O ímpeto da perversidade

Boa antologia de contos fantásticos brasileiros se concentra sobre autores do fim do século 19 e início do 20
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/02/2011

Há pouco mais de uma década, era difícil encontrar uma boa antologia de contos fantásticos nas livrarias. Os interessados pelo assunto ainda conseguiam, com algum esforço, localizar edições antigas de antologias organizadas por Jerônimo Monteiro e Jacob Penteado, ou aquela célebre coletânea organizada por José Paulo Paes para a editora Brasiliense. Hoje, felizmente, esse panorama mudou. Há antologias para todos os gostos, das mais amplas — como as organizadas por Flávio Moreira da Costa, Enid Abreu Dobránszky, Italo Calvino e Alberto Manguel — àquelas com temas mais específicos, como vampiros, lobisomens ou fantasmas. Muitas dessas antologias contemplam autores brasileiros, e houve pelo menos uma delas dedicada exclusivamente a contistas nacionais: Páginas de sombra, organizada por Bráulio Tavares e editada pela Casa da Palavra. Com certeza, deve haver outras no mercado, que me escaparam.

Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira, antologia organizada por Lainister de Oliveira Esteves, é uma contribuição muito bem-vinda nessa área. Em primeiro lugar, porque ajuda a combater o lugar-comum de que não há ou nunca houve literatura fantástica no Brasil. Ainda que não haja aqui uma tradição forte como na Inglaterra, por exemplo, muitos escritores brasileiros flertaram, de maneira mais ou menos intensa, com a literatura fantástica e seus temas. E ainda o fazem.

A segunda qualidade desta antologia é fazer um recorte temporal delimitado, de uma época em que os contos fantásticos tiveram particular destaque em nossa literatura: o final do século 19 e início do 20. De modo que autores consagrados como Machado de Assis e Lima Barreto figuram nesses Contos macabros ao lado de autores pouco comentados hoje em dia, como Thomaz Lopes e Humberto de Campos. Além disso, esse recorte cronológico nos permite ter uma dimensão mais clara dos procedimentos e temas glosados pelos escritores da época.

Vale observar que não se tratam todos de contos fantásticos, ou seja, nem todos esses Contos macabros tratam de temas sobrenaturais. Muitas das histórias selecionadas tratam de comportamentos estranhos, sinistros, e “desvios” de personalidade. É o caso da obra-prima de Machado de Assis, A causa secreta, seguramente um texto incontornável sobre o sadismo e a crueldade.

O mesmo pode ser dito sobre os contos de João do Rio: “não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha”, diz o protagonista de Dentro da noite, cujo vício é o de cravar alfinetes do braço de sua amada. Interessante é que a tara chega a ser aceita pela mulher, curiosa (como o leitor) sobre os limites das convenções amorosas. Já O bebê de tarlatana rosa, um dos melhores contos do volume, é uma “história de máscaras”: um grupo de dândis se aventura nas ruas de um carnaval popular, a fim de “acanalhar-se, enlamear-se” em meio ao povo, cedendo aos excessos, “aos transportes da carne e às maiores extravagâncias”, sem se importar com as convenções da alta sociedade. O rebaixamento social corresponde à perdição moral, ao abandono das máscaras sociais em favor dos instintos mais baixos. Há sempre, porém, um preço a se pagar: no caso, o encontro com o monstruoso, na madrugada, o que não deixa de ser um encontro do narrador com o seu próprio reflexo, com a encarnação de sua própria degeneração moral.

Degeneração sem limites
E não há limite para a degeneração, parecem nos ensinar esses Contos macabros. Bertram, de Álvares de Azevedo (presença obrigatória em antologias do gênero), traz uma seqüência vertiginosa de episódios nada edificantes: seqüestro, assassinato, orgias, antropofagia, e o desejo delirante por alvas mulheres à luz do luar. Tematicamente semelhantes são os contos de Humberto de Campos, Um juramento e Retirantes, com a qualidade de serem mais sucintos e objetivos, e por isso mais eficazes, na construção daquilo que Edgar Allan Poe chamou de “efeito único” sobre o leitor. Mas os pecados dos personagens de Humberto de Campos nos fazem lembrar de outra lição de Poe: todo homem é um criminoso em potencial, passível de ceder ao “ímpeto da perversidade”. Basta um mínimo desvio.

Da mesma forma, o insólito pode abruptamente surgir no cotidiano, como provam alguns dos contos propriamente fantásticos aqui reunidos. De acordo com aquela célebre tipologia de Tzvetan Todorov, o fantástico nasce da hesitação, provocada pelo texto sobre o leitor implícito, entre uma explicação sobrenatural ou racional para os eventos narrados. É claro que Todorov não supunha que o leitor de fato acreditasse, por exemplo, que fantasmas existissem; por isso, refere-se a um leitor implícito, um ser suposto e construído pelo texto literário. Outros críticos compartilham opiniões similares: os contos fantásticos relatam a intrusão do mistério na vida cotidiana, a irrupção, no “nosso mundo”, de um evento inexplicável pelas leis naturais.

O impenitente, de Aluísio Azevedo, é um bom exemplo: Frei Álvaro, um “bom homem e mau frade”, não consegue controlar os “endemoniados hóspedes de seu corpo”, outro modo de se referir aos “impulsos de seu voluptuoso temperamento”. Assim, da janela de sua cela no monastério, ele julga avistar o vulto de uma de suas amantes perambulando pela noite. A perseguição da mulher, através das ruas da cidade, o levará a questionar sua própria sanidade: a mulher está morta? Seria ela uma aparição fantasmagórica? Ou um delírio do frade?

Mantendo a ambigüidade até o último momento, Azevedo faz uso de um clássico recurso dos contos fantásticos, aquilo que alguns críticos chamam de “objeto mediador”, e descrito por Jorge Luis Borges em um de seus breves e imprescindíveis ensaios, A flor de Coleridge. Trata-se de um objeto de cena decisivo para a compreensão da natureza (ou sobrenatureza) dos eventos narrados.

Narradores
Também é bastante comum nos contos de mistério ou sobrenaturais a utilização de uma narrativa de moldura, em que o leitor acompanha o diálogo entre um grupo de personagens, e um ou mais deles se põe a contar suas histórias (é assim nos contos de João do Rio). Trata-se de um eficiente recurso de verossimilhança: posta na voz de um personagem, a história mais assombrosa deixa de ser “responsabilidade” do primeiro narrador, que apenas relata o que ouviu. Além disso, é possível encenar já na narrativa de moldura a hesitação a que se referia Todorov. Como em Sem olhos, de Machado de Assis, em que um grupo de amigos debate a existência ou não de fantasmas. É claro que o relato de um deles estremecerá as convicções mais céticas.

Tal recurso é particularmente eficiente em A dança dos ossos, de Bernardo Guimarães. São postas em conflito duas visões de mundo antagônicas: a do narrador, homem da cidade, cético e racionalista, e a de Cirino, mestre da barca que leva o narrador pelo interior do Brasil, típico homem do sertão, simplório e crente nas almas do além. Essa oposição, que deve ofender os mais politicamente corretos, deve ser compreendida, obviamente, como um sintoma da literatura da época (o conto foi publicado em 1871), e pode ser encontrado em um sem-número de histórias. O enredo de A dança dos ossos, apesar de certa comicidade, é surpreendentemente eficiente na ambientação sobrenatural: são três histórias contadas por esses personagens, todas cobertas por uma atmosfera sombria, ricas na composição visual.

É difícil descrever contos de terror sem estragar o prazer da leitura. Não porque todos eles tragam, necessariamente, uma grande surpresa ou revelação em seu desfecho, mas porque parte do interesse dessas leituras é acompanhar o surgimento gradativo do horror. O final de Demônios, de Aluísio Azevedo, é bastante previsível, o que não anula o interesse pela narrativa: um homem se descobre o único sobrevivente da cidade, coberta pela mais densa escuridão. Em busca de sobreviventes, ele parte pela cidade, “tateando o chão com os pés sem despregar das paredes as minhas duas mãos abertas na altura do rosto”, topando a cada passo com os cadáveres estendidos pelas calçadas. O leitor é forçado, então, a acompanhá-lo, compartilhando a “silenciosa resignação dos cegos desamparados”, rumo ao delírio.

Este conto é exemplar de como o terror mais interessante não está na escatologia nem na tortura pornográfica de alguns filmes contemporâneos, mas no interdito, no suposto, e que toda boa história de terror é também uma história sobre uma personalidade cindida, por mais fantasioso que seja seu enredo. O conto fantástico questiona o olhar do personagem sobre o mundo e sobre si mesmo, perdido que está entre o real e o devaneio, entre as convenções sociais e o horror, entre o cotidiano e o sobrenatural.

São qualidades presentes nesses Contos macabros, muito embora o volume seja também um pouco irregular. Apesar de haver lugar para alguns contos memoráveis, a antologia também traz textos menos inspirados, como O cemitério, de Lima Barreto, autor que sem dúvida possui contos macabros mais interessantes. Afinal, esse é o mal de qualquer antologia: cada leitor tem lá suas preferências e seguramente vai se lembrar de um conto ou um autor “injustiçado”, deixado de fora (justiça ainda não foi feita, por exemplo, a Gastão Cruls, autor de alguns contos fantásticos dos mais interessantes). Nada disso enfraquece, porém, os méritos dessa sinistra reunião de contos.

Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira
Vários autores
Org.: Lainister de Oliveira Esteves
Escrita fina
256 págs.
Lainister de Oliveira Esteves
Formado em História pela UFRJ, o carioca Lainister De Oliveira Esteves é doutorando em História Social na mesma universidade. Seu campo de interesse é a historicidade das obras literárias. Contos macabros é o primeiro volume que organiza.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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