O cortejo está saindo. Não serei hipócrita em prestar uma homenagem no enterro daquele canalha.
Mais um narrador que conta sua história lá da virada do século 20. Com um personagem idoso e impulsionado pela vingança contra Machado de Assis, neste romance quase picaresco, José Almeida Júnior oferece — com alguns fatos biográficos e muita invenção — um texto inteligente em diálogo com a obra machadiana (em cenas e personagens). Ou seja, o autor homenageia o grande Machado enquanto seu narrador o destrói a cada página.
Em 1908, Pedro Junqueira acompanha o enterro de Machado — porque o odeia, claro, sem esquecê-lo. O narrador visita, em retrospectiva, sua infância, vida e amores, sempre entrelaçados à vida do escritor, grande rival e inimigo. Temos, assim, a ficção na ficção, manipulada com cuidado pelo autor. Até Sílvio Romero, que realmente odiou Machado, é invocado para compactuar com o ódio de Pedro:
— Chegou mais cedo para acompanhar o enterro? — perguntou Romero.
— Vim só para denunciar Machado de Assis. Você foi vítima dele tanto quanto eu. (…)
— (…) Ninguém vai acreditar em você.
— Não posso ficar calado, enquanto canonizam aquele patife (…)
— (…) Se dependesse de mim, aquele mulato não teria lugar na história da literatura brasileira (…). Já pensou em escrever suas memórias contando tudo o que ele fez?
À sua maneira, com o propósito declarado de vingar-se do “mulato”, que no enterro “nem merecia tão grande comitiva”, Pedro nos impele a também odiarmos Machado de Assis.
O pai de Pedro, rico cafeicultor recém-viúvo, “com mais de mil escravos”, leva-o, aos 6 anos, para morar com a tia Maria José, madrinha de Machado, no morro do Livramento. Lá, crescerá ao lado de Joaquim (nosso escritor) e Joana (astuta como Capitu), filha de “pai desconhecido” — o padre que lhes dá aulas.
Joaquim mostra-se um “menino diabo”, como Brás Cubas no Memórias póstumas. Por espírito precoce de antagonismo social e racial, o mestiço tortura o pobre menino rico (como Bentinho); egresso do luxo rural, Pedro choca-se com a libertinagem dos agregados na casa da tia. E, vítima de pesada perseguição das crianças, cai em muitas emboscadas — uma delas escatológica e inesquecível.
Talvez este romance seja ainda mais agradável para leitores de Machado: a intertextualidade é invocada a cada página. Mas, se o leitor o leu pouco o autor, também se diverte: cenas, sobretudo no início da obra, criam leitura prazerosa. Porque, com ou sem saber acadêmico, a sombra do mito se esfacela e causa interessante arrepio de leitura. Isso porque se reconstrói de dentro, uma nova biografia, antípoda de tudo o que a escola nos ensinou sobre o escritor, seu gênio e sua genialidade.
Enquanto crescem, Joaquim e Joana trocam beijos lúbricos pelos cantos, para ciúme de Pedro. Este, com a morte da tia, vai para o colégio interno e de lá para Coimbra, onde — como Brás Cubas — se bacharela em Direito. Porém, não antes de seduzir Carolina Novais, moça do Porto (sim, a futura esposa de Machado!).
Mulheres
Ponto interessante da obra, Carolina também destrói a figura serena, culta e discreta da biografia real da portuguesa, cônjuge do escritor até a morte. Esta, inventada, apaixona-se por Pedro e sabe envolvê-lo em franca luxúria — como, aliás, nota o rapaz. A sombra carnal da prostituição, discreta nos romances machadianos, aqui se torna lasciva e recorrente. A personagem, fazendo sexo experiente, traz susto e alguma surpresa.
Quando Pedro assume os negócios do pai no Brasil, descobre chocado que sua Carolina, agora no Brasil, está casada… com Machado de Assis. Novo triângulo amoroso; ambos começam um caso tórrido quando redescobrem seu amor. Machadinho, já famoso e adulado por todos, desconfia do adultério e tranca Carolina em casa — nada mais divertido e implausível frente ao casal do Cosme Velho que conhecemos.
Como acontecia em Memórias póstumas ou no conto A cartomante, marido e amante (suprema vingança de Pedro) convivem socialmente, a despeito do ódio mútuo. Pedro deita-se com Carolina, transformando-se em “comborço” (amante) da mulher do outro — como pensava Bentinho em Dom Casmurro. E, nova vingança, empresta dinheiro ao escritor — que vive em penúria —, subjugando-o mais uma vez.
Entra em cena aqui, apesar de discreta, uma análise da dicotomia social da época, em que o proprietário rural (escravista) se opõe ao intelectual urbano de classe média (liberal e abolicionista), que se mantém mal no seu emprego público. Era o caso de Machado de Assis e de outros escritores brasileiros pós-romantismo.
A mídia tem seu preço
É interessante notar que ninguém é bom ou correto nesta obra. Não há aqui — bem como em Machado de Assis — gratuidade nas ações humanas, o que parece fazer do autor um lúcido analista da obra machadiana. A mídia da época, por exemplo, no raiar do século 20, já era — bem antes da força digital — destruidora de reputações.
“Todo homem tem seu preço, especialmente os jornalistas”, diz Pedro, que manda publicar notícia sobre o adultério de Machado, com graves consequências sociais e conjugais. Machado revida, e publica, sob pseudônimo, uma dura crítica a Pedro, “abolicionista incoerente”, herdeiro de mais de mil escravos nas suas fazendas de café. A incipiente carreira é dilacerada e Joaquim Nabuco expulsa Pedro da “Sociedade Contra a Escravidão” — porta de entrada para a Câmara dos Deputados e suas regalias, entre fanfarrões e interesseiros.
Plágio?
Um evento traz grande criatividade a este romance: o ladino Machado, obrigando Pedro a esperar horas para ser atendido (embora subjugado pelo favor financeiro), aceita ler um manuscrito que Pedro rascunhara:
O protagonista de meu romance tinha que ser alguém que não tivesse nenhum pudor em escrever o que desejasse (…) [mas] eu não conseguia entrar na cabeça de um bandido. (…) Tive a ideia de substituir esse narrador por um morto. Quem melhor do que um autor defunto para contar tudo que sabe sem temer a reprovação pública?
Machado de Assis devolverá a obra com críticas contundentes e muita perversidade:
Não sei se consigo chamar isso de romance. São apenas escritos amargurados de alguém que tem raiva de ter vindo ao mundo. (…) Seu narrador é um pária. Não gera empatia nenhuma. O texto é imaturo e cheio de vícios. Até o português é ruim. (…) O enredo é péssimo (…) um texto (…) natimorto.
Pedro desiste da literatura e queima os originais. Pouco explorado narrativamente, o trecho renderia mais peso à narrativa. Tempos depois, não é que, para horror de Pedro Junqueira, Machadinho publica na Revista Brasileira, em 1881, o folhetim Memórias póstumas de Brás Cubas? Quando lê, descobre o plágio evidente e pensa na garrucha vingadora para que Machado confesse em público o plágio:
Propositalmente, ele me desestimulara a burilar o livro para que pudesse copiá-lo. (…) Mas como provaria que ele usurpara minha ideia? Eu havia destruído meus originais.
Quer dizer, o grande Machado de Assis roubou de Pedro, na ficção, o primeiro romance realista do Brasil. O famoso romance, que divide a literatura brasileira em períodos distintos, é um plágio. E mais interessante: Almeida Júnior pôs na boca do Machadinho, para desestimular Pedro, algumas das críticas que ele próprio recebera a respeito das Memórias na época.
A par dessa deliciosa embrulhada entre ficção de um, ficção de outro e história da recepção literária no Brasil, o autor prefere levar adiante os amores ilegítimos, a vida de herdeiro playboy (ou “exoneração moral de fazer algo útil na vida”), a derrocada financeira — um tanto longa —, a volta a Portugal sem Carolina. Das tabernas parte para a união com Joana, a menina que crescera com ambos e se transformara em prostituta no Brasil. Em Lisboa, por ser mulata e brasileira — segundo o narrador — sabia-se profissional com grande competência.
Remediado, Pedro viverá em Portugal com Joana e o filho, gabando-se nestas memórias de ter sido mais amado por Carolina que Machadinho — um homem traído.
A execração pública de Machado de Assis está pronta, afinal. Ou este romance não seria a realização da revanche que Sílvio Romero sugerira a Pedro no dia do enterro do velho Machado?
Este romance — que não é só a autobiografia de Pedro, mas uma biografia divertida de Machado — é didático, criativo, exalta nosso escritor — cujas biografias, aliás, já têm tanta ficção, e até fotos mais escuras. Exceto por alguns exageros (como atribuir a Pedro um brutal alcoolismo com conhaque, ou um charuto atrás do outro — o que é quase gratuito), o romance presta bom serviço à ficção.
Até um desavisado leitor descobre que “o homem que odiava Machado de Assis” só existe porque existe aquele que se odeia.