O barão e o pachuco

Silviano Santiago convida o leitor a uma reflexão crítica e detalhada e a uma incursão ao universo de nossas raízes latino-americanas
Silviano Santiago: leitura criteriosa nos aspectos estruturais da obra de Sérgio Buarque de Holanda e Octavio Paz.
01/05/2007

Silviano Santiago, em As raízes e o labirinto da América Latina, se debruça sobre Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e O labirinto da solidão (1950), de Octavio Paz, para construir sua narrativa, sob olhar atento e contemporâneo. Dentro dessa perspectiva, já anunciava nos finais da década de 70: “o imaginário, no espaço do neocolonialismo, não pode ser mais o de ignorância ou de ingenuidade, nutrido por uma manipulação simplista dos dados oferecidos pelo autor, mas se afirmaria mais e mais como uma escritura sobre outra escritura”. Nesse século 21, essa postura mais que se afirma, se radicaliza.

As raízes e o labirinto da América Latina é uma escritura sobre outras escrituras, que por sua vez são escrituras sobre outras escrituras. Conseqüentemente, tratam-se de leituras sobre leituras. Santiago, além da homenagem que presta a Sérgio Buarque de Holanda e Octavio Paz, convida o leitor a uma reflexão crítica e detalhada e a uma incursão, também poética, a esse universo de nossas raízes e labirinto da latino-americanidade, num tempo globalizado.

Para isso, ele parte de uma leitura criteriosa nos aspectos estruturais das duas obras e se propõe a estabelecer uma desconstrução, basendo-se teoricamente em Derrida, ao mesmo tempo em que lança alicerces de uma nova narrativa. Esta se afirma, por um lado, pelo resgate de nossa tradição cultural e identitária, ou seja, no estudo da “permanência da tradição no discurso da modernidade” que, com suas diferenças, Sérgio Buarque e Paz representam; por outro lado, pela ruptura com essa tradição em seus aspectos múltiplos e reveladores da contemporaneidade ou pós-modernidade, que a narrativa de Santiago sintetiza.

Já no primeiro capítulo, Silviano constata que ambas as narrativas analisadas “marcam nas respectivas culturas nacionais o fim do saber literário como fundamento primordial das grandes interpretações da América Latina”. Apesar de escritas com a distância cronológica de mais de uma década (1936-1950), ligam-se por muitos pontos em comum, dentre eles a ampliação da abordagem, caracterizada por novos campos do saber e novas sensibilidades éticas e estéticas (antropologia, etnologia, psicanálise, sociologia, filosofia, etc.).

A forma de ensaio, sob a qual as três interpretações (de Buarque, Paz e do próprio Santiago) se apresentam, permite a incorporação multidisciplinar dos novos elementos aos textos que tensionam velhos significados já congelados e abrem para novas resignificações. O estudo feito por Santiago se define como um jogo entre o significado aparente dos textos estudados e a sua significação latente, que põe em xeque a tranqüilidade da compreensão das leituras tradicionais desses textos. Impõe-se, portanto, como tarefa, o questionamento de conceitos como identidade fixa e outras verdades absolutas cristalizadas para que assim se possa construir “nova leitura que se abra para uma ‘avaliação’ atual e mais justa da contribuição dos dois grandes pensadores”.

Com relação a alguns elementos destacados na leitura comparativa, dois vocábulos-chaves selecionados pelos pensadores são analisados por Silviano no sentido de ampliar ao máximo suas possibilidades de leituras. Inicia-se a discussão dos personagens escolhidos para a representação do brasileiro e do mexicano: o barão e o pachuco. Ambos estão relacionados a perspectiva ibérica centrada na cultura da personalidade, na qual os interesses privados se sobrepõem aos interesses públicos.

A construção dos personagens em cada texto em seus detalhes, na relação com cada contexto e cada escolha estética amplia a discussão ­a cerca de representação, nacionalidade, identidade, territorialidade, etc. Buarque, ao centrar-se no “barão” como personagem da nacionalidade brasileira, Paz, no imigrante mexicano em solo norte americano (pachuco), e Silviano Santiago, no estudo comparativo dessas imagens, abrem uma série de questões, que apesar de não serem explicitadas, estão latentes e permitem que a releitura contemporânea as reconsidere. A escolha dos personagens já indica o caráter fragmentado da perspectiva de construção do conceito de identidade. Ou seja, atesta a impossibilidade dessa representação ser única e totalizante. Na medida em que o barão é destacado, fica subentendido que outros possíveis personagens poderiam ser trabalhados enquanto representantes de nossas raízes. Por outro lado, a escolha do pachuco, sua desorientação e desterritoriedade, situado enquanto categoria social excluída dos privilégios da cidadania, aciona imediatamente os aspectos conflitantes e paradoxais de uma tranqüila leitura tradicional.

O personagem de cada texto é um dentre tantas possibilidades de escolha de seus narradores. O que é representação dentro dessa perspectiva? Como se reportar a questões como nacionalidade e latino-americanidade sem relacioná-las a um mundo globalizado que ao tentar homogeneizar os tipos humanos mais forja a diferença de interesses, o individualismo exacerbado e as heterogeneidades?

Máquinas textuais
No capítulo 2, a abordagem se dá em torno das duas máquinas textuais de diferenciação: raízes e labirinto. Em Buarque de Holanda, a identidade latino-americana se define por uma única máquina textual de diferença, a nossa origem européia, nossas “raízes”. Paz começa a imaginar miticamente e/ou poeticamente a diferença a partir do pachuco, ser híbrido, enigmático, habitando o solo norte-americano, perdido no labirinto da solidão que o liga a humanidade e, ao mesmo, dela o isola.

Do ponto de vista da organização literária do texto ensaístico, o trabalho de Buarque de Holanda tem uma predominância canônica e historiográfica que estabelece regras de construção narrativa baseadas na moderna ficção ocidental. Há um compromisso com a história ocidental através da voz de um personagem narrador que trabalha a predominância da linguagem referencial no seu texto. Estabelece presenças de realidades sob forma de dicção do real, contudo o texto ensaístico ensaia outras possibilidades de expressão, perpassadas pela linguagem metafórica.

Desta maneira, entram em cena o ladrilhador e o semeador como elementos que estabelecem a diferença entre a perspectiva da colonização espanhola e a da portuguesa. As duas imagens são detalhadamente exploradas por Silviano a partir do texto de Buarque. O ladrilhador é explorador empreendedor, organizado, racional, intelectual, desbravador do interior e implantador de cidades planejadas; o semeador é marinheiro, aventureiro, desleixado, planta cidades desordenadamente pelo litoral, extrativista das riquezas naturais, semeia a palavra de Deus e a língua portuguesa na nova terra. A abordagem vai desde a caracterização psicológica mais elementar até seus desdobramentos mais sofisticados. Discute-se como os colonizadores ocuparam e lidaram com o território conquistado, a cultura que implementaram e as marcas que deixaram.

Além de tudo isso, Silviano destaca a sutil preferência e admiração de Sérgio Buarque de Holanda pelo ladrilhador, sua prática racional e preocupada com a construção planificada do Novo Mundo. Daí, passa a estabelecer relação com a própria concepção da construção estética do texto ensaístico, centrado na historiografia de raízes européia e com forte vínculo na tradição literária.

Em linhas gerais, Silviano passa a voltar-se para a discussão da diferenciação das escritas de Buarque e Paz suas estratégias e suas filiações. Constata a partir de detalhado estudo das duas obras: “Se na linguagem das vanguardas artísticas históricas, o compromisso de Octavio Paz é com a atividade surrealista, o de Sérgio Buarque de Holanda é com a estética construtivista”. Enquanto o autor de Raízes do Brasil é centrado nas ciências sociais com referencial privilegiado na história, o autor de O labirinto da solidão faz seu percurso voltado para uma leitura antropológica, na qual Mito e História dialogam. Consequëntemente, dentro da perspectiva da construção do tempo nas narrativas, enquanto na primeira predomina o tempo histórico e, portanto, linear, na segunda o tempo mítico, em aspiral, dá a tônica.

Silviano Santiago, ao analisar a organização literária do texto de Paz, destaca suas regras de construção como próximas às do poema lírico, nas quais são utilizados os recursos de uma íntima relação do Mito com a História. Neste sentido, muitos são os caminhos que se bifurcam, ou se multiplicam. A voz narrativa sofre fraturas e metamorfoses, assumindo tons diferenciados e que, algumas vezes, se contradizem, algumas se harmonizam, algumas se desdobram. É o que caracteriza as abordagens do ensaísta, do etnólogo e do poeta nessa voz narrativa construída em conflito. Ao etnólogo cabe ouvir a dicção da tradição de uma cultura popular, muitas vezes conservadora, sua palavra má, seus mitos, o código de hombridade, do homem mexicano que hierarquiza a humanidade a partir dos termos fechado e aberto, homem superior, mulher inferior, aberta, decaída. Uma máscara de diferenciação que abre a discussão de gênero, carregada de conflitos e paradoxos. Só ao poeta é possível transitar no entre e realizar a transcendência dessa lógica. Ou, na perspectiva de Deleuze é preciso alterar essa doxa da lógica formal do isso ou aquilo para uma paradoxa, na qual o isso e aquilo dialoguem em seus conflitos, para a construção de sentidos precários, no plano da superfície da linguagem. A discussão de gênero em Raízes do Brasil não se dá. Aí a máscara do brasileiro está ligada ao homem no sentido “universal” do termo. É a cordialidade que o caracteriza como emotivo, desleixado, guiado mais pelo coração e seus impulsos do que pela racionalidade.

Movimento de reorientação
A sobreposição de narrativas, na maioria das vezes, é tão sutil que o narrador do texto de As raízes e o labirinto da América latina parece estar apenas preocupado com a homenagem e a simples leitura e interpretação dos livros que estuda. Entretanto, volta e meia, há uma premente necessidade de esclarecer os objetivos e a relevância do que emerge no seu texto. Opera-se um movimento de reorientação da leitura para marcar o lugar da onde se fala. Ou seja, é uma forma de recolocar em foco o entre-lugar no qual se situa o sujeito do discurso, o entre-lugar no qual este sujeito reconstrói a interpretação da nossa história cultural sob novo olhar, novos pressupostos e ponto de vista. Situa-se entre a crítica racional e sistemática e a inegável paixão pelo exercício da atividade ensaística, literária e poética.

A voz narrativa de As raízes e o labirinto na América Latina vive também muitos dos conflitos dos narradores dos textos que analisa, conhece o amor e o respeito a nossas raízes européias, tem ouvido aberto de etnólogo para nossas tradições populares e intelectuais, transita no abismo de sentimentos e racionalidades, se encontra e se perde, enquanto poeta, no labirinto da solidão de uma humanidade ao mesmo tempo particular e universal.

O que Silviano Santiago traz a mais que seus antecessores são os instrumentais teóricos de que hoje dispõe para empreender suas buscas. O que traz a mais na bagagem, e que reconhece como significativa contribuição, é a própria produção de seus antecessores. Como estes, é munido de coragem suficiente para questionar monstros sagrados, verdades congeladas e seus mitos e se inscrever como marco na nossa história cultural.

Toda narrativa de Silviano Santiago é atravessada por outra já anunciada no seu texto “O entre-lugar do discurso latino-americano”, de Uma literatura nos trópicos. Situa-se no “entre-lugar” de quem se nega a adotar o discurso e a identidade do outro como seus, prefere engendrar sua própria história, mesmo sem deixar de considerar com a devida atenção outros referenciais. “Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão, ali nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.”

As raízes e o labirinto da América Latina
Silviano Santiago
Rocco
252 págs.
Silviano Santiago
Nasceu em Formiga, Minas Gerais, em 1936. É romancista, ensaísta, crítico literário, poeta, contista. É graduado em Letras Neolatinas pela UFMG e doutor pela Universidade de Paris, Sorbonne. Publicou Uma literatura nos trópicos, Nas malhas da letra, Vale quanto pesa, Cosmopolitismo do pobre, Em liberdade, Stella Manhattan, Uma história de família, O falso mentiroso, entre outros.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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