Novos mundos, nova realidade

Dostoiévski, Nabokov e Orwell são autores que, preocupados em pensar o papel da ficção, oferecem reflexões valiosas sobre a criação de mundos literários
Ilustração: Raquel Matsushita
01/04/2022

O escritor traz em si uma vontade de potência que se traduz em emaranhados de letras, palavras, frases e páginas. Qual o mundo criado e lido nos livros, a expressar o demiurgo presente em cada escritor que busca devolver a imagem da realidade a uma ordem primeira, ou refazer de maneira incessante essa imagem, a partir da literatura? De perspectivas sempre diferentes, no reflexo de mundos próprios em suas ilhas de consciência, os escritores descrevem universos paralelos, que se valem de cenários e molduras extraídos do real, para tecer conexões válidas para qualquer lugar e época. Mesmo que o mundo que o leitor vê, muitos anos depois da morte do autor, não seja aquele delineado pela escrita, traços da essência da vontade criativa primordial permanecem, permitindo inusitados encontros, descobertas e semelhanças que vêm à tona graças ao poder da literatura.

Pode ser numa folhetinesca missão descritiva, na combinação unindo a vida miúda de uma cidade à sua personalidade coletiva, com abordagens que podem soar datadas, porém resgatam a essência de modos de viver e de conviver que atravessam a história e não surgem à leitura distante como estranhas. As referências de relatos antigos, aliás, podem até conferir maior realismo ao que se compartilha de realidades longínquas no tempo e no espaço, abrindo portais de informação segura para o leitor achar, no conforto de nomes e episódios verdadeiros, a visão convergente entre o que lê, o que imagina e o que se toma por base de uma compreensão imune à passagem do tempo.

Ou pode ser na minuciosa atenção ao que se escreve e ao que a literatura produz, na infinda tarefa de comentar, apontar e criticar a função das palavras no mundo. Nessas idas e vindas, a matéria documental é indispensável para a transcendência do que nasce no papel — ou nascia, e agora desponta, espectralmente, nas telas onipresentes da contemporânea leitura. A origem e a forma tomada pelas palavras apresentam relação intrínseca com quem as escreve, com a literatura colada ao ambiente ao redor do escritor e aos condicionantes de sua personalidade. Investigar, elucidar e até denunciar esses elos é outro ramo de escrita, que revela o obsessivo desejo de interpretação e transformação dos mundos oferecidos aos leitores.

Para buscar a direção do roteiro no percurso entre a disposição literária e o mundo formado pelas palavras, recorre-se aqui à leitura de três obras: Lições de literatura, de Vladimir Nabokov, Crônicas de Petersburgo, de Fiódor Dostoiévski, e A literatura, os escritores e o Leviatã, de George Orwell. Autores que deixaram vozes potentes, que ecoam em livros e ideias, demonstrando a importância da arte literária na pintura e no reconhecimento daquilo tomado por realidade.

Importante resgate
As aulas reunidas de Nabokov sobre Marcel Proust, Franz Kafka, James Joyce, Charles Dickens, Robert Louis Stevenson e Gustave Flaubert trazem de partida a questão de não terem sido preparadas para um livro. “A maioria desses textos não representa de maneira alguma o que teriam sido a linguagem e a sintaxe de Nabokov caso os tivesse escrito para compor um livro”, avisa o editor Fredson Bowers, responsável pela organização das notas de aula em um volume. O que seria esquecido ou reservado a virar peça de museu se torna um valioso conjunto no legado da observação do autor de Lolita e Fogo pálido, nascido em 1899, em São Petersburgo — mesma cidade focada por Dostoiévski em seu trabalho folhetinesco, antes do nascimento de Nabokov.

Toda palavra gravada no papel pode ser vista como uma fotografia, imagem momentânea de expressão de um ser no mundo para outro ser no mundo. Neste sentido, a escrita responde à angústia primordial de aprisionamento impossível de algo para a consciência, mergulhada na correnteza do devir na água da efemeridade. Entre o instante e a duração, como indicou o filósofo francês Gaston Bachelard, a primazia do instante é insuperável, ao menos no ponto em que a duração não desfaz o caminho percorrido pela inexorável sucessão de instantes em fuga.

Ao examinar Marcel Proust, Nabokov resume: “Graças a um buquê de sentidos no presente e à visão de um evento ou sensação do passado, os sentidos e a memória se unem, e o tempo perdido é recuperado”. O escritor russo creditava à engenhosidade imaginativa proporcionada pelas palavras, encontrada em “detalhes e combinações de detalhes”, a existência de uma “centelha sensual sem a qual um livro é uma coisa morta”.

Para apreciar a obra de Tolstói, o leitor deve ser capaz de visualizar o interior de um trem noturno da época em que se passa a história, assim como a fachada da casa do Dr. Jekyll descrita por Robert Louis Stevenson. A reconstrução de qualquer enredo, lugar e personagem obedece, talvez, ao mesmo tipo de mecanismo imortalizado por Proust no magistral Em busca do tempo perdido, com ou sem a participação da palavra escrita no processo. A literatura pode induzir e catalisar o resgate, ou ainda deixá-lo mais próximo do leitor, seguindo a trilha das linhas como um caminho de pedras.

Figura do leitor
Nas Crônicas de Petersburgo, Dostoiévski afirma que “a vida humana é uma contemplação incessante de si mesmo na natureza e na realidade de cada dia”. Esse ato contínuo do contemplar-se pode não ser prazeroso, especialmente para o tipo comum da experiência literária, o sonhador:

Quase sempre a realidade produz uma impressão dolorosa e hostil no coração do sonhador, e ele corre a se esconder em seu cantinho secreto, dourado, que na realidade não tem asseio, é empoeirado, desarrumado e sujo.

Aqui, a imaginação é um porão que serve de bunker de proteção às sensações desagradáveis ao ser no mundo. Tal necessidade de descolamento do real é outra dimensão do que pode ser visto como eterna tentativa de busca de algo perdido, num eterno retorno que também pode ser suscitado por uma jornada literária.

Se o deleite do leitor está relacionado à visualização da cena presente em uma narrativa, o que o autor vê primeiro, escrevendo, estaria mais próximo da realidade, e a conexão da leitura aconteceria no encontro entre esses dois momentos, de criação e apreensão? Por mais que seja sedutora essa ideia, como tantas, sua factibilidade é improvável. Como o autor é um lugar em que o tempo escreve, como disse José Saramago, o leitor igualmente o é, fazendo dessa conjunção ideal, no mínimo, improvável. O que o leitor contempla na obra talvez seja um algo perdido que não tem nada a ver com a sensação do autor no instante da escrita. E mesmo assim, há um encontro, permitido pela ponte literária.

Quando se pensa no que está sendo escrito, na criação da paisagem literária, a figura do leitor aparece numa espécie de penumbra, à espreita do resultado. “Um escritor escrupuloso, a cada frase que escreve faz pelo menos quatro perguntas a si mesmo: o que estou tentando dizer? Que palavras podem expressar isso? Que imagem ou expressão tornará isso mais claro? Essa imagem é nova o suficiente para causar algum efeito?”, provoca George Orwell, para em seguida dobrar a provocação: “Você pode simplesmente deixar que frases feitas se aglomerem na sua cabeça. Elas construirão o seu texto — de certo modo, até pensarão por você — e, se necessário, farão o importante serviço de parcialmente ocultar o sentido até de você mesmo”.

A análise do autor de 1984 é em cima da relação entre a política e a degradação da língua, pontuando que a falta de originalidade e a repetição de expressões representam uma espécie de pobreza de pensamento que interessa à dominação política. Se autor e leitor ocuparem o mesmo lugar no tempo, a limitação do pensamento refletida na escrita só será quebrada quando se redescobrir algo perdido, nos modos de escrever e de ler, que traduzem melhor uma realidade mal contada.

Elo entre dois planos
Jornalista mergulhado nas profundezas das notícias para extrair a fonte da realidade, George Orwell se consagrou na trajetória literária como demiurgo distópico, além dos relatos dos ensaios de não ficção. “É curioso que Orwell, cujo temperamento e estilo o inclinavam para um realismo áspero e quase documental, tenha se tornado célebre por uma distopia semifuturista e por uma alegoria com animais falantes”, anotou Braulio Tavares no prefácio de A literatura, os escritores e o Leviatã.

E continua: “Parece existir uma tensão permanente, nos seus escritos, entre a imaginação que quer levantar voo e a ansiedade documental que o força a relatar, a descrever, a registrar o que viu e viveu”. Será que o autor de A revolução dos bichos enxergava a distância a separar os dois planos ligados pelas palavras de um texto — o mundo externo e a internalização do mundo que podem ser vistos como extremos da realidade?

A tensão sugerida por Braulio Tavares pode ser associada, talvez, a todo instante em que a mão abriga um lápis ou caneta, ou os dedos estão suspensos sobre o teclado ou uma tela sensível ao toque. Escrever é percorrer esse túnel entre dimensões paralelas que a existência consciente coabita, no qual o mundo apenas existe em função do sujeito que se percebe nele. Na conjectura de uma filosofia da escrita, o pensamento revestido pelas palavras encadeadas em sequência quer fazer uma travessia muito maior do que a que, de fato, efetua, quando chega a ser lido — e por mais vezes que seja lido. Daí a tensão num espírito inquieto como o de Orwell, saltando de um lado para o outro, da ansiedade documental ao voo das imagens em ação.

Ao retratar em palavras o cotidiano de Petersburgo do século 19, Dostoiévski viu a confusão crescente na tradução do mundo pelo pensamento. “O pensamento contemporâneo não chegará muito longe se não se voltar ao passado”, escreveu em uma das crônicas. E explicou:

Está surgindo uma espécie de confissão universal. As pessoas falam de si mesmas, escrevem sobre si mesmas e analisam a si mesmas perante o mundo, muitas vezes com dor e sofrimento. Milhares de novos pontos de vista se abrem a essas pessoas que jamais sequer suspeitaram possuir seu próprio ponto de vista sobre alguma coisa.

A antena do artista captou com grande margem antecedência a exacerbação dos discursos de si presentes, hoje, na cultura digital. O indivíduo que se narra, de certa forma, narra o mundo, mas trazer o ego para o centro do universo, ao invés de abrir, reduz os pontos de vista.

Na outra ponta do raciocínio, os relatos da vida rotineira que se inscrevem no mundo igualmente escrevem o mundo, como corrobora Dostoiéviski ao afirmar que “sobre um único encontro na avenida Niévski é possível escrever um livro inteiro”. As narrativas factuais, das experiências diárias, promovem diálogos de percepções equilibradas na tensão entre a imagem pensada e a vivência do real. A pluralidade de vozes, neste sentido, quando não decai na cacofonia, e mesmo quando incorre no pecado da repetição de chavões, condenado por Orwell, cumpre alguma função na reconstrução infinita da realidade que se habita, não sem dificuldade por tantas ocasiões. E nem seria necessário termos em nós a distopia presente de uma pandemia, ou a ansiedade contagiante do medo da aniquilação nuclear da espécie humana, com os riscos de uma guerra em desenvolvimento na Europa: a realidade comum, desprovida de traumas coletivos, apresenta obstáculos em fartura.

Assim, a figura do escritor que passeia e reflete, no caminho, sobre o que há de escrever — evocada por Dostoiévski — não está livre da interferência de nenhum dos dois planos que se misturam no momento preciso em que a palavra toma forma, quando uma ideia se busca, tanto quanto investiga o autor que a pensa e o mundo que a recebe. É a própria escrita que passeia e divaga, antes de sair da mente para a letra, e das frases retornar à mente sob o jugo da leitura.

Mundos criados
Conceber a fagulha literária como iluminadora de realidades diversas não é incutir nos escritores o dom da magia. Mas reconhecer na literatura essa possibilidade de mudar a chave mental e descortinar combinações de sinapses que são capazes, em algum aspecto e em relativa medida, de mudar o mundo espiado de dentro de si, pela leitura. Por isso, para Vladimir Nabokov, o ato de ler não é banal nem deveria ser banalizado por lentes de rotulagem, menosprezo, soberba ou desatenção. Ler é uma disposição que requer interesse e cuidado, justamente porque dessa disposição depende a visão que se acrescenta à realidade — e no limite, a realidade mesma, montada e remontada pelo leitor.

Ensina Nabokov: “Quando lemos, devemos reparar nos detalhes e acariciá-los. Não há nada de errado com o lugar da generalização se ele vem depois que as minúcias ensolaradas do livro tenham sido amorosamente coletadas. Caso parta de alguma generalização banal, o leitor toma o rumo errado e se distancia do livro antes mesmo de começar a entendê-lo”, diz, dando o exemplo da ideia preconcebida de leitura de uma obra como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, como sendo uma denúncia da burguesia. “Nunca deveríamos esquecer que, como a obra de arte é sempre a criação de um novo mundo, a primeira coisa a fazer é estudar esse novo mundo tão de perto quanto possível, encarando-o como algo novo em folha, sem nenhuma conexão óbvia com os mundos que já conhecemos.”

Se o verdadeiro escritor é “aquele que faz planetas girarem”, o que cabe ao leitor para identificar um novo mundo em ignição? Para Nabokov, só há uma resposta: relendo. “Um bom leitor, um grande leitor, um leitor ativo e criativo, é um releitor”, porque é necessário tempo para que a apreensão da obra se faça, ao modo da apreciação de uma pintura. E a imaginação é parte dessa fruição, afastando o automatismo da leitura apressada. “Uma vez que o grande artista usou sua imaginação ao criar o livro, é natural e justo que seu consumidor também a use”, recomenda Nabokov.

E a imaginação se usa em liberdade, tanto na hora da autoria como na leitura e na releitura. O maior valor para a transmissão da palavra escrita, na compreensão de George Orwell, é a liberdade de expressão, sem a qual a escrita definha, com impacto sobre todas as áreas do pensamento. “A literatura está condenada se a liberdade de pensamento acabar”, escreve Orwell, fechando o círculo unido entre a realidade escrita e a pensada.

Por isso, para ele, a tirania não pode ser celebrada com palavras: “Ninguém jamais escreveu um bom livro a favor da Inquisição”. A liberdade intelectual se rege pela criatividade livre, sem a imposição de fatos, mentiras e sentimentos imaginados. Da perspectiva de quem lê, e aproveitando o figurino do leitor ideal de Nabokov, a liberdade de expressão se manifesta igualmente na leitura e releitura livres, sem empecilhos e baias para o pensamento.

Para que se possa “começar a falar de literatura antes de qualquer outra coisa”, na expressão de Dostoiévski, o leitor e o escritor se amparam na possibilidade de criação de novos mundos — na reforma contínua da realidade acessada pela disposição literária.

Lições de literatura
Vladimir Nabokov
Trad.: Jorio Dauster
Fósforo
472 págs.

A literatura, os escritores e o Leviatã
George Orwell
Trad.: Jorge Bastos Cruz
Nova Fronteira
128 págs.
Crônicas de Petersburgo
Fiódor Dostoiévski
Trad.: Fátima Bianchi
Editora 34
96 págs.
Fábio Lucas

Nasceu no Recife (PE), em 1970. Foi repórter e editor de opinião da Gazeta Mercantil Distrito Federal, colaborador da revista Continente, colunista e editorialista do Jornal do Commercio (PE). Também assinou a coluna Marcatexto, no portal NE10.

Rascunho