O fotógrafo

Cristovão Tezza reflete sobre sua trajetória literária, o ato da escrita de ficção e as impressionantes mudanças impostas pelo mundo digital
Ilustração: Simon Taylor
01/05/2025

A primeira coisa que me chamou a atenção na releitura de O fotógrafo para esta nova edição, pouco mais de vinte anos depois de sua escrita, foi a ausência de celulares na vida dos personagens. E, num efeito cascata desta lacuna que hoje soa absurda, o livro se passa num mundo em que os jornais são de papel, as pessoas pegam táxis, que custam caro, e pagam a corrida em dinheiro; veem-se filmes em fitas VHS e os computadores são apenas máquinas de escrever mais sofisticadas. Especialmente importante na trama do romance, o fotógrafo usa uma câmera analógica e revela filmes num laboratório — a fotografia ainda é um objeto físico modelado por um artesão da imagem.

Em princípio, não há nada de extraordinário, exceto a inacreditável rapidez da mudança — apenas duas décadas — e a igualmente impressionante consequência cultural (talvez a palavra estrutural defina melhor) que a digitalização da comunicação e da informação (a sua incrível portabilidade — talvez esse o ponto essencial) provocou na vida das pessoas. Desconfio de que a mudança tecnológica recentíssima desde, digamos, só como referência popular, o primeiro iPhone (2007) tenha exercido uma influência mais poderosa no mundo do que o século anterior inteiro sob o império de outra referência popular, o automóvel. Exagerando um pouco, sob a régua da imaginação, o tranquilo habitante urbano de 1990 se sentiria ainda mais ou menos em casa em 1920, enquanto o aflito habitante de 2025, quem sabe, ver-se-ia desesperado, habitante de outro planeta, em 2005.

E o que a literatura tem a ver com isso? Em princípio, nada. Ninguém lê Machado hoje para se escandalizar com a falta dos aeroportos ou telefones em suas páginas, embora essa ausência determine horizontes e comportamentos. É sempre um terreno de alto risco cravar definições na área artística, mas, começando de algum lugar, eu diria que, para a ficção literária, o foco quase que absoluto é a vida mental e moral das pessoas e a tensão das relações humanas (o que, num efeito de ondas de um lago, reflete e é refletido em praticamente todos os aspectos concretos da sobrevivência). Nesse aspecto, há uma forte similaridade de comportamentos, tramas, ambições, valores e desejos que a escrita ficcional do mundo vem documentando há séculos, do mais canônico monumento ao simples folhetim de uma cultura periférica (dois conceitos, aliás, que a digitalização do mundo também vem reestruturando sem piedade).

Tudo isso acontece, é claro, à revelia do escritor, que é sempre o último a saber. E é bom que seja assim, digo em defesa própria — o instinto da linguagem achará o seu caminho, acrescento como álibi. Nunca entendi exatamente por que motivo ou com que objetivo escrevo meus livros, mas a vida profissional de escritor (por eu ser uma pessoa de natureza mais expansiva que reclusa, o que às vezes lamento) me levou à gentileza de responder várias vezes a perguntas semelhantes em eventos públicos. Isso espicaçou minha curiosidade.

Começo pelas negações: com certeza não escrevo para documentar meu tempo (ainda que toda escrita seja o documento de um tempo) nem para passar alguma mensagem de qualquer natureza, edificante ou não. Há pequenos prazeres ocupacionais envolvidos, quase infantis, estimulados por imitação: contar uma história, por exemplo, de modo a entreter o leitor, o que não é fácil (principalmente porque eu não sei quem será o leitor), ou criar personagens que ganhem alguma autonomia, que falem com uma voz que não seja a sua. Também não sinto, ao escrever, um impulso estritamente poético, mas não sei se consigo explicar o que quero dizer com isso. Vou tentar de um modo simples: por alguma razão, as frases que escrevo são mais objetivas que subjetivas — elas não procuram chamar a atenção para si mesmas (esta arte maravilhosa do poeta), mas para o que estou contando, o que parece deixar as palavras mais foscas, opacas, quase sem graça. Investigar os sentimentos profundos que nos torturam a alma com metáforas de impacto são uma coisa; descrever alguém abrindo uma garrafa de cerveja ou atravessando a rua é outra, bem menos espetacular.

Mas há tanta coisa que sinto envolvida no ato de escrever que não consigo vê-lo com a frieza ou a distância necessária quando falo da minha própria obra. Sou bem mais corajoso quando comento os livros dos outros, arriscando teorias explicativas engenhosas de acordo com alguma predileção que a obra por acaso desperta — histórica, psicológica, política, religiosa, social. A literatura está em tudo isso, mas, em geral, em nenhum desses itens em particular, e essa neblina multiforme é o seu charme.

Ficção e vida acadêmica
Sobre O fotógrafo, começo dizendo que foi a primeira ficção que escrevi depois de cinco anos me dedicando exclusivamente aos estudos acadêmicos, trabalhando no meu doutorado, que versava sobre a teoria de literatura e linguagem do filósofo russo Mikhail Bakhtin.* Desde a adolescência, nunca passei mais do que alguns meses sem escrever literatura, de modo que esses cinco anos de abstinência total devem ter tido algum efeito na minha alma. Quando me perguntavam se a vida teórico-acadêmica (à qual renunciei em 2010) interferiu na minha produção literária, eu costumava responder de imediato que absolutamente não, quase ofendido com a simples hipótese. Mas hoje já não tenho tanta certeza defensiva. É verdade que nunca escrevi programado por alguma tese — tenho a convicção de que não há nada pior do que um romance escrito como se fosse uma tese, e uma tese escrita como se fosse um romance. É um cacoete iluminista de separação das águas, a que recorro para uso próprio e que acho bastante funcional. Mas é claro que uma longa vida acadêmica, formatando o dia a dia das pessoas, certamente vai interferir na sua produção literária, se o professor se aventurar pelo terreno da ficção. No meu caso, fui antes escritor, e apenas tardiamente professor — talvez isso explique alguma coisa.

Estágios da escrita
Para escrever um romance, quase sempre passo por três estágios mentais. O primeiro é uma imagem. Eu preciso ver o que escrevo. Talvez deva isso à minha maldição realista, a paixão fotográfica, embora este ato de ver, na sua origem, nada tenha de documental. Eu via um fotógrafo numa esquina em Curitiba, aqui perto de casa, e imaginava que ele, como personagem de um filme B, um policial noir dos anos 1950, estava ali de tocaia à espera de uma bela mulher (uma mulher fatal de um filme com Humphrey Bogart, mais ou menos assim) que ele deveria fotografar. Era pago para isso, é claro, acrescentava mentalmente.

Essa imagem me perseguiu durante meses. Vários livros meus começaram assim, com uma imagem: Breve espaço entre cor e sombra (o meu último romance antes de O fotógrafo) nasceu da fotografia de um enterro sob chuva — um fotograma de algum filme inglês ou irlandês perdido na memória, a profusão de guarda-chuvas, um padre, a cova aberta. Ao finalmente começar o livro, a chuva desapareceu, e o dia é luminoso, mas isso é detalhe; o enterro é que importava. Juliano Pavollini começou com a imagem de um adolescente protegido num bordel, na rua Riachuelo da Curitiba dos anos 1960. A imagem costuma levar um bom tempo de maturação na cabeça. Atualmente, tenho imaginado um dono de uma pequena papelaria abrindo sua loja de manhã, aqui no centro da cidade. A ideia me persegue há anos, um velho DVD riscado repetindo a mesma cena. Sei que há um romance ali, mas não passei ainda à segunda fase, a da trama.

O segundo momento é a âncora narrativa: eu preciso de uma história, um fio de acontecimentos. É quase que apenas um álibi para criar coragem e começar a escrever. No caso do fotógrafo, imaginei que a modelo a ser fotografada é uma jovem problemática (nada de novo); em seguida, que o contratante era o seu pai, com quem ela mantinha uma relação difícil e conflituosa (também nada de novo; os detalhes só surgiriam muitas páginas depois, revelados por outra personagem, sua analista, por acaso casada com o professor pelo qual a mulher do fotógrafo sente atração — uma quadrilha drummondiana). Nenhuma ideia é nova na arte narrativa: vivemos imersos num gigantesco e imemorial lugar-comum de histórias que se repetem. Pelo esquema original, aquela perseguição duraria alguns meses, quando então eles se encontrariam. O que iria acontecer no encontro? Não sei. Era tudo o que eu tinha na cabeça — isto é, praticamente nada. É preciso desenterrar da massa difusa do desejo o olhar único que só você pode escrever.

Em seguida, o ato de coragem, dar a partida: preciso de uma primeira frase, que cria o tom, o ponto de vista e a linguagem do livro. Na verdade, a linguagem é tudo. Literatura são palavras. Assim que se escreve a primeira frase, a linguagem assume o comando. A solidão é a forma discreta do ressentimento, que surgiu do nada (um impulso poético, um verso avulso), determinou o livro inteiro, puxando-o para aquilo que, sem saber, eu verdadeiramente queria escrever. A afirmação parece apenas uma frase de efeito — você não sabe o que quer escrever —, mas eu sinto que não, que há mesmo uma área escura da percepção que apenas o ato de escrever é capaz de revelar. Como que puxando um novelo que já estava ali, foram surgindo os personagens complementares, agora com o prazer de um quebra-cabeça, a ordenação de um acaso inventado em blocos — fotogramas por escrito, imaginei — que se encaixam. Nesse momento, e só agora, o domínio técnico, ou a experiência da escrita, começa a ser relevante. E também o repertório literário, porque a literatura não é uma arte ingênua — na composição do romance, surge a memória inconsciente de leituras antigas e marcantes. Lembro agora de três títulos: Contraponto, de Aldous Huxley, Caminhos cruzados, de Erico Verissimo, e A colmeia, de Camilo José Cela. Todo o imaginário anterior, os meses de perseguição que na minha cabeça faziam um filme eletrizante de suspense em preto e branco, foi sendo linha a linha soterrado pelo avanço real do texto, em torno de um único dia de cinco figuras centrais. De modo que escrever, para mim, significa erguer as grades em que o próprio narrador se encapsula e das quais não consegue escapar.

Há dois outros detalhes que me ocorrem para entender a passagem deste livro na minha vida. O primeiro é que é um romance inteiro escrito sob o signo da intimidade, um valor urbano e civilizador positivo que serviu de forte referência existencial nos últimos duzentos ou trezentos anos, uma criação do mundo pós-tribal (ou pós-rural); a ascensão do indivíduo e da vida privada, com o concomitante pudor da solidão, criou um quadro mental duradouro, que a vertiginosa digitalização do mundo implodiu espetacularmente em poucas décadas. Hoje, parece, ninguém mais sussurra ou fala para si mesmo; apenas para o mundo inteiro, e sempre em voz muito alta — mas isso talvez seja apenas o resmungo de um velho senhor. O segundo é um detalhe afetivo que com certeza não tem nenhum significado além disso: O fotógrafo foi o último romance que eu ainda escrevi à mão. Escrever à mão era um a espécie de ideologema (como diria o antigo professor) de uma suposta vida autêntica, natural, verdadeira, com a qual eu sonhava quando jovem — a arte é um artesanato. No livro seguinte, O filho eterno, finalmente passei (com algum fascínio) à tela e ao teclado, numa viagem sem volta.

NOTA
A nova edição (revista pelo autor) de O fotógrafo será publicada em agosto pela Record.

* TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003; Edição Digital Kindle, 2013.

Cristovao Tezza

Nasceu em Lages (SC), mas na infância mudou-se para Curitiba, onde vive até hoje, dedicando-se à literatura. Considerado um dos mais importantes autores brasileiros contemporâneos, publicou uma dezena de romances, entre eles TrapoO fotógrafo e O filho eterno.

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