For perverse unreason has its own logical processes.
Joseph Conrad
You hide, they seek.
Thomas Pynchon
Ele sabe como entrar em nossos medos mais íntimos, em nossos temores mais secretos. Legítimo sucessor de Herman Melville — de fato, é o único que pode escrever o Grande Romance Americano que Norman Mailer, Tom Wolfe e Don DeLillo desejavam realizar, se é que ele já não escreveu —, Thomas Ruggles Pynchon Jr. é o criador de um mundo muito particular: o de uma América que se reflete nas sombras da Terra, mais precisamente na ordem e desordem da História. Mas esta ordem (que vive nas bordas da desordem) precisa de pessoas para se manifestar, e é justamente esta a ferida que Pynchon toca em seus livros, com uma agudeza rara: onde estão as pessoas quando tudo está dominado pela entropia? Elas parecem mover-se no vácuo, em um vazio existencial em que ninguém possui uma vontade própria, exceto a vontade deles. E quem são eles? Ninguém sabe porque ninguém diz e também porque ninguém quer dizer — senão, morrem.
Podemos ler os seus romances — todos grandes, monumentais, difíceis, exigentes, mas extremamente recompensadores após o final da leitura — como estratégias para embaralhar seus personagens como se fossem alucinações. E talvez eles sejam alucinações, uma vez que a condição humana é descrita em sua obra como um constante enigma. Pynchon busca um retorno a um mundo mais puro, onde, como no poema de Manuel Bandeira, possa deitar-se com a mulher que deseja e ser amigo do rei. Mas eis que a paranóia volta a atacar, porque sua lógica bizarra é tudo o que importa em um mundo que se preocupa em ser observado somente pela perspectiva da “fileira da desolação”.
O mundo segundo Thomas Pynchon vive à beira do caos, mas uma solução é possível por outros meios — desde que eles estejam ligados à literatura e desde que o papel do escritor como um sacerdote da Palavra seja preservado. Nascido em 8 de maio de 1937, Pynchon tem uma carreira insólita na literatura americana: estudou na Cornell University (dizem que foi aluno de Vladimir Nabokov), passou uns tempos na Marinha, estudou física atômica, viajou a Califórnia inteira de carro, estudou minuciosamente os beats e o cool jazz, e, last but not least, lançou, em 1963, após ter escrito cinco contos notáveis publicados em revistas literárias (reunidos depois em um volume intitulado Slow learner, de 1984), o seu primeiro romance, V., um quebra-cabeças estranho, que ultrapassava o tempo e o espaço, ganhador do prêmio William Faulkner Foundation.
A novidade nesta revelação literária era o fato de que Pynchon não dava entrevistas, não aparecia em fotografias (a única foto disponível era a do autor aos 18 anos) e sequer dava uma pista a mais sobre a estranheza que provocava o romance. Parecia uma jogada publicitária e, se era, foi muito bem-feita: desde a sua estréia, Pynchon é um membro-chave daquela sociedade secreta chamada “partido do silêncio”, da qual fazem parte J. D. Salinger, Glenn Gould, Stanley Kubrick e os brasileiros Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e Raduan Nassar — artistas que sempre acreditaram que sua obra deveria falar por si mesma, sem os procedimentos de uma publicidade excessiva. Entretanto, o que diferencia Pynchon dos demais é que ele já estava neste partido há muito tempo e o seu sucesso deve-se justamente ao seu mistério, à lacuna que existe entre o homem que criou um código para ser decifrado pelos leitores e o que está por trás das palavras deste mesmo código.
Pynchon não precisa aparecer no programa de Oprah Winfrey para que ela indique seus livros aos americanos; sequer se importa se o New York Times fez uma boa ou má crítica de seu último lançamento; não dá a mínima para as piadas de David Letterman e Jon Stewart (mas admira Os Simpsons a ponto de fazer uma ponta, com a cabeça coberta por um saco de papel). Seu silêncio guarda certa pureza que se revela na forma como a literatura é tratada: como um ritual em que a Palavra (e Pynchon sempre a escreve em letra maiúscula, indicando seu caráter simbólico) é a salvação de um mundo no qual o sentido da vida está perdido e foi substituído pelo triunfo da paranóia. A obra de Pynchon é paranóica ao extremo, mas não é, em hipótese nenhuma, um elogio a ela; ele sabe que há algo de errado em quem vive nesta constante paródia do sentido da vida e sabe também que é um mal que ataca a consciência das pessoas, deformando sua visão da realidade e disseminando a desordem (chamada carinhosamente de “entropia”) na história do mundo. A História aqui, claro, é aquela com “H” maiúsculo, aquela na qual nos sentimos como reféns em seus braços quando não sabemos o que está acontecendo ao nos depararmos com vários fatos inusitados. Porque, como o leitor deve saber ao ler um romance de Thomas Pynchon, a História é instável, misteriosa, assim como nossa existência aqui na Terra; o problema é quando eles tentam transformá-la em um sentido pleno, acabado, fechado, como um sistema inviolável. Mas — e aqui começa o nó górdio — quem são eles?
Em V., eles podem ser qualquer coisa — e aí está o perigo: podem ser uma mulher misteriosa chamada Veronica; uma freira cibernética isolada na Ilha de Malta; os padrões de uma parábola captada por uma freqüência de som criada por um cientista alemão; a letra que Herbert Stencil procura pela Europa e pelos Estados Unidos; o movimento de Benny Profane, o homem que fez do ioiô não só um mero objeto, mas um estilo de vida. V. expande-se no tempo e no espaço e cobre uma série de figuras peculiares, como a “turma muito chapada”, um bando de lunáticos que escutam cool jazz, usam várias drogas e imaginam três mil conspirações por minuto. Pouco a pouco, e graças à magia do texto, o leitor também vai sendo incorporado à paranóia que o livro apresenta não como sugestão, mas como verdadeira visão de mundo. O leitor começa a ver a letra “V” em qualquer lugar e percebe que, de fato, pode haver uma ordem bizarra neste mundo mais bizarro ainda. Contudo, o mais estimulante no estilo de Pynchon é que ele estimula no leitor uma paranóia ao cubo, uma vez que provoca uma procura pela ordem atrás da Ordem.
Fica claro assim o motivo de Pynchon sempre basear seus romances em uma procura infatigável, uma busca que, na verdade, nos remete aos romances de cavalaria e às peregrinações religiosas. Porque se trata de uma peregrinação espiritual em que a paranóia é um elemento ambíguo que pode libertar o homem e também aprisioná-lo. Pynchon investiga a razão de seu país, a América, ter se transformado no sucessor do Império Romano, e talvez o crítico Harold Bloom tenha razão ao identificar no texto pynchoniano uma espécie de código secreto em que o escritor faz de tudo para fugir das amarras do Estado. O Estado, em seus livros, é uma alucinação dentro de uma alucinação, repleto de cineastas sodomitas, cientistas atrapalhados, planos mirabolantes, soldados bêbados e putas venenosas. É este Estado Global que infecta os poros de uma Europa pós-guerra em O arco-íris da gravidade, e Pynchon, um americano nascido em Long Island, quer saber por que isto levou todos para um abismo do qual atualmente sentimos as conseqüências.
Neste sentido, há algo de profético na obra de Thomas Pynchon — e suas profecias cumpriram-se fielmente nos anos que se seguiram. A principal delas, é claro, está relacionada à infiltração da paranóia em nosso imaginário coletivo, especialmente o literário. É só observar os efeitos de sua literatura em outros escritores americanos: Don DeLillo, com sua paranóia da História em Submundo; Paul Auster, com sua paranóia do acaso em Leviatã; David Foster Wallace, com sua paranóia do abandono em Infinite Jest; William Gass, com sua paranóia da linguagem em The tunnel. A paranóia é a marca registrada da literatura norte-americana, e um dos motivos de sua vitória é a força da obra de Pynchon. Mas ele vai além de seus sucessores: em primeiro lugar, Pynchon sabe exatamente o que é a paranóia e sabe que ela não é uma mera brincadeira; em segundo, não limita o seu escopo apenas aos Estados Unidos — ele o expande ao mundo todo porque, de certa forma, a história da América nos últimos cinqüenta anos é a história do mundo e vice-versa.
O que lhe interessa, no entanto, não é somente a América como o reino da paranóia. Seu interesse está em como ela pode tornar-se um vácuo, um nada que se alimenta do nada e ainda assim impõe sua força sobre a vontade das pessoas. A verdadeira pergunta que ele fez é: será que a Ordem por trás da Ordem não é apenas o Nada, ou o Nada disfarçado de Tudo? Aqui se encontra a indagação de Thomas Pynchon, uma indagação que, por exemplo, persegue Platão em seu diálogo O sofista, Aristóteles na Metafísica e todo o debate teológico do Cristianismo. Entretanto, não há o perigo de cair em um niilismo de adolescente; ele sabe exatamente a seriedade da sua procura e, por isso, a literatura se transforma numa espécie de prece, uma das únicas formas de salvação em um mundo jogado nas trevas; e mostra a conquista da paranóia não como um evento a ser comemorado, e sim como a elegia de uma era que acabou. Não é à toa que a grande inspiração de O arco-íris da gravidade é o poema de Rainer Maria Rilke Elegias de Duíno, que trata justamente da morte de um mundo que não existe mais, de um mundo que, apesar do seu auge material, está morto no Espírito.
Pynchon não deixa claro se este mundo é ou não é a América. Mas deixa evidente, durante todo O arco-íris, que o grito que abre o romance (“A screaming comes across the sky. It has happened before, but there is nothing to compare it to now.”) continuará por um bom tempo. Por quê? Porque este grito influenciará o modo como o ser humano compreenderá o mundo onde vive, especialmente na maneira como a sua consciência captará a Ordem por trás da Ordem, a Ordem que rege a História. O grito que atravessa o céu da Europa rasga a pureza da Palavra e a estrutura do Texto; e não é também uma coincidência a preocupação de Pynchon com as filigranas do Texto, tratando-o como um elemento vivo, com seus recuos e avanços, como um organismo que, dominado pela entropia (um conceito roubado de Henry Adams e que este define exatamente como uma desordem planejada, se isso é possível), prepara-se para explodir a qualquer minuto, revelando também os fragmentos de uma Criação que só pode ser recuperada em sua completa verdade através de um ato salvador. E o que seria este ato salvador?
Para chegarmos a uma resposta razoável, temos de cercar o verdadeiro significado da paranóia na obra de Pynchon e quais são as reais conseqüências[1]. O filósofo Eric Voegelin, leitor dos romances de Thomas Pynchon, dá uma explicação detalhada do que seria esta “perigosa deformação na percepção do mundo” chamada paranóia (e já pedimos desculpas ao leitor pelo seguinte trecho, sem dúvida longo, mas essencial para a compreensão adequada dos conceitos apresentados):
A alienação e a paranóia não são apenas problemas individuais, mas eles dominam a cena contemporânea na forma de várias ideologias, que sempre tentam perseguir alguém, ou sentem-se perseguidas por alguém, ou ambos os casos. E foi nesta ocasião que eu me deparei com o problema da paranóia no sentido teorético, o que não havia ficado claro para mim antes, porque a paranóia é geralmente tratada pelos psicopatologistas. Mas isto não é um problema, uma vez que se você tem várias pessoas em um estado paranóico (em termos práticos), isto é mais do que o caso de um paciente com uma psicopatologia. Há alguma estrutura fundamental da consciência envolvida nesta situação.
E a estrutura fundamental envolvida — eu fui guiado por Thomas Pynchon nisso — está associada ao problema geral das ideologias como concepções de ordem na história, nas quais você deve inserir uma determinada natureza. Agora, de onde vêm estas idéias como uma ordem da história — com um rumo determinado, indo para um fim preciso —, senão de certos contextos filosóficos e cristãos, em que um criador que faz um mundo e está a par do que este mundo está fazendo? Ele tem Providência, ele tem a pronóia. (Geralmente eu lido este problema chamado-o de pronóia, logo o seu contrário é a paranóia). E se você tem a concepção da pronóia e esta concepção é pervertida no sentido em que é imaginada como um conhecimento humano das coisas, e não como um conhecimento divino (como foi analisado por Boécio no último livro de As consolações da filosofia), você tem a alienação de um estado imanente. Você ainda acredita na pronóia, na providência, apenas para admitir que a providência é suprida pelos seres humanos; e, se for necessário, para defender-se contra a pronóia dos seres humanos, você tem de criar um contra-ataque, e criar a sua própria pronóia em oposição à das pessoas que estão, aparentemente, te perseguindo.
Então eu diria que há uma íntima conexão entre as experiências da providência pervertida e as concepções de ser perseguido por alguém, seja lá quem for: os burgueses para um Marxista; os comunistas para um burguês; ou a CIA ou as companhias de petróleo para um esquerdista; e por aí vai — todas essas concepções de perseguição são perversões do conceito de pronóia, produzindo então uma reação paranóica. E estas reações paranóicas são, em O arco-íris da gravidade, de Pynchon, narradas de forma detalhada. Pode-se dizer que não se deixou nada de fora em suas descrições.
E é um insight. Não é apenas uma interpretação de um romance de Pynchon, mas ele sabe disso: ele fala daquelas pessoas que estão num estado de paranóia como se fossem “vítimas de um vácuo” — sendo este vácuo o vazio espiritual e intelectual, a perda de tensão em direção ao Além. E esta perda de tensão nos leva ao seguinte problema: como ninguém pode viver em um vácuo, ele deve ser preenchido com alguma espécie de realidade; e se não é a verdadeira realidade, você tem as segundas realidades. O termo “Segunda Realidade” não é uma invenção minha, mas foi desenvolvido pelos grandes romancistas do século 20 como Heimito von Doderer em seu Os demônios e Robert Musil em O homem sem qualidades. Assim, a Segunda Realidade é a realidade substituída pela qual você imagina se a verdadeira realidade está em um estado de alienação. Agora, o que está por trás de todo este estado de alienação? O que está por trás, é claro, é um ser extirpado de um contexto em que a vida tem um sentido.
A criação de uma Segunda Realidade está também ligada à libido dominandi — uma das características fundamentais do estado de paranóia. A vontade de Poder é um dos temas freqüentes da obra de Pynchon, tratado com o grotesco que lhe é peculiar — e que será desenvolvido ao extremo em romances mais recentes, como o irregular Vineland (1990), os monumentais Mason & Dixon (1997) e Contra o dia (2006), e o divertido Vício inerente (2009). Nela, todos estão presos, exterior ou interiormente. O clima de paranóia expande-se em proporções inimagináveis, especialmente em tempos de “globalização” — na verdade uma variação do símbolo “ecumênico” (oikoumene), em que a vontade de Poder é acompanhada por uma força expansionista de preencher os vácuos de ordem que existem em territórios incessíveis, como se fosse um ato para substituir a vontade divina somente pela vontade dos homens. Em um mundo “globalizado” — isto é, “globalizado” pelas ideologias que cegam a percepção da realidade, afrouxando a tensão na abertura da alma — a paranóia é um modo de ver as coisas por um aspecto inusitado, por assim dizer. Mas não temos o triunfo da paranóia; temos, sim, sua extinção, porque ela se torna algo ordinário.
É justamente a literatura de Thomas Pynchon que recuperará o verdadeiro sentido da paranóia, não como um pastiche da vida, mas como uma nova percepção do mundo. Uma percepção perigosa — em que a Palavra fica sempre à beira do abismo, e é nesta tensão que o Texto começa a mostrar sua textura, sua consistência, para comprovar que quem está na tensão é o seu criador, ninguém menos que o próprio escritor, que, como um sacerdote, tem o papel de salvar o ser humano deste vácuo, deste vazio espiritual que domina os nossos tempos:
Uma vez que os meios de controle técnico atingem uma certa dimensão, um certo grau de interligação, as possibilidades de liberdade desaparecem de uma vez por todas. A Palavra perde o significado. É com sólidos argumentos que o padre Rapier defende sua posição, e não sem seus momentos de grande eloqüência, momentos em que ele próprio fica emocionado… nem é preciso estar presente, aqui no escritório, pois os visitantes podem acompanhar pelo rádio de qualquer ponto da Convenção suas falações passionais, que muitas vezes ocorrem no meio de uma celebração do que os gozadores mais por dentro das coisas já estão chamando de “Missa Crítica” (pegou o trocadilho? Muita gente não pegava em 1945, a Bomba Cósmica ainda palpitava de ternura, ainda não fora revelada ao Povo, de modo que só se ouvia a expressão “massa crítica” em papos entre pessoas altamente por dentro). ‘Creio que existe uma terrível possibilidade agora, no Mundo. Não podemos varrê-la por baixo do tapete, temos de encará-la de frente. É possível que Eles não morram. Que agora esteja dentro das possibilidades d’Eles continuar para todo o sempre — embora nós, naturalmente, continuemos morrendo como sempre. A Morte é a fonte de poder d’Eles. Não foi difícil para nós perceber isso. Se viemos ao mundo uma vez, uma vez apenas, então claro está que viemos ao mundo para pegar o que pudermos pegar. Se Eles pegaram muito mais, e não só da Terra mas também de nós — bem, então não há por que se ressentir d’Eles, já que Eles estão fadados a morrer como nós, não é? Todos no mesmo barco, todos sob a mesma sombra… sim… sim. Mas isso é mesmo verdade? Ou será apenas a melhor, e a mais cuidadosamente divulgada, de todas as mentiras d’Eles, conhecidas e desconhecidas? (O arco-íris da gravidade).
Este é um dos inúmeros exemplos do que este estilo pode fazer para que fiquemos imersos neste mundo paranóico, onde a incerteza da existência contamina até mesmo a especulação teológica de um padre. Ninguém está a salvo. Mas Pynchon, em seus romances, sabe que a recuperação do significado da Palavra também leva a outro problema: a consciência de nossa mortalidade. De uma forma aguda, ele percebe que o triunfo da paranóia está ligado à fuga da morte, à inexorabilidade das coisas que passam e não voltam mais. Aqui, não temos mais o escritor como um mero receptáculo de um lixo estético em que se deve encontrar alguma beleza; a Palavra exige mais sacrifício do que simples estilo; ela exige uma atitude ética, uma coerência de unidade para que o escritor possa realmente compreender o que está acontecendo no mundo e não seja infectado pela deformação da consciência.
O que motiva um ser humano a escolher uma vida paranóica não é a procura pela verdade, e sim a vontade patológica de refugiar-se na mentira. A verdade está naquilo que não pode ser explicado — e o triunfo da paranóia está na suposição de que tudo pode ser paranóico. Mas o que predomina mesmo é o mistério da realidade e o fato de que só é possível suportar este mistério através da incerteza da fé. E a fé só pode ser exprimida em sua plenitude quando a Palavra recuperar o seu significado — e aí entra o escritor, que, com sua autoridade moral, deve tomá-la para que o ser humano não fique mais perdido nos truques da ideologia.
Todavia, isto também implica a seguinte questão: Como fazê-lo? Como praticar este ato de salvação de um mundo que, nas vias da dúvida, já está condenado? A posição peculiar do escritor é a de nunca ficar entre a crença crua e o ceticismo exacerbado. Seu dilema é encontrar-se na tensão entre o campo divino e o campo imanente e revelar quais são os símbolos que sua alma registrou ao se abrir para o Além, independentemente de ter ou não uma crença religiosa. E nesta tensão existe o paradoxo da paranóia, que pode tanto afiar a mente como jogá-la no mais escuro dos abismos. Será que o escritor é, neste mundo corrompido, mais um encurralado, um sujeito que não tem como sair de uma enrascada que seus contemporâneos, obcecados pela ideologia, criaram para si próprios? Talvez Pynchon possa nos dar uma saída com o romance que escreveu entre V. e O arco-íris da gravidade, o curto mas fundamental O leilão do lote 49. Neste livro, encontramos Édipa Maas, uma mulher encarregada de fazer o inventário de seu falecido ex-amante, Pierce Inverarity, um milionário que, segundo as investigações que Maas faz durante a sua estadia na Califórnia, se envolveu em uma conspiração que inclui a família de nobres Thurn und Taxis, as agências de correio dos EUA na época da Guerra da Secessão, uma peça sanguinolenta do período elizabeteano e uma entidade misteriosa chamada Tristero que, sob o sinal de uma trompa, parece coordenar não só cada movimento de Édipa Maas, como também de qualquer habitante da América.
O leilão do lote 49 é especialmente interessante para os que querem se aprofundar na obra de Pynchon porque são nas suas páginas que encontraremos as dicas que ele dá para uma possível atitude ética do escritor em nossos dias. Se ler com atenção o trecho a seguir e substituir “Édipa Maas” por “escritor”, o leitor saberá o que se está tentando argumentar neste texto. É bom lembrar que, no trecho citado, Édipa encontra-se no meio de um delirium tremens de paranóia que culmina na epifania que Pynchon articula em palavras precisas. São questões atrás de questões que chegam a uma resposta perturbadora:
Talvez um dia ela fosse forçada a juntar-se ao próprio Tristero, se é que ele existia, em sua penumbra, seu alheamento, sua espera. Sobretudo a espera: se não por outro leque de possibilidades capazes de substituir as que haviam condicionado o país a aceitar uma San Narciso em sua mais tenra carne sem um gesto de defesa ou um grito, então ao menos, em último caso, a espera que a simetria de opções caísse por terra, saísse do prumo. Ela sempre tinha ouvido dizer que a exclusão das camadas intermediárias dava em merda, tinha de ser evitada a todo custo. E como teria isso finalmente acontecido ali, onde as chances de diversidade haviam sido tão grandes no passado? Porque, agora, era caminhar entre as matizes de um enorme computador digital, os zeros e os uns entrelaçados acima da cabeça, suspensos como esculturas móveis que se equilibrassem à esquerda e à direita, multiplicando-se à frente numa sucessão talvez infinita. Por trás das ruas hieroglíficas devia haver um significado transcendente, ou apenas a terra. Nas canções de Miles, Dean, Serge e Leonard devia haver uma fração da beleza espiritual da verdade (como Mucho agora acreditava), ou apenas um espectro de poder. O fato de que Tremaine, o mercador de suásticas, houvesse escapado do holocausto era uma injustiça, ou a falta de vento; os ossos dos soldados no fundo do lago Inverarity lá estavam por alguma razão importante para o mundo, ou apenas para benefício dos mergulhadores e dos fumantes. Os dígitos um e zero. Assim se acomodavam aos pares. No Refúgio do Entardecer, chegava-se a um acerto minimamente digno com o Anjo da Morte, ou havia simplesmente a morte e a tediosa preparação cotidiana para sua chegada. Outra forma de significado por trás do óbvio, ou nenhum significado. Édipa no êxtase orbital de uma verdadeira paranóia, ou um Tristero de verdade. Porque, ou havia algum Tristero por trás daquela aparente herança que eram os Estados Unidos da América, ou só havia o mero país: e, se só havia o país, então o único modo pelo qual Édipa poderia prosseguir e nele ter alguma relevância era como uma estranha, fora dos trilhos, imersa por inteiro na paranóia.
Pynchon deixa tudo muito claro neste trecho sobre sua própria condição: o escritor é um estranho em sua própria terra, um exilado que, para compreender exatamente o que se passa ao seu redor, deve distanciar-se das coisas mundanas, das mesquinharias que o levam a uma paranóia de araque — a deformação da pronóia, da providência divina sendo pervertida em providência humana. A melhor estratégia para não se anular, neste caso, é apenas uma: o silêncio. É o silêncio que preservará o escritor da corrupção da Palavra, recuperando o seu sentido original como quer a abertura do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. É o silêncio que levará ao escritor uma fagulha da Ordem por trás da Ordem — ainda que este fique em permanente dúvida sobre quais são as intenções desta Ordem e aí esteja o alimento de sua literatura. É o silêncio que fará o escritor ficar acima de todos os planos sujos de pseudo-paranóicos que, por tentarem ser paranóicos, colocam-se em situações verdadeiramente cretinas. E, por fim, é o silêncio que permite ao escritor dedicar-se à sua obra não como uma coisa passageira, mas como algo que pode perdurar neste mundo de finitude, mesmo com o Anjo da Morte soprando o seu bafo.
Porque é também no silêncio que se encontra a esperança — e a esperança está acima de qualquer paranóia. Eis a atitude ética que Thomas Pynchon toma entre a sua vida envolta em sombras e a sua obra iluminadora, ao decidir não dar declarações auto-explicativas, entrevistas auto-indulgentes, fotos auto-apreciadoras ou textos que servem somente para conquistar um pouco de auto-afirmação. São seus livros que devem falar pelo que são — como símbolos de uma alma que se abre para o divino, mas não se esquece do que acontece aqui na Terra. Tal literatura, apesar de seu mistério, não é feita numa torre de marfim, muito menos para alguém que vive numa torre de marfim. Aliás, nenhuma literatura que se preza é feita e lida em torres de marfim, uma vez que o escritor deve captar as contradições da realidade, mesmo que elas sejam decifradas pelos leitores muitos anos depois. Para muitos, a realidade, com suas mil e uma cabeças, é impiedosa demais — e esta crueldade está em cada página da obra de Thomas Pynchon, este agente secreto que contrabandeia a recuperação da literatura para o mundo contemporâneo, como um dos meios para restaurar a fé e a esperança em nós mesmos.
[1] Já havia esboçado essas mesmas idéias em relação à obra de Pynchon no texto O triunfo da paranóia, mas agora lhes dou a forma final.