais à Editora Planeta daquele que seria seu livro mais pessoal, Mano, a noite está velha. Mas o romance será póstumo, só publicado em 2011.

Mano, a noite está velha é um livro melancólico e que expõe desamparo diante do pouco que restou; um diálogo com os mortos, como diz o primo Luiz Carlos. Conversa no escuro com um irmão (ele próprio?) diante do abrupto sumiço da família. Bueno tinha acabado de completar 60 anos e encara, pela primeira vez, os amigos que se foram, a velhice, o passado. É o relato de alguém que precisa enfrentar a casa vazia e silenciosa; um constatar dolorido da solidão, dos amores efêmeros, da derrubada que se fez ao seu redor. É a sua despedida. Em cena, o homem maduro tentando se reinventar após sofrer muitas perdas, daí o ajuste de contas com a sua geração, a cidade e a família desfeita. É a hora de encarar a madeleine, constatar a efemeridade do tempo, das coisas, das pessoas.

Ao morrer, Bueno não tinha descendentes nem parente direto, como filhos, irmãos, sobrinhos. Os pais, com quem morou até o fim, já estavam mortos, assim como o único irmão, Nilson. Sua referência familiar era Luiz Carlos, motivo pelo qual ele rabiscou, ainda em 1988, em tom bem humorado, uma espécie de testamento literário para Danilo, filho de Luiz Carlos, então com quatro anos. Já naquela época, sua preocupação não era legar algum bem, mas suas criações, produções do espírito, o que nos dá a dimensão de um temperamento que perscrutava o mundo a partir da literatura, seu objeto de vida, sua matéria, aquilo que compunha sua essência e identidade.

Passados quatro anos da sua morte, Wilson Bueno prossegue enfrentando bravamente o esquecimento a que estão relegados tantos escritores brasileiros. A Fundação Cultural de Curitiba abriu uma Casa da Leitura com seu nome (av. República Argentina, 3430, bairro Portão) e o jornalista e escritor Luiz Manfredini prepara sua biografia. O Nicolau persiste no imaginário de muitos, porém é imprescindível que sua obra seja reeditada, traduzida e adaptada, circulando entre novos leitores.

Desistir é muito fácil, foi a frase que você me falou na noite distante, quando o lamento nos rondava e você me disse que pois tudo seria feito para nos demover dessa ideia absurda que é ler e escrever num país onde literatura é vista como objeto de luxo. Talvez por isso todos te devemos um pouco, mano Bueno.

Suênio Campos de Lucena

É jornalista e escritor, autor de 21 escritores brasileiros e Depois de abril.

Rascunho