O labirinto dos homens de verdade

O senegalês Mohamed Mbougar Sarr questiona diferentes tradições e suscita um permanente e original diálogo entre moderno e tradicional
Mohamed Mbougar Sarr, autor de “A mais recôndita memória dos homens”
01/10/2023

Segundo Harold Bloom, uma decisão de ordem moral não deve ser tomada apenas a partir de uma boa leitura. Em tempos de fácil circulação de conteúdos e infinitas possibilidades de manifestação de sua própria opinião, a fala de um dos maiores críticos literários dos últimos tempos pode soar profética — embora eu prefira chamar de sintomática.

É pouco provável que Mohamed Mbougar Sarr não tenha lido Bloom. O escritor nascido em 1990, no Senegal, mas radicado na França, é detentor de uma admirável obra. O Goncourt, em 2021, não foi por acaso. Trata-se do maior prêmio da literatura francófona, que nunca antes havia contemplado a África subsaariana. Mais do que uma justiça para remediar equívocos da história, ao ler esse jovem autor, vemos que a honraria corresponde ao seu potencial.

A mais recôndita memória dos homens chegou há pouco ao Brasil. Difícil de enquadrá-lo em um gênero (é necessário?), o livro conta a história de Diégane Faye e sua busca pelo Rimbaud negro, T. C. Elimane, autor de O labirinto do inumano, que, na história, seria uma obra-prima publicada na década de 1930. O seu reconhecimento pela crítica literária parisiense do entreguerras acompanha uma denúncia de plágio e o conseguinte desaparecimento de Elimane.

Há dois anos a Malê nos trouxe Homens de verdade, com tradução de Fernando Klabin — o seu lançamento na França foi em 2018. Nele, um jovem professor universitário de Dakar se depara com um vídeo, no WhatsApp, em que o cadáver de um homem é desenterrado por uma multidão furiosa. Pensando que Sarr, neste momento, busca um lugar ao sol na literatura parisiense, podemos dizer que foi corajoso em abordar de maneira tão direta aspectos como preconceito e violência de gênero, tal como o fez nesse livro, da forma como o fez. Porém, não é apenas a coragem que lhe confere qualidade.

Em ambos romances se nota uma densidade impressionante. Tocam em pontos de nosso cotidiano, suscitando um permanente e original diálogo entre moderno e tradicional. Tudo bem que isso possa não ser novidade. Mas a maneira como Mbougar Sarr impõe esse debate é diferente.

A modorra
Em Homens de verdade, Ndéné Gueye é um desmotivado professor de literatura em Dakar. Sua existência é circunscrita pela rigorosa rotina, determinada por uma vida estável, acompanhada da clareza quanto ao conhecimento que possui e a certeza do que fazer com ele — aplicá-lo nas aulas. Uma modorra habita o seu cotidiano, a ponto de isolá-lo em um universo. Como sinaliza o protagonista:

Sempre há de haver neste mundo uma voz bem-intencionada que nos deseje o pior dos males: devolver-nos à sobriedade.

Assim, o vídeo do cadáver sendo desenterrado não poderia lhe despertar qualquer interesse. Toda a violência do ato, cometido por uma turba inflamada de senegaleses com verdadeiro ódio por um morto já enterrado, não lhe chama a atenção. É o sacolejar de sua namorada, Rama, e seus infinitos questionamentos, que lhe coloca em movimento.

O seu incômodo não é uma epifania. Trata-se de um processo que lhe obrigar deparar com a sua trajetória pessoal, bem como a religiosa família, sobretudo seu pai, em projeção como importante figura muçulmana para a comunidade local que, seguindo a tradição, deveria condenar a homossexualidade.

Para sustentar todo o embate aqui sinalizado, bem como a busca pela família do jovem violentamente exumado, Sarr sustenta longos, mas dinâmicos, processos reflexivos com a finalidade de introduzir questionamentos em Gueye. Afinal de contas, estamos diante de um professor, intelectual, repleto de certezas cultivadas na racional sociedade parisiense, onde estudou. A modorra talvez venha daí.

Mbougar Sarr insinua que a estabilidade da vida profissional de Gueye, juntamente com a experiência europeia, podem conferir uma espécie de preguiça quanto a realidades aparentemente distintas. E isso se daria em tal nível que impediria o sujeito de perceber inúmeros pontos de contato entre as culturas, como a violência cometida contra os homossexuais, assaz presente no mundo moderno ou tradicional, na França ou Senegal.

A liberdade, talvez o grande tema a conduzir a trama, é francamente questionada. Gueye pode simplesmente ficar deitado, insistindo no sono, e se sentindo incomodado por tentarem lhe despertar após transar com sua namorada. Entretanto, um homossexual sequer pode permanecer dignamente enterrado. Se uma cultura é bárbara por não seguir os preceitos ocidentais e impedir o desenvolvimento de princípios como os de tolerância e respeito, outra também o é por se manter em uma letargia amparada em sua própria arrogância de detentora do verdadeiro conhecimento.

Neste quadro, Gueye não tem como ser assertivo. À medida que segue em direção à verdade sobre o jovem do vídeo, perturba-se. Isso fica evidente após a descrição de uma personalidade folclórica de Dakar quanto à sua experiência como travesti:

Samba Awa se calou. Eu também permaneci mudo, incapaz de controlar a minha mente que, depois daquela fala, explodia em mil e uma questões.

Um fenômeno
Homens de verdade, por si só, já eleva Mbougar Sarr ao patamar de um grande escritor. A mais recôndita memória dos homens, contudo, o transforma em fenômeno. O estrondoso sucesso dos 500 mil exemplares vendidos não é por acaso. Diégane Faye, protagonista da trama, também se encontra imerso no universo da literatura. O jovem autor senegalês, vivendo em Paris, participa de um círculo de escritores africanos que possuem uma opinião bastante clara quanto ao seu papel. Ambicionam escrever sobre as culturas de seu continente de origem, desejando a autenticidade ao mesmo tempo em que almejam algum nível de reconhecimento no círculo francês, portanto, ocidental. O orgulho pela busca da originalidade duela com a frustração da dificuldade de aceitação.

Faye não tem qualquer entusiasmo em relação à sua própria, e pequena, produção literária. Depara-se, então, com O labirinto do inumano, a obra-prima de T. C. Elimane, também do Senegal, publicada na década de 1930, em Paris. Nela, encontra a autenticidade buscada por seus amigos, despertando a admiração dos poucos que lhe dedicam uma leitura atenta.

Obcecado pelo Labirinto, Faye perscruta a causa do misterioso desaparecimento de Elimane, pouco depois da publicação. Em sua investigação, descobre acusações de plágio que lhe teriam sido direcionadas pela crítica literária da época. O livro seria um arremedo muito bem feito de narrativas mitológicas de diferentes povos africanos.

A despeito de tudo isso, a obra de Elimane não deixaria de ser reveladora. Todos os que a leem sentem o impacto da capacidade de seu autor em apresentar algo bastante original. Entretanto, nada disso é suficiente para permitir a sua plena aceitação na França. A partir de então, A mais recôndita memória dos homens adquire ares de um elaborado thriller a seguir na busca pela verdade sobre Elimane e as suas motivações.

Estamos, novamente, diante de diálogos bastante elaborados. Mbougar Sarr nos entrega personagens inúmeros, bem construídos, sempre questionadores sobre suas motivações e origens. As interrogações colocadas ao longo do texto, em seu meticuloso trabalho narrativo, geram ambientes de tensão no que diz respeito às vontades de tais personagens, seus impulsos e expectativas, abalando certezas e reposicionando o óbvio.

Isso fica evidente na caracterização feita sobre Elimane. Segundo a sua editora, antes de ser visto como escritor, ele era identificado como um negro erudito, um Rimbaud negro, algo um tanto exótico para uma França da primeira metade do século 20.

O que o feriu foi vocês não o terem enxergado como escritor, mas como um fenômeno midiático, um negro excepcional, um campo de batalha ideológico. Em seus artigos, pouco se falou do texto, da escrita, da criação.

Questioná-lo a partir do plágio não é apenas rotulá-lo como um criminoso do universo literário. É, principalmente, dizer que ele seria incapaz de produzir algo original, autêntico, tal como se esperaria de uma figura exótica. Afinal, vindo da África, apenas o excepcional, o diferente, é o que interessaria. Por isso O labirinto do inumano não poderia ser aceito. Por isso histórias já existentes de povos passados não seriam admitidas, pelo menos não sem serem adornadas por extravagantes molduras.

Realidade distintas
Não é segredo para ninguém a existência de uma disputa entre duas realidades distintas: a ocidental, representada pela França, e a africana, representada por Senegal. São duas tradições, com suas respectivas culturas, constantemente abordadas nos livros de Mbougar Sarr.

Contudo, não observo que o autor deseje assumir um compromisso específico com um dos lados. E é isso o que torna a sua obra fascinante. Não há uma defesa irrevogável da noção de liberdade cultivada e defendida no ocidente moderno. Tampouco vejo-o se debruçar em tradições tribais, impondo-as com um orgulho desmesurado, independentemente de qualquer coisa. De um lado, temos uma interessante crítica à maneira como a literatura ocidental assimila as obras produzidas por autores africanos, bem como outra crítica à maneira como povos tradicionais do Senegal tratam as opções pessoais.

Mbougar Sarr torna-se um forte inquisidor da cultura europeia, ocidental, de maneira geral. Mas não se esquiva de questionar a sociedade em que nasceu e viveu durante um bom tempo. O preconceito contra o jovem defunto homossexual em Homens de verdade reflete isso, bem como a amargurada sabedoria de Ousseynou Koumakh, de A mais recôndita memórias dos homens, considerado um grande sábio de sua tribo, incapaz de perdoar o seu irmão. São infinitos os exemplos presentes nos dois livros.

Tudo isso nos faz crer que Mohamed Mbougar Sarr não aspira que o seu reconhecimento se dê no âmbito identitário. Ele não quer ser visto como um autor africano, ou imigrante. Contrariamente, anseia por ser nomeado apenas como escritor. Não por acaso produz uma obra na qual fala sobre literatura, com claras referências a alguns dos cânones mundiais, bem como à dificuldade de se produzir um livro, os desafios da ficção e o seu compromisso com a atualidade.

Culturas tradicionais devem ser reconhecidas como patrimônios. Elas devem ser divulgadas como uma forma de ampliar o nosso repertório cultural. E, retomando Harold Bloom, é justamente este aspecto o que nos distanciaria de as mantermos em um plano puramente informativo, que, conforme compreendido, não necessariamente implicaria conhecimento.

A destreza de Mbougar Sarr em trabalhar com personagens, europeus ou africanos, em meio à incontornável tensão entre moderno e tradicional é impressionante. Ela reflete a sua capacidade de observação, de diálogo com o contemporâneo, que é o primeiro ponto para construir grandes edifícios metafóricos essenciais para a compreensão de sua produção literária. Em tempos de anseio por informação (no sentido de Bloom) e urgência para se filiar a um discurso (que também podemos entender como tradição), a sua capacidade de visão é admirável.

Por este quadro, entendemos por que não podemos fazer julgamentos de ordem moral a partir de leituras — ainda mais nos dias de hoje. Da maneira como escreve, da forma como tensiona o tradicional e o moderno, como expõe distintos universos culturais juntamente com os seus problemas, suas contradições, inserindo os homens em verdadeiros labirintos, Mohamed Mbougar Sarr oferece algo que vai muito além da pura informação. Lê-lo é um bom caminho para não cairmos no exótico.

A mais recôndita memória dos homens
Mohamed Mbougar Sarr
Trad.: Diogo Cardoso
Fósforo
400 págs.
Homens de verdade
Mohamed Mbougar Sarr
Trad.: Fernando Klabin
Malê
184 págs.
Mohamed Mbougar Sarr
Nasceu em Dakar (Senegal), em 1990, e vive na França. Estudou literatura e filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, chegando a fazer mestrado em Letras. Embora muito jovem, coleciona inúmeros prêmios literários, como o Stéphane Hessel (2014), o Ahmadou Kourouma (2015), o Grand Prix du Roman Métis (2016), o French Voice Grand Prize (2016), o Mundial de Literatura no Festival Etonnants Voyageurs (2017), o Goncourt (2021), entre outros. Também publicou Terre ceinte (seu primeiro romance, em 2015) e Brotherhood (2017), os dois ainda sem tradução para o português.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

Rascunho