O trabalho de um escritor pode ser comparado, sim, ao de um artesão. Tudo isso porque a excelência do seu talento deve ser empregada frequentemente não apenas para evitar o embotamento do estilo, mal que os articulistas de imprensa ou profissionais de redação esquemática são vítimas corriqueiras, mas, sobretudo, porque é a partir dessa dedicação que os leitores vão conhecer mais sua voz, sem mencionar que o conteúdo do que precisa ser dito será automaticamente depurado. Tal divagação começa a fazer mais sentido ao lermos Alfabetos: ensaios de literatura, do escritor Claudio Magris, no qual o leitor descobre um autor no auge de sua forma, exibindo seu talento no bom combate do texto, desafiando o senso comum e, tal como um esgrimista, a duelar sem jamais baixar a guarda dos bons argumentos, de maneira que o público afeito ao debate inteligente sente-se, de repente, protegido do mal que pode se apresentar de várias formas: da mediocridade à falta de coragem, passando pela melancolia, pelo desengano da felicidade e pelo dissabor provocado pela sensação de desamparo. Claudio Magris não faz de sua obra uma tábua de auto-ajuda, mas convida o leitor à reflexão, em companhia da literatura, com tamanha contundência que fica mesmo difícil não se apegar às idéias como se estas efetivamente fossem exortações à sabedoria e à razão.
É preciso, antes de prosseguir, estabelecer uma diferença entre o livro de Magris e as demais coletâneas de ensaios e resenhas que são publicadas mundo afora, coligindo textos de jornalistas e comentaristas políticos. Muitas vezes, esses artigos saem datados e, nem mesmo assim, funcionam como registro de uma época ou de determinado movimento político-cultural. No caso do escritor nascido em Trieste e especialista em literatura alemã, essa coletânea representa uma jóia tanto no aspecto formal (em se tratando do gênero ensaio), como no tocante ao conteúdo, posto que as análises superam a lógica do imediatismo e são preparadas para um leitor que pretende conhecer mais do que a crônica de costumes do dia, ou a moda de sua época; são textos que resistem porque seu autor configurou suas análises de forma a resistir e contribuir com um olhar mais cuidadoso e elaborado sobre o mundo que o cerca. Nesse quesito, o Claudio Magris articulista de imprensa ou ensaísta, mesmo quando produz uma singela resenha, não se esquiva do talento e da verve do escritor. Tal como um defensor da palavra, ele não desperdiça a oportunidade de dizer o que é necessário da maneira mais precisa e elegante possível. Eis a tônica dominante do livro.
Exemplo disso está naquele que é um dos textos mais contundentes que já foram escritos num momento de crise. O espectro dos atentados terroristas do 11 de setembro ainda pairavam no ar do Ocidente antes de se tornar artifício de estratégia política ou palavra-chave nas mídias sociais quando Magris publicou o ensaio “Da coragem”. Nele, o autor discorre sobre essa virtude, outrora elementar, e hoje tão esquecida não apenas pelos covardes de sempre, mas pelos homens que deveriam liderar, conduzir e conquistar. Magris inicia o texto como um conto, retomando uma espécie de narrativa folclórica que mostra o choque das culturas, mas, já nos parágrafos a seguir, ele ataca o tema de frente, como vemos a seguir:
Uma salutar reação à tola retórica do heroísmo e da vileza fascista induziu, por sua vez, a nossa cultura a desvalorizar, de modo petulante, a coragem, a clássica força de ânimo, a virtude cristã da fortaleza, sem as quais, entretanto, não pode haver liberdade nem na vida pública, nem na privada. Como consequência disso, sentimo-nos como que paralisados, travados pelas angústias, pelos constrangimentos, pelas prepotências dos outros e pelas nossas próprias fobias, pelas tiranias descaradas ou mascaradas da dominação política e social, pela angústia escondida no coração, que inibe a pessoa. Foram os mestres da literatura moderna, como, por exemplo, Conrad ou Faulkner, tão alheios a qualquer tipo de pose musculosa e especialistas na ambiguidade da existência e nos revoltos meandros da psique, que demonstraram a necessidade da coragem para percorrer os labirintos em que o Minotauro está sempre à espreita. A coragem se assemelha ao amor; confere tal liberdade, desprendimento e uma capacidade de se regozijar com a vida, que se parece com o abandono dos amantes — bem ilustrado numa passagem memorável de Isaac Singer — que passam a não temer mais nada, de modo análogo, ao que se refere à intimidade de seus próprios corpos (…)
Claudio Magris remete ao momento quando a coragem era uma virtude cardeal, dessas capazes de transformar o ambiente e o modo de encarar as coisas. No texto, ainda que de forma sub-reptícia, o autor parece perguntar: o que diabos nos aconteceu, quando foi que nos tornamos tão frágeis perante as dificuldades e às incertezas desse mundo? E o seu texto adquire um caráter de exortação espiritual, sendo referendado, amiúde, pelas belas imagens e alusões literárias, o que tão somente reitera sua capacidade de enxergar o mundo através da perspectiva dos clássicos da literatura. De mais a mais, a imagem do Minotauro à espreita não poderia ser mais adequada, e, a propósito, é retomada pelo autor em outro texto. Longe de ser uma repetição descuidada, trata-se de uma analogia poderosa, polissêmica e eficaz na produção de sentido junto ao público. Isto é, podemos mesmo estar distantes dessa figura no nosso cotidiano, ou mesmo jamais nos ter aproximado da mitologia por um dia sequer, mas é certo que a imagem é forte o bastante para mobilizar nosso imaginário a ponto de nos fazer refletir e ponderar.
Da mesma maneira que esboça uma análise sobre a coragem, Magris também comenta o temor e o tremor da melancolia, resgatando as Passagens de Walter Benjamin, que em sua observação filosófica apreendeu “coisas e figuras do mundo, que o curso da história individual e coletiva destrói”. Ou, ao falar de Conrad (“Conrad: nascer é cair no mar”), destaca o quanto a obra desse autor emula um sentimento de pessimismo conservador, sublinhando as entrelinhas desse reacionarismo: “Em qualquer circunstância da vida e do trabalho cotidiano, o indivíduo, para Conrad, é desafiado pelo absurdo e pelo desconhecido”. De Ernesto Sábato, Magris ultrapassa a análise do então mais recente livro daquele autor, indicando as pistas para a interpretação de toda a sua obra, como se fosse possível captar o elemento-chave do texto do escritor argentino. E, com efeito, da maneira como escreve Claudio Magris, essa leitura, que é bastante qualificada, parece simples dada sua facilidade em transmitir com erudição e clareza o que pensa sobre esses autores, quase todos seus amigos íntimos, mesmo aqueles de quem não foi contemporâneo, porque a leitura que Magris empresta às suas obras é de tal forma elaborada que é como se estivesse falando de um amigo íntimo. Na coletânea, o escritor faz um inventário de seus autores favoritos, sem necessariamente obedecer a um método crítico formal ou estético declarado (a não ser o da subjetividade) e, ainda assim, consegue ilustrar de que maneira é viável desfrutar do gosto pessoal de forma elegante e inteligente. Importante: é um autor de idéias próprias, não se valendo da distorção de trechos e fragmentos da prosa de outros escritores para se impor como pensador. Em verdade, sua análise renova, em muitos casos, as convicções que temos como leitores.
Em Alfabetos: ensaios de literatura, o autor de romances cede espaço ao intelectual público, um homem de idéias que não hesita em tratar dos temas contemporâneos a partir do viés da literatura, elevando o nível do debate para a sua audiência e, enfim, mostrando aos seus pares que é, sim, possível escrever em tempos sombrios sem baixar a guarda dos argumentos qualificados ou sem cair na doença infantil do polemismo vazio, um recurso comum em tempos hodiernos. Nesses mais de 70 ensaios, Claudio Magris não foge à luta da mesma maneira como não deixa cair a preocupação formal e estética com o que escreve.