O amor nos tempos do Estado Islâmico

No romance "Lar em chamas", a paquistanesa Kamila Shamsie entrelaça política, religião, laços familiares e amor em um suspense crescente
Kamila Shamsie, autora de “Lar em chamas”
01/12/2021

Mais incrível do que um romance conter tantos elementos como honra, lealdade, traição, mentira, democracia, terror, propaganda, política, religião, laços familiares e amor é o fato de estarem entrelaçados, articulados à trama ficcional, à trajetória dos personagens e às relações entre eles.

O objetivo de Kamila Shamsie não era dos menores. A autora afirmou ao New York Times: “Não controlamos nossas vidas; (…) Estamos sobretudo enredados em um mundo mais amplo com uma miríade de forças agindo sobre nós de maneiras maiores e menores”.

Shamsie enreda os leitores com uma história ao mesmo tempo eletrizante, lírica, irônica e trágica. Gira em torno de cinco personagens. Em uma estrutura sutil e inteligente, a autora vai contando a vida de cada um deles em sequência, feito uma corrida de revezamento: cada um recebe o bastão da história e a leva mais adiante, aumentando a intensidade e garantindo um suspense que culmina em um desfecho arrebatador. Literariamente falando, vemos o mundo e os acontecimentos pelo prisma de cinco pessoas bem diferentes, enriquecendo a narrativa. Com um uso afinado do estilo indireto livre, a autora faz com que a voz de cada personagem seja ouvida.

Personagens
Karamat Lone é o político de origem paquistanesa que através do casamento conseguiu alcançar o parlamento britânico. Torna-se ministro do Interior — o maior responsável pela segurança nacional em tempo de atentados terroristas e do apogeu do Estado Islâmico. Desde o início de sua trajetória, Karamat é mais realista do que o rei, implacável com os britânicos de origem muçulmana, atitude que lhe traz popularidade junto ao grande público e o desprezo da comunidade à qual pertencera, que o vê como “duas caras” e traidor. Ele não se importa. Basta dizer que adora o seu apelido na mídia: Lone Wolf, o “Lobo Solitário”. Sua pretensão é tornar-se Primeiro Ministro e está disposto a sacrificar o que for necessário.

Eammon, seu filho, nutre adoração pelo pai, ingênuo que é diante das jogadas políticas. Despreza sua origem paquistanesa: mal sabe algumas palavras em urdu e apoia o pai e sua “defesa dos valores britânicos”. É capaz de atravessar a rua para não passar por uma mesquita. A riqueza da família, proveniente de sua mãe, uma americana-irlandesa, permite que ele não tenha preocupações quanto a uma carreira profissional e possa abandonar tudo para “viver a vida que havia além dos escritórios”. Herda os traços físicos do pai, mas não o seu temperamento inflexível e ambicioso. Embora seja um bon-vivant, que pouco percebe o que está ocorrendo à sua volta, Eammon é íntegro e de bom coração, capaz de se apaixonar, como um Montecchio foi capaz de se apaixonar por uma Capuleto.

Família assombrada
O pai fora um jihadista que lutara no Afeganistão e morrera quando estava sendo enviado para Guantánamo. Somente sua primeira filha conviveu com ele apenas por um breve período, quando ele voltou para engravidar sua mãe de gêmeos antes de desaparecer para sempre. As crianças foram cuidadas pela avó e pela mãe, até que estas duas morrem no mesmo ano. A filha mais velha, Isma, então com vinte e um anos, fica responsável pelos irmãos gêmeos Aneeka e Parvaiz, à época com doze anos. Todos são aconselhados a não mencionar a história do pai, para evitar represálias no bairro e na escola. Nem mesmo o iman da mesquita local apoia a ideia de buscar mais informações sobre a morte do pai, pois já tinha ouvido muitas histórias de abusos cometidos contra as famílias de britânicos que haviam sido presos no Afeganistão.

Isma, a irmã mais velha, é contida e responsável. No momento em que a ação ocorre, no início de 2015, depois de passar sete anos trabalhando numa lavanderia para sustentar os irmãos, ela retoma a sua carreira acadêmica. Torna-se doutoranda em sociologia numa universidade americana, para onde conseguiu embarcar após um interrogatório de horas no aeroporto em que lhe perguntam de tudo um pouco: sobre a rainha, sobre homens-bomba e sites de namoro. Em um café, conhece Eammon, identificando nele os traços do pai. Sem conseguir evitar, sente um profundo desejo por ele, mas a recíproca não é verdadeira. Como ele está voltando para a Inglaterra, se encarrega de levar uma encomenda de Isma para a irmã mais nova, Aneeka. É aí que a trama vai pegar fogo. Mas quem fornece o combustível é o irmão gêmeo dela, Parvaiz.

Segredo revelado
Um segredo bem guardado por boa parte do livro é o que acontece com Parvaiz e que terei que contar para dar sentido a esta resenha. Parvaiz é um sonhador, apaixonado por sons, que grava fazendo coleções de vários tipos. Nele a ausência e o aspecto fantasmal da figura paterna calaram mais fundo: enquanto as irmãs diziam que o pai havia morrido de malária, ele simplesmente ficava em silêncio. Esta brecha é explorada por Farood, um recrutador do Estado Islâmico, que promete a Parvaiz viver em uma terra justa, lutando contra os inimigos do Islã e carrascos do pai.

A habilidade da autora é notável para nos fazer acreditar na rápida metamorfose de um jovem de 19 anos por meio de métodos muito pouco ortodoxos e que incluem até mesmo a tortura. Parvaiz não é religioso e tampouco violento. Mas não tem pai, não tem profissão, não tem esperança… Quando ele vê, está vivendo em um enclave do Estado Islâmico, trabalhando no setor de mídia. Certo dia é chamado pelo seu chefe para uma gravação: tratava-se de documentar uma execução por espada de um infiel, algo que é ensaiado e debatido. Para onde rolaria a cabeça? Qual seria o melhor lugar para colocar os microfones?

Eros em ação
Aneeka é o par complementar do seu irmão gêmeo, Parvaiz. Se nele a transformação é operada por meio do ódio e da camaradagem masculina, nela a grande mudança ocorre pelas mãos de Eros, cujo papel é mesmo este: tirar tudo do lugar. O acaso permite que ela conheça Eammon. Ela se entrega ao rapaz na esperança de utilizá-lo para influenciar o pai a ajudar o irmão dela a escapar do pesadelo do Estado Islâmico. De maneira inesperada, se apaixona por ele e desta vez a recíproca é verdadeira. Mesmo assim ela não desiste do plano e para que funcione é necessário deixar Eammon no escuro quanto ao irmão, bem como manter o relacionamento em segredo.

Tudo parece correr bem. O irmão consegue uma missão que o leva até Istambul, de onde poderia retornar à Inglaterra caso a embaixada britânica o aceitasse, ao invés de enviá-lo, feito o pai, para Guantánamo. E a única pessoa que poderia fazer com que este milagre ocorresse seria o Ministro do Interior.

O que acontece? Não vou estragar o suspense. A Antígona de Sófocles consta na epígrafe e a autora admite que foi a sua inspiração. Os nomes dos personagens são os nomes gregos modificados: Aneeka é Antígona, Karamat é Creonte, Parvaiz é Polinices. Mas a trama é potencializada e enriquecida por também se apoiar na história de um amor impossível e trágico como o de Romeu e Julieta.

Lar em chamas
Kamila Shamsie
Trad.: Lilian Jenkino
Grua
288 págs.
Kamila Shamsie
Nasceu em Karachi, no Paquistão, em 1973, onde passou sua infância. Veio de uma família de intelectuais. Saiu para estudar nos Estados Unidos e atualmente reside em Londres, tendo cidadania paquistanesa-britânica. É autora de seis romances, sendo este o mais recente, pelo qual recebeu o Women’s Prize for fiction em 2018.
Marcos Alvito

Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.

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