O fotógrafo de miudezas

Escuta, de Eucanaã Ferraz, exige do leitor uma escuta acurada da poesia estranha que há no mundo
Eucanaã Ferraz, autor de “Escuta”
21/09/2015

O panorama da poesia brasileira contemporânea é marcado pela diversidade, tanto nas formas de expressão que arregimenta quanto nos conteúdos temáticos presentes em sua produção. Uma abundância de poéticas exige um olhar informado (que dialogue com a tradição) e ao mesmo tempo generoso da recepção crítica. A análise crítica dessa extensa produção pós-modernista e pós-vanguardas ainda está por se fazer. Grande parte das edições de poesia ainda está fora dos supermercados da mídia e das gôndolas de seus possíveis leitores.

Não é o caso do livro de poemas mais recente de Eucanaã Ferraz, Escuta. O livro é o sétimo de um autor que já passou pelo filtro consagrador de grandes prêmios e de uma grande editora. Já nos chega, por assim dizer, com seu lugar garantido no mercado das recepções literárias. O que não torna nossa tarefa mais fácil, nem passível de menor rigor. O livro, pelo contrário, exige uma leitura com ouvido acurado e sem filtros.

Seu novo trabalho é abraçado por duas seções denominadas de Orelhas (com quatro poemas), uma no início, outra no final. Partes que fecham a concha de seu zunido poético. Entre elas, as seções: Ruim (com 24 poemas); Alegria (com 27 poemas) e Memórias Póstumas (com 20 poemas).

A poesia presente em Escuta é cheia de pressentimentos e perplexidades que parece estar em busca de uma linguagem mais adequada à sua expressão. Uma sucessão de reflexos, imagens e cacos de cenas que exigem uma “escuta” atenta e livre de visões já formadas e formatadas do que seria ou não poesia.

Eucanaã Ferraz é professor de Literatura Brasileira na UFRJ e organizador de antologias de Caetano Veloso e Vinicius de Moraes. Além disso, organizou uma antologia com poemas e canções contra o tédio. Em outras palavras, conhece o métier e é um autor que sabe valorizar o que há de melhor na lírica de nossa MPB.

Apesar dessa notória ligação com a música e a exigência metafórica do título de seu livro (“escuta” pode ser a ação de escutar, mas também a exigência, o imperativo afirmativo, de que se escute algo), seus poemas (pra usarmos um dos aspectos essenciais da poesia identificados por Ezra Pound) escamoteiam a melopeia (ou a anula em dissonâncias), aquela modalidade em que as palavras são impregnadas de uma propriedade musical (som, ritmo) que orienta o significado do poema.

A exigência da escuta, talvez, se dê em outra chave. A narratividade de seus poemas, muitos deles rasgados por um lirismo que dialoga com a morte e com as perdas e dúvidas afetivas, exige do leitor uma particular imaginação visual (fanopeia) e uma apreensão da dança intelectual do autor entre as palavras (logopeia). Escuta, então, pode ser entendido como “se liga!”, preste atenção ao essencial.

(…)
(o mundo é de onde a felicidade pôs-se a caminho
e não regressa). Ser feliz sei onde passa:
dura algumas horas
Nós dois
sob o céu de um hotel sem estrelas.

A leitura de seus poemas me trouxe logo de cara a figura poética estudada por Michel Deguy, a diérese, aquela hesitação entre corte e prolongamento, embora aqui (diferente do recurso da figura estudada por Deguy, própria da versificação) no âmbito do que arrisco chamar de “prosaísmo poético” — algo que não chega a ser “prosa poética”, nem exatamente prosaico (no sentido de destituído de poesia), mas com um pré-texto que poderia ser lido na chave da prosa, porém, por ser cirurgicamente recortado em enjambement, numa sintaxe desarticulada e carente de conectivos, explode com imagens e significações próprias da poesia.

Posso ver nitidamente minha solidão
cresce a cada minuto posso ver
o nosso desamparo cresce a cada minuto
posso ver eu sinto uma tensão cresce
a cada minuto posso ver os minutos
que se quebram contra a fuselagem.

Em sua busca de uma sintaxe própria, talvez mais adequada ao nosso tempo veloz e pós-moderno, irradia uma particular afetividade que contamina os seres e as coisas e fotografa com delicadeza o desenrolar dos acontecimentos, congelando e iluminando miudezas.

(…)
Sem notícias tuas as horas são muitas
e apodrecem no meu pulso.
Mas sei que existem horizontes
como existem violinos trens abelhas
nebulosas de estrelas novas

e é para lá que meus olhos se voltam: o telefone.

Dar conta de algo
O poema Sem saber o que fazia salta como um exemplo de linguagem que busca dar conta de algo que a mera descrição da “realidade” não alcançaria. Revela-se uma bela e estranha canção expressionista. O tema se desenrola como uma fábula, ou canção, do homem que saiu para caçar uma lebre e dormiu; a lebre apanhando sua arma passou a caçá-lo. Não sabemos se há um desvio psicológico do homem que passa a pensar e a sentir como a lebre, ou se no fundo é sempre assim, a indiferenciação total entre caçador e caça, observador e ser observado, amor e destruição, vida e morte.

Em O Ruby Passion, escrito em dísticos, compõe-se uma exímia elegia narrativa, cinematográfica, do suicídio.

Senta-se em frente à televisão
Ou melhor, antes disso
vai ao cabeleireiro cobre as raízes brancas
com o louro intenso número 8
(…)
cuidadosamente. Em casa,
senta-se em frente à televisão liga
Naquele programa que dá informações
valiosas de beleza e saúde fáceis
(…)
enquanto aperta com a mão direita
o revólver que o marido esconde
(…)
diz a si mesma é preciso tentar eu
sou uma mulher
tem que dar certo diz baixinho
encostando o cano no lado
do coração que bate alto
acelerado posso ouvir daqui.

Eucanaã consegue traduzir em seus poemas uma pungente incapacidade humana de comunicação, ou aquela quase impossibilidade de expressar na linguagem as emoções profundas. O desafio da poesia, talvez mais do que a prosa, é exatamente este: expressar aquilo que se julga inexprimível e que não se pode calar.

Para conseguir isso, o autor se utiliza de uma sintaxe e prosódia próprias, com a desconstrução dos versos, cortes cirúrgicos, repetições e recorrências, procedimentos que exigem do leitor uma reconfiguração constante das possíveis significações. Nesse sentido, podemos dizer que há muito de arquitetura na elaboração de seu trabalho, um artifício para gerar tensões e revelações muito apropriado à poesia.

Na seção Memórias póstumas, encontramos poemas de amor e morte que se potencializariam se fossem lidos com um fado português tocando ao fundo. Os títulos são monossilábico, balbucios (Eis, Que, Sem, Se, Nem, Quem, Ao, Por, Lhe, De, Te, !, Des, Sob, E, Os, Ou, Me, À) a nos dizer que diante de temas tão comoventes não se é possível titular, nomear, identificar ou individualizar as experiências.

No mais, a escuta da poesia que há no mundo, exige ouvidos que não estejam apenas habituados aos sons da esfera celeste, com seus cantos maviosos tecidos pelas musas de alta estirpe…

(…)
eu te digo que é preciso aceitar o verso ruim
dar a outra face ao silêncio do poema no poema
e ver partir sem pena os verbos que sagrados
só se digam sob o teto de jamais os pronunciarmos;
(…)

O poeta, outrora o “príncipe das alturas”, precisa agora sujar suas alvas asas no chão, junto com a turba ignara. É nesse espaço/tempo privilegiado que a poesia contemporânea nutrirá suas odes e cantos essenciais à vida.

Escuta
Eucanaã Ferraz
Companhia das Letras
129 págs.
Eucanaã Ferraz
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1961. É professor de literatura brasileira na UFRJ e autor, entre diversos outros, de Sentimental, livro vencedor do prêmio Portugal Telecom em 2013.
Edson Cruz

E poeta e editor do site Musa Rara.

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