Eu é um outro.
Arthur Rimbaud
A experiência de leitura é um processo particular. Para cada leitor, um mergulho único. Por isso, é no singular que, geralmente, se faz a reflexão de uma obra. No entanto, tomarei a liberdade de falar no plural, pois me senti acompanhada desde a capa até a última folha deste livro.
O infarto da alma, livro que carrega a prévia da morte no título, fala sobre o amor. Amor e Morte se entrelaçam nas declarações mais apaixonadas: morreria (ou mataria) por você. Na mesma medida, a dupla Amor e Loucura, sou louco por você, faço loucuras por você, se mostra indissociável. “A paixão pelo outro é uma forma de confinamento. Quando explode a paixão, rompem-se as correntes da responsabilidade. A primeira ruptura é com o compromisso da razão, e então se põe em movimento uma simbologia que convoca à morte, porque o simbolismo fatal que se desencadeia é morrer no outro.” A partir desse trecho extraído do livro, desconfiamos de que não há como escapar da tríade que acomete o ser humano em diferentes níveis: Amor, Loucura e Morte.
No livro, fala-se de um amor em duplo confinamento. Um sentimento que nasce entre os cerca de quinhentos internos do hospital psiquiátrico Philippe Pinel, na cidade de Putaendo, no Chile. Construído nos anos 1940 para receber os tuberculosos, foi transformado em manicômio após a massificação da vacina. Passou a abrigar pacientes de diferentes centros psiquiátricos do país. Lá, sobrevivem pessoas que passaram a se amar, uns aos outros, com a intensidade correspondente ao grau de suas doenças.
Por meio de duas narrativas distintas, a de texto (Diamela Eltit) e a de imagem (Paz Errázuriz), as autoras nos convidam a uma imersão visual e poética nesse lugar tão inóspito à primeira vista. As narrativas são potencializadas pelo projeto gráfico, que reserva, num ritmo definitivo, as páginas pares para o texto e as ímpares — espaço nobre da página dupla — para as fotos. A sequência dos retratos dos casais possuem um fio condutor que nos leva para dentro. Na primeira imagem, um casal-anfitrião, que se encontra numa área externa do hospital, nos recebe para a visita. Os enamorados se abrem para as lentes da fotógrafa em situações íntimas, tanto no espaço (cama, quarto) quanto no corpo (abraços, mãos dadas, olhares, nudez). Há rostos marcados pelo tempo em consonância com o cenário, as paredes descascadas revelam parte da vida de cada um.
As imagens em preto e branco evitam a distração das cores e focam em outras percepções. A entrega genuína dos retratados — que só é possível pelo laço de confiança construído por fotógrafa e fotografado — parece ser a condição deste ensaio. Ora em poses planejadas, ora espontâneas, a expressão corporal diz muito do processo, que revela uma doação, antes de tudo, dos enamorados entre si. Um deitado nas costas do outro, um abraço de corpo colado, o repouso da cabeça no peito do amado. Há entrega, inclusive, quando o corpo ereto diz não, com os dedos entrelaçados, a ponto de sentirmos a pressão das mãos, a mulher posa ao lado do parceiro. No entanto, tem o olhar voltado para a câmera, o ponto de confiança (em si mesma).
Nas palavras de Eltit, “imagens que comprovam, inclusive para eles próprios (os asilados), que estão vivos, que mesmo depois de tudo conservam um pedacinho de ser, embora habitem como doentes crônicos o hospital mais lendário do Chile”. Acrescento a esse pensamento o espelhamento entre os olhos de Deus e as lentes de Paz: “O louco, perdido numa contundente ausência de fronteiras, pode chegar a pensar que até Deus lhe pertence, porque em seu corpo foram depositados alguns átomos divinos. (…) E se Deus é amor — esse Deus que é uno e múltiplo, que é todas as coisas ao mesmo tempo, cujo olho é uma grande lente de aumento —, o amor de Deus irá se encravar no corpo do insano para manter a plenitude e a potência da tática amorosa”, diz Eltit. Talvez essa seja a explicação pela qual os internos se entregaram com tanta confiança aos olhos de Deus.
Leitores-cúmplices
A potência das imagens se revela logo de cara, na capa, onde uma mão em destaque abraça um rosto que sorri. Acima dela estão impressos os dizeres do título e o nome das autoras. Esse destaque parece ser proposital para entrarmos no livro de mãos dadas com as autoras, um convite para um mundo desconhecido e, em certa medida, amedrontador.
Nas páginas iniciais, as narrativas de texto e de imagem possuem intimidades diferentes. A de texto, em forma de diário de viagem, começa tímida, como um visitante reconhecendo o terreno, e termina “capturada pelo manicômio da minha própria mente”, como escreve Eltit. Já a narrativa de imagem é íntima, segura, afetiva, como se já estivesse estado lá. Torna-se, portanto, anfitriã do texto e de nós, leitores.
A forma da escrita é híbrida, abrange diversas vozes narrativas ao subverter os gêneros, no entanto, mantém o tom nos modos de narrar: diário de viagem, versos, trechos ficcionais, testemunhos. Após o relato de viagem, nos deparamos com um texto poético, que nos aproxima dos asilados a cada virar de página. Nesse ponto, as narrativas de texto e de imagem entram num ritmo consonante, o que nos transforma em leitores-cúmplices. Vamos nos fundindo com os loucos, nos reconhecendo neles na busca por amor. Entramos no profundo dos internos e observamos os nossos pontos de intersecção, no contato com nosso próprio manicômio. No amor, somos todos asilados.
O texto é entrecortado por intertítulos e, a cada ocorrência, esperamos uma nova voz narrativa. Até que surge o relato de um sonho, O sonho impossível, de Juana, uma mulher que deixa dúvidas se é realmente louca. Ela chegou ao hospício ainda criança, como acompanhante da internação do pai. Após a morte do genitor, permaneceu vivendo nos manicômios. No entanto, a dúvida se a indigência enlouqueceu pai e filha fica no ar. Esse sonho nos leva para outro nível de intimidade, nova esfera de conexão. Essas diferentes vozes nos confundem (quem está falando agora?) e, ao mesmo tempo, nos fundem (poderia ser eu a narradora?) e nos levam para o mesmo lugar: dentro de nós, reflexivo.
Juana, rebelde, não quer deixar o manicômio. “O que se pode assegurar é que, se agora mesmo as portas do hospital se abrissem para ela e alguém lhe pedisse para sair, Juana não o faria.” Por mais que seja um lugar que exala a morte, é lá, também, que os asilados podem ser o que são, no corpo que abraça, que se desnuda. Esse excesso de liberdade me instiga a fazer um paralelo com Hospício é Deus — Diário I, escrito por Maura Lopes Cançado, que, como Juana, escolheu permanecer lá quando internada:
Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. Ou não choramos, como suprema força — quando o coração se apequena a uma lembrança no mais guardado do ser. Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades — em excesso de liberdade.
Na derradeira imagem da sequência de retratos, vemos um casal ao fundo de um longo corredor, o prenúncio de um adeus. Entre essa despedida e a última foto do livro, em que não há um casal e sim três internos isolados, está o vazio de uma escada. Agora, sozinhos, retornamos para o silêncio da tríade Amor, Loucura e Morte, onde não se vê um ponto final, mas um desconcertante ponto de interrogação, após a frase que se formou em minha cabeça: os loucos somos nós.
AS AUTORAS
Paz Errázuriz
Nasceu em Santiago do Chile, em 1944. Iniciou sua carreira autodidata na fotografia durante os violentos anos 1970, quando se instaurava em seu país a ditadura militar de Pinochet. Representou o Chile na Bienal de Veneza em 2015 e sua obra está nos acervos de instituições como Tate, Reina Sofía, Daros e Mapfre. Entre os mais recentes prêmios estão o Photoespaña e o Prêmio Nacional de Artes Plásticas do Chile.
Diamela Eltit
Nasceu em Santiago do Chile, em 1949. É escritora e professora universitária, com passagens pela Columbia, Berkeley, Stanford e Cambridge. Seus livros traduzidos no Brasil são o romance Jamais o fogo nunca (Relicário, 2017) e os ensaios de A máquina Pinochet (e-galáxia, 2017).