O espaço da delicadeza e da dor

"A vendedora de fósforos" traz personagens densos, bem delineados, que sintetizam as miudezas familiares
Adriana Lunardi, autora de “A vendedora de fósforos”
01/01/2012

Duas irmãs separadas há quatro anos. De repente um telefonema desenrola todo um rosário de lembranças e dores. Uma delas, morando distante, foi hospitalizada e a outra precisa ir vê-la. Durante a viagem a narradora relembra o passado e tudo que estava guardado em seu íntimo.

O enredo convencional do novo romance de Adriana Lunardi, A vendedora de fósforos, pode, inicialmente, não animar um leitor mais exigente. Mas, embora o foco narrativo seja uma das grandezas da escritora, neste caso é a forma que sobressai, que dá a dimensão do texto. E aí a narrativa se agiganta na construção de personagens densos, bem delineados e que sintetizam com perfeição as miudezas de uma família típica da segunda metade do século 20.

Voltando ao enredo, a família dos Anjos é capitaneada por um pai meio andarilho. Contabilista de profissão, ele tem hábitos metódicos e incontáveis manias. Sempre buscando novos clientes e possibilidades de sobrevivência, perambula pelo interior do Rio Grande do Sul. A mãe, vinda de uma modesta abastança, casa por amor e passa a viver afastada dos pais e dos irmãos que abominam seu marido. Um ódio recíproco, diga-se. Não tem profissão definida, mas anda sempre bem vestida e às vezes ganha algum dinheiro usando a bela caligrafia para escrever convites de casamentos e outros festejos. Os filhos, duas moças e um rapaz, estudam como podem, diante das mudanças rotineiras, e fazem poucos amigos neste caminhar.

Dentro da anormalidade, a família é perfeitamente normal. Vive o drama típico da classe média baixa que no curso da existência acumula orgulhos e pequenas ilhas de arrogância. Ali se encastela como soberanos e tudo mais passa a ser desimportante. Mais valem suas crenças. E ao abrir este baú de feridas, Adriana Lunardi formaliza um romance em que o ponto principal está numa revisita serena e lúcida à psicologia de uma gente emblemática para a formação do caráter nacional. A profundidade com que se apega a isso dá ao livro um sentido multifacetário. Ao mesmo tempo que é pura ficção de qualidade, desperta no leitor a curiosidade de olhar os caminhos e descaminhos que ele próprio trilhou.

É óbvio que a culpa pelos desajustes martelados pelos pais vai cair sobre a definição de vida dos filhos, sobretudo das irmãs. E isso poderia levar Adriana à beira de um melodrama nelson-rodrigueano com toda aquela carga de desgraças e hipocrisias. A escritora, entretanto, consegue se desviar do caminho comum e trabalha com a originalidade do afastamento. Sem se darem conta, os personagens realimentam o desprezo comum que se torna mesmo uma marca familiar.

Para fugir da recorrência comum à literatura onde os dramas de família se esmeram na crueldade, a autora se vale da delicadeza. Seu texto desliza com reentrâncias sutis, sem rupturas bruscas, sem máculas, com frases bem moduladas e no tamanho exato de uma leitura doce, leve e bonita.

Adriana não nomeia seus personagens centrais nem o espaço geográfico onde vivem. Mesmo as cidades que ganham nome são fictícias e o maior exemplo está na mais constante delas, Antares, uma clara referência ao lugar onde Erico Verissimo centrou o famoso incidente dos mortos que voltam para ajustar contas com os vivos. No entanto, é possível deduzir toda situação espacial do romance. E esse jogo de dualidades, da clara despersonificação de tudo preenchida com pistas de acesso à adivinhação do tempo e do espaço, mostra-se fundamental para se entender a obra como um todo, pois a autora está a nos dizer constantemente que tudo se passa ali e com aquelas figuras fulanizadas, mas as possibilidades de habitarem outros espaços é tão real quanto possível.

Para compreender melhor o belo exercício lúdico de Adriana, basta avançar um pouco mais no enredo de seu romance. A narradora, roubando o sonho da irmã, se forma num curso de Letras, torna-se escritora e vai morar no Rio de Janeiro com o companheiro Max, um cartunista que carrega um diploma de advogado. Ela tem poucas informações sobre a irmã roubada que divide um apartamento com uma amiga em Porto Alegre. Do irmão sequer sabe o paradeiro. Este esfacelamento familiar, onde todas as afetividades estão diluídas, apagadas, mortas mesmo, vem de um jogo de ambições e culpas comum ao universo onde trafegam.

O Rio Grande do Sul se alavancou, no século passado, com uma nova e intensa miscigenação. Mais que uma mera junção de raças e cores, houve ali uma fusão inquestionável de culturas. E aí está a chave para melhor mergulhar no universo de A vendedora de fósforos. Os personagens que giram em torno da família dos Anjos têm passagens meteóricas na trama, mesmo Max e Nietsche, respectivamente o companheiro e a melhor amiga de adolescência da narradora. No entanto, todos deixam marcas profundas na protagonista e na trama. São estes personagens secundários, coadjuvantes, que trazem as características necessárias ao entendimento deste verdadeiro caldo cultural. Em outras palavras, sem querer fazer uma espécie de antropologia dos pampas, Adriana Lunardi desnuda aquele ambiente com riqueza de detalhes e descrições.

Este olhar sobre o mundo gaúcho e o labor de lhe dar uma feição universal são quase novidades na obra de Adriana. Em seu livro de estréia, As meninas da torre Helsinque, de 1996, ela fala um pouco de Porto Alegre, mas a cidade ali é apenas cenário e não carrega quase nenhum força de caráter. Nos livros seguintes, então, todo aquele mundo é esquecido. Vésperas é cosmopolita e Corpo estranho se volta para o Rio de Janeiro e seus arredores. Isso nos deixa a alegre certeza de que a escritora se preocupa em construir uma obra e não apenas ficar remoendo recorrentemente suas idéias e crenças.

O exercício dá importância à necessidade de formação de uma obra universal. E nisso nasce outro mérito. Aquele que nos aponta para uma discussão mais aberta com a modernidade e com as questões incômodas para o ser humano como um todo. As traições, os medos, as angústias e, claro, as felicidades e os prazeres.

Outra novidade é que todas as pistas e referências levam o leitor a visualizar uma obra próxima à autobiográfica. Não que Adriana esteja contando a própria história, mas com certeza desta vez, mais do que em qualquer outro de seus livros, ela apanhou a própria vivência e rasgou a própria carne. Não foi só o fato de usar o espaço geográfico onde ela viveu, mas a adolescência da protagonista caminha lado a lado com a vida adolescente comum às contemporâneas da autora. E neste ponto, o romance ganha em verdade e paixão.

Este aspecto do livro é salientado pelas constantes referências literárias e culturais. De Borges a Proust, passando por Erico Verissimo e Orson Welles, tudo aquilo que se bebeu nas livrarias, cinemas e televisões dos anos de 1970 e 1980 se mostra sempre com delicadeza, mas também com indiscutível necessidade. Sem todos estes elementos A vendedora de fósforos corria o risco de ficar capenga, um romance descaracterizado e inverossímil.

A leitura ainda é facilitada e envolve ainda mais o leitor pela precisão com que a autora constrói imagens bonitas e perfeitas. “Aquela noite fora um cume de efeito ótico, delirante, após o qual os dos Anjos passaram a beijar o chão duro da decadência”, escreve para dizer do momento em que todo o eixo da normalidade se parte. E com isso dá a dimensão da grandeza de sua obra que, com frases curtas e cortantes, escritas em ritmo quase que de valsa, vem fazendo uma das mais brilhantes carreiras literárias de hoje.

Adriana Lunardi com A vendedora de fósforos não chega a surpreender o leitor que já a conhece, pois este não espera dela nada além do melhor. E é o melhor que ela nos oferece aqui.

LEIA ENTREVISTA COM ADRIANA LUNARDI.

A vendedora de fósforos
Adriana Lunardi
Rocco
192 págs.
Adriana Lunardi
Nasceu em Xaxim (SC), em 1964. Estreou na literatura com As meninas da torre Helsinque (1996). Em 2002, lançou Vésperas, publicado com excelente acolhida em países como França, Portugal, Croácia e Argentina. Corpo estranho, seu primeiro romance (2006), foi finalista do prêmio Zaffari/Bourbon e está sendo traduzido para o francês.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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