O canto de adeus

Autobiografia de Stefan Zweig revela as angústias de um escritor em busca de tolerância e liberdade
Stefan Zweig, autor de “Autobiografia: o mundo de ontem”
01/03/2015

Em 1934, Stefan Zweig, então um dos escritores mais populares do mundo, viu sua casa ser invadida por uma tropa da SS à busca de armas. Tratava-se de uma agressão absurda a um pacifista notório. O mundo de segurança e humanismo que ele havia cultivado estava prestes a chegar ao fim. Oito anos mais tarde, em uma modesta casa em Petrópolis (RJ), junto com sua esposa, foi Zweig quem pôs fim à própria vida.

A trajetória deste homem é emblemática do que se passou em escala mundial entre a Primeira e a Segunda Guerra. A necessidade de deixar um testemunho o motivou a escrever Autobiografia: o mundo de ontem (título original: O mundo de ontem: memórias de um europeu). “Não será uma autobiografia, mas o canto de adeus à cultura austro-judaico-burguesa que culminou com Mahler, Hofmannsthal, Schnitzler, Freud. Pois essa Viena e essa Áustria nunca mais serão as mesmas, jamais voltarão. Somos as últimas testemunhas”, afirmara a um amigo, em carta de junho de 1939.

Stefan Zweig nasceu em Viena, em 1881, em uma família judia assimilada à cultura do Império. Era uma geração de judeus que falava alemão como língua materna, muito destacada na vida cultural de uma das cidades mais cultas da Europa. Pela primeira vez em séculos, não precisavam esconder sua identidade, tampouco eram por ela definidos. Sentiam-se, antes de tudo, europeus, e não tinham qualquer motivo para imaginar que isso mudaria. A Autobiografia é um lamento pela perda desse mundo de valores como tolerância e crescimento cultural; um eloquente bilhete de suicídio, que une os pontos de batalhas pessoais feito sombrios alfinetes sobre um mapa de guerra.

Observação concisa
Sobre sua formação, Zweig conta que “as conversas nos cafés eram muito mais educativas do que o banco da escola”. Leitor e amigo de Freud, resume de forma brilhante os efeitos da hipócrita repressão à sexualidade, o temor das doenças “venéreas” ou de filhos ilegítimos:

Quando tento me lembrar fielmente, recordo pouquíssimos camaradas dos meus anos de juventude que não tenham chegado um dia pálidos e preocupados, um porque havia se contaminado ou temia adoecer, o segundo por estar sendo chantageado por causa de um aborto, o terceiro porque não tinha dinheiro para se submeter a um tratamento sem que a família soubesse…

Seu conhecimento de psicanálise o levou a incorporá-la à sua técnica narrativa, recurso então inovador. Grande observador do comportamento humano, via com ironia as reações de manada nas redes sociais da época. Após o assassinato do príncipe Francisco Ferdinando, por exemplo, monarca pouco respeitado, surgiu na imprensa uma onda de manchetes para fomentar a beligerância. O autor descreve:

A confusão foi ficando cada vez mais absurda. A cozinheira no fogão, que jamais saíra de sua cidade e que desde os tempos de escola nunca mais abrira um atlas, acreditava que a Áustria não poderia mais sobreviver sem o Sandschak (um pequeno distrito limítrofe em algum lugar da Bósnia). Os cocheiros discutiam na rua que tipo de indenização de guerra deveria ser imposta à França, cinquenta ou cem bilhões, sem saber quanto era um bilhão.

Esse tipo de debate o entediava. Interessava-lhe entender a criatividade artística, inclusive sua própria, em que as novelas dominaram a produção ficcional. “Meu querido mas infeliz gênero, comprido demais para um jornal ou revista, curto demais para um livro”, queixava-se — porém sem motivo. A literatura alemã não teve forte participação no rol dos grandes romances do século 19, mas a novela consagrou-se com Goethe. Seu formato compacto, de atmosfera contida pela mão do autor, e o foco sobre um único clímax ajustavam-se muito bem à sensibilidade de Zweig. O inescapável fluxo narrativo em sua própria e nas outras biografias que escreveu, segundo ele mesmo, era resultado do corte de tanto material quanto possível.

Se qualquer coisa explica de alguma forma a influência de meus livros, para mim é a disciplina rígida de preferir me limitar a formas mais limitadas, mas sempre ao que é verdadeiramente essencial (…) Toda prolixidade, tudo o que retarda superfluamente um debate intelectual, me irrita.

Além da concisão, o autor tinha um dom: enxergar padrões de comportamento e suas consequências na vida das pessoas. Com poucos dados, construía uma imagem completa. Os ensaios biográficos que ilustram a Autobiografia, como esboços de um artista no metrô, pinçam a essência de Rilke, Rolland, Hofmannstahl e lhes sopram vida.

As pessoas que mais me comoviam (…) eram as sem pátria, ou pior ainda: as que, em vez de uma só pátria, tinham duas ou três e não sabiam em seu íntimo a qual pertenciam. Em um canto do Café Odeon costumava ficar sozinho um jovem com uma pequena barbicha castanha, óculos de lentes muito grossas diante dos olhos penetrantes e escuros; diziam que era um poeta inglês muito talentoso. Quando, alguns dias mais tarde, conheci pessoalmente James Joyce, este recusou de maneira decisiva qualquer relação com a Inglaterra. Disse que era irlandês.

Zweig intuiu logo o conflito essencial na vida do irlandês: sua identidade. A linguagem que Joyce criou e o transformou em marco na literatura, o profundo conhecimento de diversos idiomas e culturas, os personagens idiossincráticos e absolutamente universais, tudo era consequência deste fato.

Esse efeito de compressão, a partir de poucos e intensos detalhes de toda uma existência, está sempre próximo ao coração de Stefan Zweig. Em suas novelas ou biografias, coexistem a fixação por estados psicológicos extremos e um distanciamento que causa sensação de objetividade. De forma sutil, o mesmo se dá na Autobiografia: o autor pouco relata de sua intimidade, mas muito revela de si através de observações sobre os amigos. Enquanto exalta a coragem de Benedetto Croce por sua resistência a Mussolini, o que o obrigou a terminar seus dias isolado, Zweig confessa: “(…) foi preciso passarem alguns anos até eu compreender que a provação desafia, a perseguição fortalece e o isolamento eleva o indivíduo, se não o destrói”. Observador de si, de seus momentos de profunda tristeza e isolamento, devia saber, secretamente, que aquilo que o fortalecia na literatura seria seu próprio veneno.

Rumo ao Brasil
Com seu olhar particularizado, pessoal, a Autobiografia traz fatos novos ou os apresenta de forma a acrescentar à sua compreensão. Assim como Zweig relata que quando se viu pela primeira vez obrigado a portar um passaporte constatou, chocado, a perda da liberdade geográfica, em sua ficção começaram a aparecer personagens atormentados pela guerra, divididos entre a aversão aos nacionalismos e a acusação de covardia.

Décadas mais tarde, já falecido, foi acusado por Hannah Arendt de descaso frente à realidade política. A verdade, porém, fica longe daí. Zweig culpava a ascensão de Hitler por tudo o que perdeu. Em 1933, seus livros foram proibidos. “Das centenas de milhares e até milhões de exemplares dos meus livros que tinham seu lugar seguro nas livrarias e em inúmeros lares, não se encontra mais um único à venda na Alemanha hoje.” Em nenhum momento, porém, culpa o povo alemão por tal medievalismo. “Nada deixou o povo alemão tão exasperado, hostil, maduro para aceitar Hitler — e isso há que ser lembrado sempre — como a inflação.” E será que Arendt teria hoje coragem de denunciar a nova ascensão do obscurantismo?

Zweig partiu para a Inglaterra, e em 1936 passou pelo Brasil. Conforme relata Alberto Dines, autor do prefácio e posfácio da obra, “na sua primeira visita ao Brasil (…) o país pareceu-lhe um lugar pacífico, onde um povo miscigenado convivia harmonicamente. Deslumbrou-se. (…) Achou que naquele momento, com o nazismo se expandindo, o Brasil tinha algo a dizer ao mundo”.

Para um escritor, não há patrimônio maior do que linguagem, filha do idioma. Zweig foi obrigado a deixar para trás seu idioma. Teria de reinventar-se em um novo. Em Nova York, no ano de 1941, em um discurso inesquecível que fez perante cerca de mil escritores, disse:

Estou aqui para me desculpar perante todos vocês. Estou aqui em vergonha porque minha língua é o idioma no qual o mundo está sendo destruído. Minha língua mãe, as próprias palavras que pronuncio, estão sendo distorcidas e pervertidas por esta máquina que está desfazendo a humanidade.

A questão do comportamento como contingência das circunstâncias foi abordada muitas vezes em sua obra. Zweig conhecia bem a angústia face a verdades esmagadoras. Não há dúvida, para especialistas de renome como Alberto Dines, autor de cinco edições da biografia de Zweig, que sua depressão não aconteceu de um dia para o outro. O Brasil era uma última esperança.

Lotte e Stefan Zweig imigraram ao Brasil em 1941, logo após o lançamento de Brasil, um país do futuro. O autor foi recepcionado com honras de chefe de estado, mas não deixava de ser um refugiado na ditadura do Estado Novo. Getúlio Vargas há muito fechara as fronteiras do Brasil aos judeus, e Zweig só conseguiu seu visto graças à publicação desse livro. Era uma declaração de amor ao povo brasileiro, à tolerância, ao calor humano, e, no entanto, foi muito mal interpretado. Apesar de nada ter de ufanismo ou propaganda, o livro foi visto como um elogio à ditadura, e Zweig foi duramente criticado na imprensa. Ficou arrasado.

Nas cartas que escreveu nos últimos meses de vida, a depressão dava o tom. Apesar de muito grato ao povo brasileiro por recebê-lo, sentia-se isolado. Estava distante de seus amigos e livros; sua esposa tossia dia e noite, definhava; o Brasil estava prestes a declarar guerra. Era fevereiro de 1942. Stefan Zweig organizou seu testamento, terminou o manuscrito da Autobiografia. Redigiu um adeus aos amigos, mas antes agradecia “este maravilhoso país, o Brasil, que propiciou a mim e à minha obra tão boa e hospitaleira guarida. A cada dia fui aprendendo a amar mais e mais este país, e em nenhum outro lugar eu poderia ter reconstruído por completo a minha vida”. A tristeza desse homem de ontem continua a simbolizar a do homem de hoje. A aurora de tolerância e liberdade está tão distante hoje quanto no dia em que Stefan Zweig desistiu de esperar por ela.

Autobiografia: o mundo de ontem

Stefan Zweig
Trad.: Kristina Michahelles
Zahar
400 págs.
Stefan Zweig
Nasceu em Viena, em 1881. Escreveu dezenas de novelas, romances, peças de teatro e biografias, tornando-se um dos escritores mais populares do mundo em sua época. Refugiando-se do nazismo, mudou-se para Londres em 1934, e posteriormente para os Estados Unidos. Encantado com o Brasil, obteve visto permanente na ditadura de Getúlio Vargas em 1941, e instalou-se em Petrópolis (RJ). Em fevereiro de 1942, amargurado com a guerra e a crítica a seu livro Brasil, país do futuro, junto com Lotte, sua esposa, suicidou-se.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho