O espírito carioca sobre outras paragens

Narrativas de Álvaro Marins utilizam formas variadas para captar a essência de um povo bonachão que, apesar dos pesares, consegue quase ser desinfeliz
Álvaro Marins, autor de “Suíte carioca e outros contos esquisitos”
01/11/2021

É possível falar em uma crônica eminentemente carioca? Esta se confunde com sua contística irmã? De certa forma, sim. Ela teria nascido no decorrer do século 19, a partir de 1808, quando o Rio de Janeiro se consolida como centro do poder e a impressa ganha dimensão e importância. Neste espaço surgem os escritos de Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Antônio de Almeida, amadurecidos nos romances urbanos de José de Alencar, nas narrativas de Machado de Assis, Lima Barreto e de autores menos difundidos, como Carmen Dolores e Júlia Lopes de Almeida, chegando aos escritores contemporâneos, como Carlos Heitor Cony e o ficcionista Ruy Castro.

Em linhas gerais esta crônica fala de personagens que vivem em torno do poder, mas não o detém. São arrivistas sonhando com ascensão social, poderosos empobrecidos, belas coquetes que se vendem, artistas que vivem de expedientes, malandros em geral à sombra de barões endinheirados que bancam a convivência com o belo e o fútil.

No livro Suíte carioca e outros contos esquisitos, Álvaro Marins segue esta tradição, daí seus contos não serem tão esquisitos, do ponto de vista estranho, quanto sugerem. “Tenho pra mim que Álvaro Marins foi atrás do sentido mais profundo da palavra, aquele que se liga ao verbo latino exquiro, ou seja, ‘procurar com paciência; investigar’,” alerta Alberto Mussa na orelha.

São esquisitos também pelo sentido lato do termo que contempla algo raro, difícil de encontrar. E a raridade vem da linguagem. Há um requinte realista em suas palavras. Fugindo do coloquialismo tão em voga, que algumas vezes descamba para o empobrecimento linguístico, sobretudo quando tenta reviver o falar prosaico das comunidades, Marins opta por um classicismo suave:

Estranhamente, talvez em razão de algum involuntário sentimento de culpa pela situação de Marga, procurava atende-la nas suas necessidades básicas. Mais presente era o assustador medo da solidão que o acometera nos últimos anos.

Espírito bonachão
O livro se enfeixa com uma novela e nove contos. A novela Suíte carioca é certamente o melhor retrato da crônica da cidade. Dois personagens, que por caminhos diversos e tipicamente cariocas tentam viver uma eterna juventude nababesca à beira-mar, são obrigados a mitigarem uma pobre velhice juntos e solitários num pequeno e soturno apartamento da Rua das Laranjeiras.

Como se vê, mais que os cenários cariocas, como a Praça Tiradentes que nomeia um dos contos, é o espírito da gente da cidade que o autor privilegia. Os contos se desenham em outros cenários, numa “conhecida cidade média do nosso imenso país”, ou outras épocas, como no texto onde conta de Pero de Covilhã, um hábil conhecedor de línguas estrangeiras, “foi essa habilidade, aliás, que lhe permitiu aproximar-se, anos depois, da corte do Rei Afonso V”.

No entanto, mesmo adotando tantos descaminhos por épocas e cenários, sobrevive em cada texto o espírito do carioca bonachão e quase desinfeliz em seu final de jornada.

Formas variadas
Na verdade, estamos diante de um livro de leitor. Álvaro estudou literatura e deixa esse conhecimento percorrer seu texto. Não dando lições teóricas, mas passeando por formas variadas de escritas e fazendo constantes referências a escritores criados, como Valdomiro Pinto Rocha, ou que viveram de fato, como Jorge Luis Borges, ou mesmo apresentando o narrador como escritor. Em qualquer dessas atitudes, no entanto, trabalha o encantamento criativo da literatura, afinal, como ele mesmo diz, “escritores têm essa má fama [de mentiroso], não de todo injustificada, ainda que a maioria prime por contar a verdade dos fatos.”

Este conhecimento permite ainda optar, de maneira segura, por experimentos e visitas a várias linguagens literárias. Caderneta escolar se conta como um boletim de um estudante de 1937. Duas biografias de Valdomiro Pinto Rocha é trabalhado como uma resenha literária, bem formal aliás, publicada em um certo Planeta Pernambuco. A discípula, como De volta a Japiabaçu, se desenvolvem como conversas descontraídas. O fundamental é que este experimentalismo tem suas razões e não busca reinventar o óbvio. São estruturas montadas num lirismo agradável que querem, e conseguem, contar bem uma boa história, sem buscar sentidos ou explicações.

Tradição carioca
Voltamos ao ponto inicial desta resenha. Estamos diante de um livro inserido na mais clássica tradição da narrativa carioca, um estilo que se equilibra entre a crônica e o conto, onde o humor se torna elemento imprescindível. Neste caso ele surge com sutilezas:

Obrigado — agradeceu Carlos, colocando cuidadosamente o par de chinelos, a carteira, a camisa e os óculos, tudo arrumadinho, nessa ordem, aos pés de Marga. Por cima de tudo, seu relógio Seyko.

Inicialmente o leitor pode até pensar que Álvaro Marins escreveu o país sonhado pelo pessoal da bossa nova, um Rio de Janeiro em festa de sol, sal e sul, com mãos se descobrindo em todo azul, um ambiente que afinal não se realizou em sua plenitude. Ao contrário, estamos mesmo é diante de um realista incorrigível, e muito criativo. Assim o Rio e os outros ambientes que descreve são também marcados por violências, chacinas e outras mazelas. No entanto, nada disso recai sobre o desgastado discurso maniqueísta de heróis e bandidos. Os personagens deste Suíte carioca são reais, por mais ficcionais que sejam. Vale muito a pena conhecer essa gente e suas aventuras esquisitas.

Suíte carioca e outros contos esquisitos
Álvaro Marins
Graphia
176 págs.
Álvaro Marins
É doutor em Teoria da Literatura e pesquisador e editor no Museu Histórico Nacional. Estreou na ficção com os contos de A mulher do fuzileiro e outras quase histórias (2016). Na área teórica, lançou Machado de Assis e Lima Barreto: da ironia à sátira (2002). Vive no Rio de Janeiro (RJ).
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho