O escritor fatalista

Horacio Quiroga, cuja vida foi cercada de tragédias, tem um olhar ferino a propósito do sentido da existência
27/11/2018

Um casal descobre que a filha foi trucidada pelos irmãos bestializados (A galinha degolada). Um marido assiste à morte lenta da esposa e só depois vem a saber do motivo: o travesseiro de penas escondia um animal monstruoso, que sugava o sangue da sua vítima dia após dia, silenciosamente (O travesseiro de penas). Em retrospectiva, um homem relata os dias que se sucederam a um ataque de raiva canina (O cão raivoso). Um joalheiro, trabalhador devoto e marido fiel, transforma-se e ataca o objeto de seu desejo (O solitário). Um cachorro de raça se vê na inglória missão de manter a honra num ecossistema fadado ao canibalismo e à degradação (Yaguaí). As ligeiras descrições acima se referem aos contos de Horacio Quiroga, escritor uruguaio que foi um dos principais autores da literatura latino-americana da primeira metade do século 20. Ainda que não tenha sido um dos autores prediletos da crítica de seu tempo, seus escritos alcançaram reconhecimento junto ao grande público. E seu talento é equivalente à sua trajetória, trágica e extraordinária ao mesmo tempo, afora à sua capacidade de imaginação e a um olhar arguto a propósito do sentido da existência. Seria exagerado, talvez, afirmar que a obra de Quiroga é autobiográfica. Mas é irresistível estabelecer algum tipo de conexão, e os motivos para tanto não faltam, conforme se verá a seguir.

Nascido em Salto (Uruguai), no último dia de 1878, Horacio Silvestre Quiroga Forteza viveu com intensa dramaticidade seus 59 anos de vida — morreu em 1937 em Buenos Aires. Entre outras atividades, foi jornalista, professor e ocupou posição na burocracia diplomática na Argentina, mas é por seu legado como escritor que ele seria lembrado, sobretudo pelos leitores que apreciavam seus contos. E aqui é necessário apontar para a primeira distinção de Quiroga como autor: suas narrativas curtas se notabilizam não apenas pela concisão, mas porque trabalham, sob diversos prismas, a questão da morte, como uma sentença da qual não se pode escapar. Em certa medida, é possível estabelecer conexão entre essa preferência temática e a própria vida de Quiroga. Afinal, toda a sua jornada é marcada pela morte: seja de seu pai, quando o escritor ainda tinha meses de vida; passando pelo falecimento de sua mãe, ainda na infância; de seu melhor amigo, vitimado por acidente com arma de fogo manuseada por Quiroga; e culminando com a depressão e a morte de sua primeira esposa, Ana Maria Cirés. Tudo isso antes dos 40 anos de idade.

Essa correlação entre vida e obra, muitas vezes, é rechaçada pelos críticos, que, por sua vez, torcem o nariz para essa elaboração primária no exercício de interpretação. Ainda assim, e ao menos no caso de Quiroga, parece que existe mesmo um consenso em torno dessa aproximação. É o que se depreende, por exemplo, a partir do texto de John Lionel O’Kuinghtons Rodriguez, que serve como prefácio do livro Contos de amor, de loucura e de morte. Publicada originalmente em 1917, a seleta traz como denominador comum a temática da morte, e Kuinghtons chama a atenção para essa conexão entre vida e obra, ressaltando que, por conta do agravamento de um quadro depressão, Ana Maria Cirés comete suicídio. “Sua morte, como da Alícia de O travesseiro de penas, foi precedida por uma lenta agonia de vários dias”, escreve Kuinghtons.

Com efeito, em O travesseiro de penas, o leitor trava contato com uma história que, de uma só vez, tem uma trama densa, porque austera e sombria, como também envolvida numa dinâmica de paixão arrebatadora. A vítima, Alícia, é dócil e frágil, parecendo ser demasiadamente sensível. Num primeiro momento, essas características se assemelham a uma vaidade qualquer, atrelada ao romance romântico, por exemplo. Mas é exatamente aí, na última quadra da história, que Quiroga surpreende o leitor, apresentando as verdadeiras motivações do desengano de Alícia. Uma aproximação possível, aqui: o demônio do meio-dia da depressão se esconde na plumagem aparente e confortável de um travesseiro, alimentando-se do sono e da prostração de seus hospedeiros. Para esse diagnóstico, no entanto, não há remédio, e a revelação só surge após o fato estar consumado.

Embora seja uma história diferente, essa sensação de desengano também se faz presente em O cão raivoso, conto que também está presente na coletânea citada anteriormente. Aqui, o personagem central, Federico, recupera os acontecimentos dia após dia, mais ou menos no período em que sua casa foi invadida por um cachorro raivoso. A história caminha no sentido de mostrar quais são as impressões desse narrador do episódio, detalhando como foi a chegada do animal, de sua manifestação e, claro, da mordida, que, a princípio, parecia que não teria qualquer efeito. Numa espécie de autoengano, ele próprio descarta a possibilidade de ter sido contaminado. Só que aos poucos o seu comportamento vai mudando, tornando-se desconfiado de tudo e de todos. E como é que nós, os leitores, aprendemos isso? É exatamente graças às marcas presentes no texto, conforme revela o trecho a seguir:

Teria preferido ficar absolutamente tranquilo, mas é impossível. Acho que já não há possibilidade que isto termine. Olhares de soslaio o dia todo, murmúrios incessantes que acabam de repente assim que ouvem meus passos, uma crispante observação de minha expressão quando estamos à mesa, isso está ficando intolerável. (…) Não fazem outra coisa que me espionar noite e dia, dia e noite, para ver se a estúpida raiva de seu cachorro se infiltrou em mim.

Seria exagerado, talvez, afirmar que a obra de Quiroga é autobiográfica. Mas é irresistível estabelecer algum tipo de conexão, e os motivos para tanto não faltam.

Força narrativa
Como todo comportamento obsessivo, o de Federico também oscila, e é precisamente aqui que se nota uma verossimilhança fundamental para que o conto ganhe corpo. Dito de outro modo, não se trata apenas da capacidade de imaginação, que, neste caso, pode ser atribuída à vida no campo (mais exatamente em Misiones) pela qual passou Horacio Quiroga. Existe, de igual modo, a força narrativa que se ergue graças à danação psicológica do personagem central.

A propósito da danação, é necessário comentar aquela que é, sem dúvida alguma, uma das histórias mais desesperadoras — e, justamente por isso, mais atraentes — da obra de Quiroga: A galinha degolada. O texto fala de um casal que tem quatro filhos. Não haveria nada de trágico, a não ser pelo fato de três desses quatro filhos serem limítrofes, com escassas capacidades intelectuais, das quais se destacam, o narrador considera importante observar, a imitação e a capacidade de comer de forma bestial. Se os três filhos homens são assim, a garotinha, caçula, é adorável. É exatamente a filha que os pais pediam aos céus. Tendo as súplicas atendidas, eles cobrem a filha de carinho e mimos ao mesmo tempo em que rejeitam os filhos, porque bárbaros. O resultado da trama não poderia ser mais trágico e inesperado: existe uma lógica da violência que se reproduz a partir do estrangulamento da galinha. O fim abrupto e sem as consequências imaginadas de uma trama realista podem sugerir, nos dias que correm, uma falta de empatia do autor para com seus leitores. O leitmotiv parece ser outro. Conforme escreve Sergio Miceli, que no livro Sonhos de periferia também investe na correlação da veia trágica dos contos de Quiroga com a sua jornada errante e trágica: “o famoso conto La gallina degolada, publicado a primeira vez em julho de 1909, aborda desentendimentos que decerto se assemelhavam ao desacerto conjugal que então tomava vulto”. Afora isso, nas histórias de Quiroga, a moral vigente é a da violência gratuita — sem explicação.

A tônica dominante da violência pode aparecer inclusive num ambiente onde a paixão e a admiração reinam de modo soberano. É o que se lê no conto Solitário, por exemplo, quando a entrega de um joalheiro a um amor a princípio improvável não encontra resposta à altura. O homem, então, percebe que é apenas um instrumento nas mãos da mulher, que cada vez dele exige mais, como compensação por estar num relacionamento por conveniência. Afinal, essa desigualdade de expectativas está exposta logo no segundo parágrafo do conto: 

(…) De corpo mesquinho, rosto exangue sombreado por uma barba rala e negra, tinha uma mulher bela e profundamente apaixonada. A moça, oriunda da rua, com sua beleza tinha aspirado a um enlace mais elevado. Esperou até os vinte anos, provocando os homens e as vizinhas com seu corpo. Finalmente, temerosa, aceitou nervosamente Kassim. (…) teve que dizer adeus aos sonhos de luxo. Seu marido, hábil — um artista — carecia completamente de caráter para criar fortuna. Por isso, enquanto o joalheiro trabalhava dobrado com suas pinças, ela mantinha sobre o marido um lento e pesado olhar, e depois saía bruscamente para seguir com a vista, através dos vidros, o homem de boa posição que poderia ter sido seu marido.

À medida que percebe a natureza do afeto de sua mulher, Kassim mostra como a crueldade pode se esconder nos escaninhos da normalidade. E este é um recurso que se desenvolve graças ao encaminhamento da história e também porque, assim como em outros contos de Quiroga, está em jogo a estrutura denunciada por Ricardo Piglia em Teses sobre o conto, publicado no livro Formas breves. É interessante conferir:

O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a história 2. A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico.

O efeito surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.

Mórbido e violento
O comentário de Piglia a respeito de Edgar Allan Poe e Horacio Quiroga não poderia ser mais preciso em relação à estrutura das narrativas desses dois autores. De fato, existem semelhanças na maneira que os contos são formatados, o que não necessariamente significa um truque fácil de ser previsto; antes, o leitor vê seu chão desaparecer tendo em vista os desfechos escolhidos para as histórias. Para além disso, é interessante observar, ainda tomando como ponto de partida o texto de Piglia, o quanto essa estrutura cai como uma luva nos textos de Poe e de Quiroga — graças à natureza mórbida e violenta dos escritos.

No conto Yaguaí — outro texto que guarda paralelo com a vida no campo — nota-se a existência de um raro paradoxo: ao mesmo tempo em que é um espaço de conforto, torna-se, à medida que a história se desenvolve, em um ambiente opressor, perfeito, portanto, para o tipo de tensão dramática afeita à prosa de Quiroga. No conto, um fox terrier mantém sua altivez num território hostil e sufocante: afinal, é um cão de caça esportiva num lugar de sobrevivência extrema, além de ter de suportar uma seca desalentadora. O relato mostra que o cão, apesar de tudo, resiste a todas as armadilhas, incluindo aí o ataque selvagem de pragas selvagens. Ocorre que nem mesmo essa capacidade é o suficiente para que o desfecho do protagonista seja redentor. E o desespero e a angústia superam qualquer expectativa de justiça: em Quiroga, a moral da história é que a vida carece de sentido.

Talvez aqui resida o motivo pelo qual sua trajetória não tenha sido, a princípio, tão bem recebida pelo universo da vanguarda literária argentina. Em que pese o fato de ser um escritor ativo na indústria cultural da época — sendo um escritor profissional e, portanto, tendo conseguido viver de suas publicações —, seu nome fora alijado do campo literário do qual faziam parte publicações de estima junto à crítica, como a revista Sur. Sérgio Miceli, que recupera a trajetória intelectual e pessoal de Quiroga e da poeta Alfonsina Storni no já citado Sonhos da periferia, publicado neste ano pela Todavia, assim escreve sobre o contista uruguaio:

Alfonsina Storni e Horacio Quiroga, contista e novelista de temas sórdidos e escabrosos, além dos direitos autorais auferidos por sucessivas edições das obras, garantiam a sobrevivência colaborando num espectro diversificado de impressos: periódicos literários, revistas de variedades, magazines voltados ao público feminino, suplementos e colunas em jornais. 

Desse modo, ainda que não tenha sido reconhecido à época pela estética de vanguarda de sua geração, a obra de Quiroga envelheceu à altura de seu talento, haja vista que seus escritos passaram por revisionismos e foram republicados, assumindo, a partir de certa altura do século passado, caráter original, singular e com significado estético ajustado à condição cult, como assinala Miceli. E é nesse ponto que a relação entre a vida e a obra desse escritor passa a ser alvo de atenção crescente dos leitores. Ainda nas palavras do autor de Sonhos de periferia, o interesse pelos escritos redobrou a curiosidade de sua vida romanesca.

E é curioso observar que o próprio Horacio Quiroga se mostrou interessado nas biografias de personalidades ilustres de outras épocas. E neste caso é notável como a pena do escritor uruguaio tinha o pendor pelos fatalismos. Em Heroísmos (biografias exemplares)[1], Quiroga apresenta aos leitores feitos extraordinários de um modo que só poderiam ser apreciados no plano da invenção literária. Trata-se, no entanto, de uma coletânea histórias de não-ficção, elaboradas a partir de um olhar irônico, filosófico e demasiadamente humano. E a motivação para a existência dessa série, publicada originalmente na revista Caras y Caretas, não poderia ser mais justificada, como explica o contista:

O homem de têmpera mediana, o homem normal, equilibrado como uma balança, judicioso e previdente, o homem-tipo que somos todos nós, este homem vira as costas ao precipício que lhe custaria a vida, afasta-se das chamas que o fariam arder e foge dos moribundos que o arrastariam na mesma agonia. Aquele que escolhe o outro caminho não ignora que morrerá no profundo abismo, no túnel abrasado, na cidade agônica, mas, apesar dessa certeza, tem um só pensamento: deve fazê-lo. Este sentimento de dever, este impulso do destino que se antepõe à razão, ao siso, à comodidade e ao bem-estar que facilitam viver, constitui, posto em ação, o heroísmo.

Assim como na teoria do conto de Piglia, a trajetória de Quiroga permite que sejam observados os aspectos que estão na superfície enquanto uma trama intestina também é desenvolvida. Para além de sua atividade bem-sucedida como escritor, apadrinhado por escritores como Leopoldo Lugones, Quiroga também era vítima de infortúnios tão extraordinários quanto traiçoeiros: a sina de pertencer a uma família marcada pelo suicídio — uma marca que ainda levaria embora seus filhos, além do próprio escritor, quando este descobriu que estava com câncer —; o fato de a esposa e até de um de seus amigos terem tido mortes trágicas; e a condição de, exatamente graças a tudo isso, ser um autor cuja veia literária conseguir capturar com maestria o que há de mais absurdo e cruel do mundo ao seu redor.

[1] No Brasil, Heroísmos foi publicado pela editora L&PM como parte integrante do livro A galinha degolada e outros contos, com tradução e notas de Sérgio Faraco. (2008)

Horacio Quiroga
Nasceu em Salto, Uruguai, em 1878, e morreu em Buenos Aires, na Argentina, em 1937. É considerado um dos mestres do conto latino-americano, tendo publicado, entre outros, Contos de amor, de loucura e de morte; Los desterrados; e Más allá. No Brasil, sua obra foi recentemente publicada pela editora Hedra (Contos de amor, de loucura e de morte) e pela L&PM (A galinha degolada e outros contos seguido de Heroísmos (Biografias exemplares)).
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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