O mal-estar da civilização

Em "Sistema nervoso", a chilena Lina Meruane usa temas como a doença e a ciência para falar sobre dramas familiares
Lina Meruane, autora de “Sistema nervoso”
01/02/2021

Com uma narrativa não linear e repleta de fragmentos, Sistema nervoso requer uma leitura com ritmo e atenção. A obra mais recente da chilena Lina Meruane tem uma linguagem bem apurada. Nela, temas como doença e morte ajudam a compor dramas que são, ao mesmo tempo, específicos e universais. Mesmo sem muita ação ao longo da história, essas características garantem uma tensão que acompanha a leitura do início ao fim.

A protagonista não tem nome — é identificada apenas como Ela, e vive com o companheiro, Ele. Seu círculo de afetos inclui ainda o Pai, a Mãe — cujas menções intercalam entre a biológica e a madrasta —, os Gêmeos, o Primogênito, a Amiga. O recurso de não nomear os personagens parece ser justamente para universalizar suas crises.

Ela cursa doutorado em astronomia, mas tem dificuldade em escrever a tese. Um dos motivos é que parte do seu tempo é ocupada pelo trabalho como professora de Física. Chega a desejar ficar doente para ter alguns dias de folga e, assim, dedicar mais tempo à pesquisa. O pedido é atendido: a protagonista passa a sentir fortes dores e seu braço fica imobilizado. A máxima “cuidado com o que deseja” fica evidente ali.

Para além das limitações físicas, Ela sofre de um mal-estar constante por outra razão: o Pai, financiador de seus estudos, não sabe que esse investimento tem sido em vão. Ela sente que o trai por omitir qual é o real andamento da tese — nulo. Bastante presente em sua rotina, o Pai é médico e costuma interferir nos diagnósticos de outros especialistas sobre as dores da filha. O contato é sempre por telefone, pois a família da personagem mora no chamado “país do passado” (Chile), enquanto o casal vive no “país do futuro” (Estados Unidos).

Ao saber da sua morte, o pai do seu amigo sofreu uma síncope semelhante. Eram homens de artérias frágeis e pressão alta e os ataques de angústia eram especialmente perigosos para eles, disse o Pai d’Ela, como se a tristeza fosse uma função dos órgãos.

Com o braço imobilizado e a rotina cheia de visitas a médicos, a protagonista passa a revisitar doenças que já acometeram a própria família. É como se nos apresentasse sua árvore genealógica por meio das enfermidades e das formas de lidar com elas.

Além da profissão da personagem principal, a Física se faz presente no livro por meio das metáforas envolvendo o universo e o corpo humano, das comparações, dos modos de dizer. Sistema nervoso é dividido entre os capítulos buracos negros, explosão, via láctea, poeira de estrelas e gravidade. A epígrafe traz uma frase do físico Richard Feynman, cujo centenário de nascimento foi comemorado em 2018: “Um sistema não tem uma única história, mas todas as histórias possíveis”. O único diferencial na referência à protagonista sem nome são os apelidos “técnicos” que recebe do seu companheiro, como Elétron.

Corpo e mente
O tema “doença” já apareceu em outras obras de Lina Meruane. Em Sangue no olho (2012), por exemplo, uma escritora tem uma enfermidade que causa cegueira progressiva. A autora também publicou Contra os filhos (2018) e Tornar-se palestina (2019), bem recebidos pela crítica. Mas, em entrevista à Folha de S. Paulo no ano passado, a própria escritora pontua que, diferente de seus livros anteriores, mais taxativos e maniqueístas com relação às características de cada personagem (doentes e saudáveis, imigrantes e locais, bons e maus), em Sistema nervoso ninguém está totalmente são.

Foi a Mãe ou o Pai quem disse que só depois de descartar as causas físicas é que se podia aventurar uma causa de outra ordem? Foi sua Mãe quem a advertiu de que os médicos costumam desconfiar da dor das mulheres? Que muitas morriam porque um médico as mandava de volta para casa sem examiná-las? E qual deles assegurou que havia uma alta porcentagem de pessoas saudáveis em cada sala de espera insistindo em que estavam doentes?

O texto da narrativa é intercalado por notas descritivas sobre a história da hipocondria, as funções dos órgãos, sobre os avisos que a tristeza se dá por meios físicos. Questiona-se os limites da resistência à dor. As doenças e as manifestações do corpo são praticamente uma forma de comunicação entre a família, seja por uma úlcera ou um rubor na face. O Pai diz que a dor é a consciência de estar vivo.

No caso da protagonista, além dos vários exames cansativos, diagnósticos, sugestões do Pai, ela ainda precisa lidar com a docência e com o meio acadêmico em si. De um lado, os alunos que a percebem doente e revelam sua confusão mental. De outro, colegas do doutorado que a julgam incapaz de atuar na área. Os professores fogem do desafio de orientá-la. Os prazos não são cumpridos. Aí está mais uma complexidade para seu estado de perturbação e mal-estar físico. Essa teia de incômodos espalha um pouco de perturbação inclusive na leitura do livro.

E nunca deixa de perguntar o que é isso que Ela está escrevendo. Já sei que não é um romance, titubeia a Mãe tomada pela confusão. Não, não é um romance, não sou escritora, confirma a filha impaciente, é uma tese. Uma tese, repete a Mãe. Não tem trama, continua a filha, está cheia de buracos e não sei quando vou terminá-la porque ainda nem comecei a escrevê-la. Só agora estou escolhendo o tema, e sua voz titubeou embaraçada na linha.

Geografia
Lina Meruane é descendente de uma família de palestinos que buscou abrigo na América Latina para escapar dos conflitos no Oriente Médio. Hoje, vive nos Estados Unidos. Em Tornar-se palestina, ela aborda o retorno à origem familiar. Em Sistema nervoso, a escritora parece relacionar as dores a um ambiente político específico também, ainda que de forma, por vezes, sutil. O companheiro da pesquisadora é antropólogo forense, atividade que pode estar relacionada à busca de indícios de pessoas desaparecidas. A ditadura é mencionada em uma ou outra passagem.

Já os estudantes do seu pretérito país brincavam com bolinhas. Saíam para protestar em multidão com faixas, com equipamentos de som sobre o ombro, com seus irmãos pequenos, órfãos de autoridade, dançando, gritando, cuspindo, incontroláveis, quebrando janelas, rompendo fileiras, recebendo cacetadas gases jatos sulfúricos de caminhões que os derrubavam no pavimento quando não conseguiam fugir.

Também permeiam a obra histórias sobre a morte de mulheres no período ditatorial e a violência nas salas de parto. Está sempre à espreita algum comentário sobre governos corruptos, perseguição, ações da polícia. Nesse sentido, o livro se volta a reflexões sobre memória e esquecimento, e nos reforça que cada época e lugar tem suas fraturas. As dores — em diversos níveis — e as doenças também são fatores históricos, nos ajudam a situar uma realidade no tempo e no espaço.

Sistema nervoso
Lina Meruane
Trad.: Sérgio Molina
Todavia
240 págs.
Lina Meruane
Nasceu no Chile, em 1970, e vive nos Estados Unidos. Além da obra resenhada nesta edição, dela foram publicados no Brasil os livros Sangue no olho (2012), Tornar-se palestina (2019) e Contra os filhos (2018). Recebeu os prêmios Anna Seghers (Berlim, 2011) e Sor Juana Inés de la Cruz (México, 2012). Atualmente, ensina cultura latino-americana e escrita criativa na Universidade de Nova York.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho