O enigma do poeta

Amplo dicionário lançado no Brasil apresenta reflexão monumental acerca da obra de Fernando Pessoa
Fernando Cabral Martins, autor de “Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português”
01/12/2010

 

Fernando Pessoa, bem se sabe, cultivou o gosto da persona e do fingimento. Decidido a conceber rosto por detrás de rosto, deixou faces desdobradas em dezenas de heterônimos, multiplicados em milhares de escritos acumulados numa arca. Criou, assim, uma poética dispersa em múltiplas vozes e que expressa o mistério da identidade quando transportada para o plano da literatura.

Dito de outro modo: é um autor que se constitui como um enigma. Razão suficiente, mas não a única, para celebrar a publicação do Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português, que a Editora Leya lança por aqui, dois anos depois do sucesso obtido em Portugal. A versão brasileira apresenta uma edição revisada quanto a algumas informações e acrescida de um índice geral.

Concebida e organizada por Fernando Cabral Martins, professor da Universidade Nova de Lisboa, e também escritor, a obra reúne uma equipe de cerca de 90 colaboradores, que assinam os quase 600 verbetes distribuídos ao longo de um milhar de páginas. Alguns dos especialistas são brasileiros, como é o caso de Haquira Osakabe (a quem o livro é dedicado), Leyla Perrone-Moisés e Maria Lucia dal Farra, entre outros. E, dentre os portugueses, figura boa parte da nata dos que se ocupam dos assuntos ligados ao escritor lisboeta.

Mas, não apenas. O Dicionário trata ainda do contexto e dos autores que marcaram o modernismo literário português. Contribui para essa visão geral o fato de estar organizado não apenas em torno a verbetes de escritores, livros, revistas etc., mas também por apresentar entradas temáticas e comentários sobre os textos mais importantes de Pessoa. Alguns itens ligados ao modernismo brasileiro estão igualmente contemplados, contraponto natural no que se refere ao modo como cada uma das culturas incorporou e digeriu as influências das vanguardas européias.

Em seu todo, o Dicionário constitui uma monumental reflexão em torno da geração da revista Orpheu, seus nexos e desdobramentos. Oferece, por isso mesmo, uma oportunidade de observar em perspectiva o movimento cultural e estético em que se deu o aparecimento de um dos maiores poetas do século.

Apenas para citar um exemplo da excelência e atualidade da pesquisa levantada, são notáveis as considerações feitas sobre o conceito de fragmento/fragmentação na obra de Fernando Pessoa (de autoria de Pedro Eiras e Patrícia Leal, respectivamente), levantando questões pertinentes. Quando certos manuscritos vieram a público, em meados do século passado, o conjunto caótico dos textos deixados pelo poeta foi entendido como “material inacabado”, testemunho de que o autor não chegara a termo em seu projeto literário.

Novecentos
Com o passar das décadas, esse mesmo traço foi ganhando novos contornos, oferecidos também pela publicação de textos inéditos. Mais que nunca, a idéia de fragmento e de fingimento do eu passou a constituir o cerne da estética pessoana, passando a ser valorizada enquanto modernidade extrema. Entendida como uma “obra aberta”, sua escrita mostrou-se bem adequada à sensibilidade da segunda metade do Novecentos — período em que o autor ganhou relevância internacional. Sem querer, Pessoa foi se tornando um escritor pós-moderno. O poeta não mudara, mas mudaram as leituras e as circunstâncias.

Outros itens de interesse alargam o entendimento do leitor — sobre ocultismo, gênio e loucura, doença, neoplatonismo, feminino e sexualidade, por exemplo —, de modo a resgatar as principais linhas de força atuantes no fenômeno modernista. E no centro delas, claro está, sobressai o tópico da heteronímia. Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Bernardo Soares e outras dezenas de heterônimos acabam por constituir um sistema literário único e singular, capaz de desconstruir a crença na subjetividade, tão característica da poesia moderna a partir de Baudelaire.

São inúmeras as explicações até hoje acumuladas ao redor desse dispositivo de máscaras. Dentre as mais importantes, vale citar os estudos de Jacinto do Prado Coelho, Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, Adolfo Casais Monteiro, José Augusto Seabra e José Gil. Conforme o viés do crítico, distintos elementos são considerados e valorizados — seja com ênfase nos aspectos formais dos textos, seja enveredando por considerações psicanalíticas ou filosóficas. A diversidade de abordagens, contudo, tão somente reitera a enigmática substância deste “drama em gente”.

Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro promoveram uma escrita afinada com a sensibilidade do novo século e seus impasses. Ao tomarem a sensação como fonte privilegiada para a expressão poética, ambos os modernistas desbravaram um território experimental para a imaginação portuguesa, e que se resume na seguinte máxima: sentir é fazer pensar ao sentimento. Adquirir uma consciência estética que está para além do que se sente. Conseguiram, desse modo, desviar o foco do passadismo literário nacionalista, cultivado por Teixeira de Pascoaes e seus seguidores. E assumiram a defesa de uma visão marcadamente cosmopolita.

Felizmente, este bem-vindo Dicionário permite-nos passear por essas questões e outras. Ainda assim, deixa em aberto qualquer resposta conclusiva sobre as ambigüidades de seu autor maior. Mais que resolver a intriga, esta obra reúne elementos para melhor compreender a fecundidade e o risco de tal aventura literária. E não podia ser diferente. O rosto de Pessoa continua oculto por detrás das máscaras, resistindo às explicações dos especialistas.

Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português
Fernando Cabral Martins
Leya
988 págs.
Fernando Cabral Martins
Nasceu em 1950, em Portugal. É escritor e professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Publicou diversos livros de ensaios e de ficção, como Viagem ao interior, Western e A cidade vermelha, entre outros.
Fernando Paixão

Nasceu em Portugal. No ensaísmo, publicou Narciso em sacrifício (2003), sobre a obra poética de Mário de Sá-Carneiro, e Arte da pequena reflexão (2014), sobre o gênero do poema em prosa. Estreou na poesia em 1980 e desde então publicou seis livros, o mais recente deles, em 2015, Porcelana invisível.

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