O louco incontornável

A juventude genial de Ezra Pound, autor-tradutor de "Cathay", e um vislumbre de sua loucura, quando rendeu-se às boçalidades fascistas e antissemitas
Ezra Pound por Fabio Abreu
01/09/2021

Não houve figura mais influente e polêmica, na cena literária anglo-saxônica da primeira metade do século 20, do que Ezra Pound. Quase tudo de importante passou por ele. Aqui vai uma lista resumida: Pound foi, ao lado de T. S. Eliot, o grande dínamo do modernismo literário em língua inglesa; o principal introdutor das poesias clássicas chinesa e japonesa no Ocidente, com grande impacto no estilo literário de seus contemporâneos e sucessores; o grande motor do início das carreiras de autores como James Joyce, Ernest Hemingway, Marianne Moore, William Carlos Williams e o próprio Eliot.

Yeats, que já era um poeta consagrado quando o jovem Pound desembarcou em Londres em 1908, ouvia os conselhos de Ezra — e em boa parte os acatava —, praticamente invertendo a relação mestre-discípulo. Os beats foram intensamente marcados pela poética de Pound, sendo que Allen Ginsberg era fissurado no velho poeta, a ponto de ter passado anos tentando visitá-lo. Quando conseguiu, na Itália, em outubro de 1967, ele cantou para um Pound já idoso o Prajnaparamita Sutra, pôs para tocar na vitrola Blonde on Blonde, de Bob Dylan, e Sgt. Pepper’s, dos Beatles, fumou maconha (enquanto Pound bebia vinho) e entupiu o poeta com perguntas sobre os Cantos (recebendo respostas monossilábicas).

Pound foi um excepcional editor. Tanto como farejador de talentos como no trabalho com textos. Por exemplo, ele mexeu muito em Ulysses (apesar dos muxoxos de Joyce) e no Waste land (com a concordância agradecida de Eliot). O papel de Pound como amigo, apadrinhador e professor foi resumido por Hemingway da seguinte maneira:

Pound, o grande poeta, destinava, talvez, um quinto de seu tempo à poesia. No resto do tempo ele buscava melhorar os destinos de seus amigos, tanto em termos materiais quanto artísticos. Ele os defendia quando eram atacados, ele os punha em revistas e os tirava da cadeia. Ele lhes emprestava dinheiro. Vendia seus quadros. Arranjava concertos para eles tocarem. Escrevia artigos sobre eles. Apresentava-os a mulheres ricas. Fazia com que editores publicassem seus livros. (…) Pound me ensinou mais sobre como escrever, e como não escrever, do que qualquer outra pessoa. [Foi ele quem] me ensinou a desconfiar dos adjetivos do mesmo jeito que eu, mais tarde, desconfiaria de determinadas pessoas em determinadas situações…

Lamentavelmente, o poeta e editor genial das duas primeiras décadas do século 20 acabaria por enveredar, depois da Primeira Guerra, por caminhos desastrados e desastrosos. Pound passou a acreditar em teorias conspiratórias e a se meter em temas políticos e econômicos, em que era uma completa nulidade. Essa trajetória infeliz o levaria a romper com pessoas e instituições e a aderir, nos anos 1930, especialmente depois que decidiu viver na Itália, ao antissemitismo e ao fascismo de Mussolini.

Quando começou a Segunda Guerra, em vez de voltar para os Estados Unidos, Pound ficou na Itália, passando a fazer um programa de rádio semanal, para o regime fascista, no qual desancava seu país, a Inglaterra, e defendia uma infinidade de ideias absurdas. Poucas pessoas ouviam e quem ouvia não entendia o que ele falava, incluindo aí os oficiais de propaganda fascistas. Nos Estados Unidos, só o FBI se dava ao trabalho de acompanhar os programas. Mas acompanhava com atenção. E foi assim que o enfant terrible do modernismo acabaria, depois da derrota fascista em 1944, preso pelo exército norte-americano, acusado de traição e, nos primeiros meses, confinado em uma jaula ao ar livre, como se fosse um animal selvagem. Levado depois para os Estados Unidos, a intenção inicial da administração federal era condená-lo à morte, destino do qual ele só escapou porque, enquanto por um lado uma plêiade de amigos influentes agiu para salvá-lo, por outro, alguns membros do governo perceberam que, se executassem Pound, estariam criando um mártir. Além do mais, Pound, exceto por suas opiniões estapafúrdias transmitidas via rádio, não fez nada de realmente comprometedor, ou seja, não forneceu informações ao inimigo nem dedurou pessoas. De todo modo, o poeta foi convenientemente diagnosticado como insano, permanecendo “internado” por 12 anos em um hospital psiquiátrico. Quando finalmente pôde sair, em 1958,  voltou para a Itália, onde viveria até o fim de seus dias.

Crime e castigo
Não há explicação razoável para o fato de Pound, um poeta erudito e genial, além disso um sujeito notoriamente generoso, ter descambado nas mais rasteiras e criminosas boçalidades fascistas e antissemitas. Resumindo muito, eu arriscaria que, se Pound nunca foi um exemplo de equilíbrio mental, num certo momento da vida ele parece ter realmente pirado. A Primeira Guerra pode ter sido um fator decisivo, pois nela Pound perderia, além de amigos (inclusive um dos mais próximos, o talentosíssimo escultor Henri Gaudier-Brzeska), a crença na capacidade das democracias liberais de construírem paz e felicidade. Não poucos intelectuais, no pós-guerra, se sentiram cativados por soluções autoritárias à direita ou à esquerda. Só que Pound foi longe demais.

Mas ele foi tão fiel a seus amigos que muitos deles, inclusive judeus como Louis Zukofsky, ou da juventude, como William Carlos Williams, conseguiram, de alguma maneira, relevar as falhas de caráter do velho poeta e jamais o abandonaram (Williams, num certo ponto, não suportava sequer falar com Pound, mas não o deixaria na mão).

Hoje, acredito, Pound teria sido simplesmente cancelado, mas aqueles eram outros tempos. No último texto que publicou antes de morrer, na Partisan Review, em maio de 1949, George Orwell se manifestou sobre a escolha de Pound para receber o importante prêmio Bollingen de poesia de 1948, por seus Pisan Cantos (que falam de seu período na jaula). Os jurados eram figurões como T. S. Eliot, W. H. Auden, Allen Tate e Robert Lowell, entre outros. Eis a opinião de Orwell:

Eu penso que a Fundação Bollingen está totalmente correta se deseja premiar Pound, uma vez que eles creem que seus poemas são os melhores do ano, mas eu também penso que se deve manter na memória a carreira de Pound, sem achar que suas ideias se tornaram respeitáveis pelo simples fato de ele ter recebido um prêmio literário.

Orwell admitia que era possível separar autor e obra, mas os méritos desta não absolviam aquele. É inegável que Pound errou, mas o fato é que tampouco ficou impune. Se escapou de ser fuzilado, amargou um total de 14 anos preso, e ainda deixou de ganhar o Nobel. No fim da vida, ele admitiria, pelo menos em parte, seus equívocos. Num dos fragmentos finais dos Cantos, Pound escreveu:

Eu tentei escrever Paraíso
Não se mova
    Deixe que o vento fale
        o que é paraíso
Deixe que os Deuses perdoem o que
     eu fiz
Deixe os que eu amo tentarem perdoar
      o que eu fiz.

Anterior à loucura
Não é meu propósito, aqui, me aprofundar nesse debate. Me interessa o Pound anterior a toda essa loucura, o jovem e promissor poeta que um dia descobriu a poesia oriental e que, em 1915 publicaria Cathay, um dos livros de poemas mais bonitos e influentes dos últimos 100 anos. No Brasil, embora poemas avulsos às vezes apareçam em blogs ou antologias, o livro até hoje não foi traduzido em sua totalidade (duas grandes editoras já recusaram meu projeto para fazê-lo).

Do mesmo jeito que modernistas brasileiros como Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade queriam mergulhar na essência da língua “brasileira”, extirpando da poesia todos os floreios luso-parnasianos, Ezra Pound estava em guerra contra os ornamentos. Em 1911, junto com outros poetas, ele lançou o movimento imagista, que defendia uma poética seca, concisa e, como o nome sugere, imagética. Escrever poemas, para Pound, era cortar palavras, especialmente os adjetivos, e ir à essência das coisas.

Numa ocasião, ele estava numa estação de metrô, em Paris, quando, em meio à multidão, reparou num rosto bonito, e depois em outro, bem diferente, e num terceiro, e numa criança, e numa mulher… Pound passou cerca de três anos com aquela cena na cabeça, sem conseguir transformá-la no poema que a traduzisse. Até que, depois de muitas reescritas e, principalmente, cortes, o resultado, imagético e econômico, ficou pronto:

Numa estação do metrô

A aparição     destes rostos     na multidão     :
Pétalas     num negro, molhado     galho     .

Presente oriental
Em 1913, já vivendo em Londres, Pound foi procurado por Mary McNeill, a viúva de Ernest Fenollosa. Ela havia lido poemas e textos de Pound, conversado com uns e outros (inclusive Yeats), e chegou à conclusão que o jovem Ezra seria a melhor pessoa para dar um bom destino aos estudos de seu falecido marido. Eram muitos cadernos, com páginas e páginas de anotações, reflexões e traduções, cobrindo um vasto campo a respeito das culturas clássicas chinesa e japonesa.

O norte-americano Fenollosa (1853-1908) foi um dos primeiros ocidentais autorizados a viver num Japão que começava a se abrir ao exterior, e se tornaria um prestigiado professor de filosofia e economia na Universidade Imperial de Tóquio. Ao longo dos muitos anos vivendo entre os japoneses, Fenollosa se apaixonou pela cultura local, acabando por ser um dos primeiros estrangeiros a mergulhar com seriedade na filosofia e na arte orientais.

Pound só se deu conta da imensidão do presente que Fenollosa legou a Mary (e, indiretamente, a ele) quando começou a destrinchar as pilhas de cadernos. O que havia ali era uma espécie de “tudo o que você queria saber sobre as culturas clássicas chinesa e japonesa e não sabia para quem perguntar”. Ao mesmo tempo, teve certeza de algo que já intuía, que o projeto imagista tinha muito a ver com a poesia clássica chinesa. Nos anos seguintes, Pound deu um jeito de publicar vários textos de Fenollosa, em geral tão editados por ele que se tornaram verdadeiras coautorias, casos do estudo sobre o teatro japonês Nô (1916) e sobre os caracteres chineses (1936).

Um dos maiores interesses de Fenollosa, no Japão, foi a poesia clássica chinesa, especialmente a da “época de ouro”, a dinastia Tang (618-907). Havia, no material “herdado” por Pound, muitas e esforçadas tentativas de traduções de poemas, mas o poeta não demorou a identificar os problemas. Como Ernest Fenollosa não sabia chinês, contava com a ajuda de dois estudiosos japoneses, os professores Mori e Ariga, que sabiam (mas, descobriu-se depois, não sabiam tanto assim). Além disso, Fenollosa havia aprendido japonês, mas estava longe de ser fluente, muito menos quando se tratava de poesia clássica, de modo que um terceiro colaborador o ajudava na transposição para o inglês. No mais, a maior preocupação, nas traduções, estava com o rigor sintático, e não com o lirismo. Ao examinar o material, o olhar aguçado de Pound imediatamente concluiu que as traduções eram bem-intencionadas, mas não podiam estar certas. Um poeta chinês do período Tang podia ser capaz de muita coisa, menos escrever poemas ruins.

Pound tampouco sabia chinês (ele só aprenderia a língua anos mais tarde). Mas, de poesia, sabia bastante. Acabou por escolher 14 poemas, dentre os cerca de 150 “traduzidos” por Fenollosa, e começou um trabalho exaustivo de “retradução”, baseado em pesquisa, intuição e arte. O resultado foi publicado em 1915, com o título de Cathay (China), e incluiu The seafarer, uma adaptação de um poema anglo-saxão mais ou menos contemporâneo aos clássicos chineses (este poema seria removido de edição subsequentes, ao passo que quatro novos poemas chineses seriam incluídos). O resultado ficou belíssimo, mudando para sempre a escrita poética em língua inglesa.

Autor ou tradutor?
Desde o início, debateu-se sobre o quanto aqueles poemas deveriam ser considerados como originais ou tradução. Mas não creio ser tão difícil chegar a uma conclusão. O material ao qual Pound teve acesso estava a um bocado de distância das fontes primárias (Chinês clássico > japonês clássico > japonês contemporâneo > inglês por um japonês > inglês de Fenollosa), sendo que nenhum dos tradutores era poeta, e os japoneses nem mesmo eram fluentes em chinês clássico. Vejamos um exemplo no seguinte verso de Li Po (ou, para Fenollosa, Rihaku):

Versão dos colaboradores japoneses:

gathering gathering fixed clouds, pattering pattering temporary rain.

Versão de Fenollosa: 

The fixed clouds gather & gather, and the intermittent showers patter & patter.

Versão de Pound:

 The clouds have gathered, and gathered,

                   and the rain falls and falls,

 Em português, a versão de Pound poderia ser traduzida assim: 

As nuvens se reuniram, e se reuniram,
e a chuva cai e cai,

Em resumo, Cathay só pode ser lido como um trabalho original de Pound, inspirado nos chineses clássicos (com a esforçada ajuda de Ernest Fenollosa).

Para concluir, recorro a duas citações. A primeira, de Eliot Weinberger: “O livrinho [Cathay] de Pound, contendo alguns dos mais belos poemas na língua inglesa (…), em vez de acorrentar o original no espartilho das formas poéticas tradicionais, como muitos outros fizeram, criou uma nova poética em inglês, derivada daquilo que ele considerou ser exclusivo dos chineses…”. E a segunda, de William Carlos Williams, que na época em que Cathay foi lançado afirmou: “Se estes versos forem originais, Pound é o maior poeta de nossos dias”.

>>> Leia poemas traduzidos de Cathay, de Ezra Pound.

André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho