O direito à pausa

De início contundente, "Caos calmo", de Sandro Veronesi, não sucumbe ao melodramático e nos faz pensar (e muito) sobre a morte
Sandro Veronesi, autor de “Caos calmo”
01/04/2009

Um homem mergulha às pressas no mar para salvar uma desconhecida que está se afogando. Depois de muito esforço, consegue empreender o feito heróico, mas, ao voltar para casa, descobre que, naquele mesmo momento em que salvava uma vida, sua mulher morria de aneurisma.

Todo esse cenário inicial, em tese, estaria fadado a exigir as tintas carregadas de um romance melodramático, predestinado a suscitar lágrimas copiosas. No entanto, nada disso acontece, ao longo das 415 páginas deste Caos calmo de Sandro Veronesi.

Calmamente e sem nenhum visível desespero, somos conduzidos pela hábil mão de Pietro Paladini, o narrador-protagonista desse drama, que acaba de ficar viúvo, a nos sentar num banco de praça em Milão, diante da escola de sua filha Claudia, de dez anos, e lá permanecer, vendo a vida passar. Uma espécie de não gritante a todos os modos previsíveis de comportamento, diante de situações de perda e luto. Uma suspensão das atitudes socialmente aceitas e “politicamente corretas”: elaborar a morte por meio da pausa. Não da pausa convencional, de tempo concedido aos indivíduos, em que o respeito à dor de quem perde entes queridos é cronometrado pelo relógio da produtividade, que estabelece, com precisão, a hora, o minuto e o segundo em que a dor deve parar. Apenas uma pausa reivindicada, para que se possa estar à altura do que a vida, com todas as suas armadilhas, exige: parar para ver e estar com a filha, o único porto seguro, agora, o ponto fixo mais importante do universo.

Assim, para a surpresa de todos, Pietro será encarado como o estranho homem, que, diante da morte súbita da mulher, como se vivesse um surto, resolve levar a filha à escola todas as manhãs e eleger, como lugar para a pausa, o banco da praça em que se senta, para que, no intervalo, Claudia, simplesmente, venha até a janela e o veja e lhe acene. Isso é o que importa.

De certa forma, Pietro revê os modos pelos quais a sociedade contemporânea lida com a morte, estabelecendo parâmetros próprios e subjetivos para elaborá-la. Reage contra o que se esperaria e acaba nos fazendo questionar os meios pelos quais somos levados a evitar o processo do fim.

Isso nos faz lembrar o que ensina Walter Benjamin, em O narrador, ao constatar que no decorrer do século 19, os mecanismos burgueses de higienização acabaram por “oferecer às pessoas a possibilidade de se furtarem à visão dos moribundos e […] morrer, durante a Era Moderna, é cada vez mais repelido do mundo perceptível dos vivos”. Os nossos são, portanto, “ambientes purificados de morte”, pois ao adoecermos ou envelhecermos, o caminho natural é o dos hospitais e asilos. Nesse mecanismo, a sociedade da juventude eterna, plasticamente preservada em formol, se libera das ruínas, livre dos sinais de decrepitude que a proximidade do fim causa.

Em consonância com esse olhar distanciado, de veto à morte, com o aparato que vende bem-estar, as cenas ritualísticas de luto, que prolonguem os efeitos “danosos” causados pela ruptura com a vida, precisam ser evitadas.

Ao requerer ao mundo o direito a essa pausa, correndo todos os riscos de ser taxado de louco, o narrador protagonista dessa história, ao menos, coloca em questão o que a maioria de nós não consegue mais fazer: enfrentar, a seu modo, a eterna dor das chamadas “perdas necessárias”.

Abraço de afogado
Sem que pudesse imaginar, aos poucos, o que lhe passa a acontecer é, para dizer o mínimo, instigante. Cada um dos personagens que aparecem, no longo fluxo da narrativa, tornam-se, metaforicamente, semelhantes a vítimas prestes a se afogar, que precisam buscar consolo em Pietro, o salvador. De vítima, ele passa, de repente, a adquirir a força dos que ousam nadar contra a maré. Por ter assumido, de modo aparentemente apaziguado, as seqüelas da própria dor, é como se fosse investido, pelos demais, do poder do psicanalista, capaz de ser todo ouvidos às mais secretas dores da alma alheia.

Nos quase três meses que ali permanece, veremos uma sucessão de seres diversos — desde altos funcionários da poderosa rede de televisão em que trabalha, até sua cunhada, o único irmão, além dos outros que surgem naquele ambiente em torno à escola — vindo sentar-se a seu lado, apenas para, sob o pretexto de o estarem consolando, serem, na verdade, por ele consolados. O banco da praça, no lugar do divã.

Inevitável a remissão ao primeiro momento que abre o livro: o da luta para salvar a mulher que se afogava e que, como todo aquele que está se afogando, lhe dá o abraço desesperado, com a força furiosa de quase levá-lo para o fundo da água também.

Vivendo aquele “caos calmo”, como define o próprio momento, Pietro se humaniza demais e, sem saber, concede aos outros, assim como concedera àquela primeira vítima, a acolhida necessária, num mundo em que todos parecem se afogar, nas carências inesgotáveis dos mares da existência.

Eros x Tânatus
Na travessia desse tumultuado mar de histórias, notamos que tudo converge para os dois eixos dialéticos de força, descritos por Freud, nas obras Além do princípio do prazer (1920) e O mal-estar na civilização (1929): Eros e Tânatus.

Eros manifesta-se como libido e é o instinto da vida, pois tem como função unir os indivíduos. Age, nesse sentido, a favor da civilização e da vida comunitária.

Tânatus encontra-se num segundo plano, podendo ser percebido por meio das manifestações de agressividade. Age contra a civilização, já que busca a volta ao estado inorgânico, à quietude, à morte, opondo os homens uns contra os outros, processo que se confronta ao de Eros.

O romance que aqui analisamos, basicamente, se estrutura em torno desses dois grandes eixos, que se projetam em cada uma das histórias narradas. Trata-se, na verdade, de uma obra que aborda as complexidades da psique humana, sem cair na trama fácil do psicologizante.

Daí algumas cenas recorrentes, dotadas de forte colorido erótico, que concentram, na dinâmica da libido do protagonista, uma espécie de convocação desesperada à vida, em suas pulsões mais instintivas e naturais, as únicas capazes, a nível inconsciente, de se contrapor ao peso sufocante da morte.

O viés erótico, nesse caso, se veste, não apenas com a roupagem aleatória dos que buscam traduzir as ousadias da libido humana, quando não totalmente refreada pelo superego. Muito mais do que um recurso apelativo, no corpo da narrativa, Eros revela a pulsação da vida em latência, que precisa resistir, como poros que buscam respirar, por baixo da derme fria da morte que está à espreita.

É o que depreendemos do seguinte trecho, em que o protagonista se percebe excitado no momento em que se enreda no corpo da mulher que está se afogando:

Estou fazendo isso, sim, para salvar, para salvar-me, mas essa incongruência agora me assusta mais que a morte, porque nunca estivera tão próximo dela, e constatar na hora que olhar a morte nos olhos me faz esse efeito, e descobrir que no fim acaba… e depois de elaborá-la e dali a pouco aceitá-la, amansá-la, domesticá-la como a uma leoa mórbida de salão, a morte me excita a ponto de associá-la a uma decadentíssima fantasia sexual que não me lembro de ter tido antes, tudo isso, merda, e não a morte em si, tudo isso me assusta.

Mas não nos enganemos. Pietro não é um herói bem-comportado. Enquanto recebe sobre si as mazelas das dores dos outros, chegando a pensar em voz alta que aquele seu lugar é como o “muro das lamentações, sem ser um muro”, lida o tempo todo com a própria culpa de sentir que não está, de fato, sofrendo. Para ele, a pausa para elaborar a perda é, de modo contraditório, uma exaustiva espera da dor que parece não vir… A armadilha do inconsciente não se pauta pela lógica do previsível. É antes a do mergulho nos labirintos do ser, a viagem mais difícil e atemorizante.

Veronesi e Schnitzler
Não parece ser outra a viagem que está no cerne das questões propostas pelo escritor austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), a quem o narrador evoca e homenageia explicitamente. De fato, em certo momento do romance, Pietro revela que um de seus maiores sonhos seria o de filmar o livro Aurora do mencionado autor.

Para além desse dado, a reiterar a já conhecida fama do escritor vienense como a de nitidamente “cinematográfico” (verifique-se, por exemplo, a brilhante adaptação feita por Stanley Kubrick do livro Breve romance de sonho, no filme De olhos bem fechados), há a intertextualidade, que se evidencia na fonte de temas e recorrências do autor italiano, a dialogar com as obras de Schnitzler.

Percebemos, a aproximar os dois escritores, o trato minucioso de situações em que o homem é o reflexo das manifestações da psique. Em cena, principalmente, Eros, Tânatus, o “obscuro objeto do desejo”, as sondagens de conflitos internos, as projeções, os complexos, fundados nos estudos psicanalíticos de Freud (de quem, aliás, Schnitzler era muito próximo, considerado, por alguns, como seu duplo).

Um deles aponta, na Viena da virada do século 19, a miséria da condição humana, a hipocrisia de uma sociedade burguesa em decadência. De modo análogo, o outro, o protagonista de Veronesi, ouve de todas as consciências narrativas que por ele passam as mais inconcebíveis armadilhas e atitudes desprezíveis de traição, inveja, competitividade, abandono.

Em ambos os casos, Tânatus, convocado, em toda potência agressiva, desagrega os homens, jogando-os em seu antagonismo e barbárie.

Cinema e Radiohead
Sandro Veronesi pertence à geração de autores italianos que faz questão de dizer em que fontes multimidiáticas bebe. Está ao lado, por exemplo, de Niccolò Ammaniti, Susana Tamaro, Margareth Mazzantini, de cujas obras se tem feito diversas adaptações para o cinema.

Assim é que, logo no primeiro capítulo de Caos calmo, percebemos o diálogo explícito com o filme La stanza del figlio (2001), dirigido e protagonizado por Nanni Moretti. Neste caso, um psicanalista vai atender ao chamado de um paciente quando, no mesmo momento, ao voltar para casa, se dá conta de que um grave acidente ocorrera, levando à morte de seu filho. Nas duas situações, temos a questão da simultaneidade das ocorrências de salvação e morte, com prejuízo dos protagonistas. Não parece ser casual que Nanni Moretti, viva, no cinema, Pietro Paladini (2008)…

Além disso, muitos personagens vão sendo evocados por se assemelharem a atores de cinema. Por exemplo, Marta, a cunhada, tão bela como Natalie Wood. Eleonora Simonetti, a mulher que teria sido salva do afogamento e com quem Pietro acabará se relacionando, uma típica mulher de formas exuberantes, felliniana. Outra, uma francesa, parecida com Isabelle Adjani. O velho romano viúvo, que o chama de doutor, caracterizado com fortes traços pasolinianos. Steiner, um poderoso empresário judeu, como uma nova versão de Marlon Brando.

Desse modo e com referência a diversos títulos de filmes famosos, ele cria a intertextualidade temática com a sétima arte. Mas o faz melhor ainda, formalmente, apelando a procedimentos narrativos que privilegiam a linguagem cinematográfica propriamente dita, ao investir em diálogos, marcações e rubricas que compõem cenários, descritos com a mesma minúcia e precisão de quem sabe empunhar uma câmera.

Ainda fazendo jus às múltiplas linguagens, permite que as letras das canções do Radiohead invadam a página em branco, coladas, literalmente, no corpo da narrativa, a partir do original em inglês, a fim de elucidar as crises do protagonista, em relação à esposa morta. Uma delas diz: we are accidents waiting to happen.

Talvez ler este livro de Veronesi nos convide a parar, ao lado de Pietro, para atender aos chamados da vida, enfim, a esses acidentes que estão sempre “prestes a acontecer”…

Caos calmo
Sandro Veronesi
Trad: Gabriel Bogossian
Rocco
415 págs.
Sandro Veronesi
Nasceu em Florença, Itália, em 1959. Considerado como um dos melhores escritores italianos da sua geração, publicou o seu primeiro romance em 1988. Em 2000, alcança um grande sucesso com La forza del passato, vencendo os prêmios Campiello e Viareggio. Caos calmo foi premiado com o Strega em 2006, em 2008, com o Méditerranée e o Femina para o melhor romance estrangeiro publicado na França. Este romance foi também adaptado para o cinema, num filme realizado por Antonello Grimaldi e protagonizado por Nanni Moretti. A sua obra encontra-se traduzida em quinze línguas.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

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