As portas da ficção científica moderna foram abertas há mais de dois séculos por uma garota de 18 anos chamada Mary Shelley, que contou aos seus amigos a história de Victor Frankenstein e a monstruosidade que seu orgulho intelectual gerou. Marcada por uma aura sombria do horror gótico da época, Frankenstein apresentou uma narrativa em que o otimismo da ciência e das recorrentes inovações tecnológicas era posto em dúvida.
Durante as décadas seguintes, pouco destaque foi dado à linha aberta pela escritora até o sucesso de outros dois autores europeus. O primeiro deles era Jules Verne. O escritor francês teve uma infância permeada por boatos, como a história de que ainda criança teria subido a bordo de um navio como um grumete e sido resgatado por seu pai quase em alto-mar.
Na verdade, Verne teve uma infância pacata. Foi enviado pelo pai a Paris para cursar direito e seguir a profissão da família. No entanto, descobriu sua paixão pelas letras e desistiu da carreira proposta. Enquanto morou na capital francesa, frequentou a Biblioteca Nacional e, além das literaturas de viagem e aventura, consumiu diversos periódicos científicos.
Como mostram os seus livros, sua grande paixão era a geografia. A admiração pode ser vista em diversas obras, desde as profundezas do mar até as viagens de balão pelos céus. Como diz Adam Roberts em A verdadeira história da ficção científica, “as ficções de Verne tocavam o substrato do desejo humano de que ainda houvesse lugares misteriosos por descobrir”.
Como base para a coletânea Viagens extraordinárias, Verne sempre colocava em seus livros um extenso material factual, algumas vezes copiados de manuais e outras fontes científicas, que pudessem dar suporte à narrativa. No entanto, as teses científicas não passavam de um suporte romanesco. Em seus livros, Verne fala dos avanços na ciência de seu tempo, mas os extrapola. Sua perspectiva, burguesa, apresenta um mundo como recurso a ser explorado.
O segundo escritor que jogou luz na ficção científica foi Herbert George Wells, conhecido como H. G. Wells. O britânico foi um importante autor no estabelecimento de diversos parâmetros para os temas que a narrativa de ficção científica trabalha, como o das invasões alienígenas, da viagem no tempo e do cientista com pesquisas moralmente duvidosas.
Vivendo na Inglaterra do século 19, o ambiente imperialista da Europa e a revolução industrial serviram como base para diversas reflexões no trabalho do autor. De um lado, a mentalidade industrial e o otimismo do progresso e do racionalismo; do outro, um pessimismo acerca do futuro da humanidade. Em seu livro A ilha de dr. Moreau, Wells construiu uma trama racista para dar suas visões sobre as ações colonialistas do império britânico no território de outros países.
O escritor era uma figura ambígua. Proveniente de uma classe média-baixa, Wells ascendeu socialmente a duras penas e teve sua formação intelectual pautada pelas teorias darwinistas de Thomas Huxley. Isso fez com que ele estruturasse um discurso científico onde há a união da biologia com a luta social — e que, em livros futuros, se tornaria uma defesa aberta da eugenia.
Essas diferenças davam a tonalidade dos textos dos escritores e o caráter de suas narrativas se construíram de maneiras bem diferentes. Verne teve textos mais críticos, histórias futurísticas que mostravam o pensamento humanista soterrado pelos interesses políticos e financeiros da ciência, mas manteve esse lado escondido em sua carreira por conta de seu editor. Wells deixava suas críticas à mostra, trazendo uma narrativa mais pessimista, porém mais imaginativa — já que não se pautava pelas minúcias dos periódicos científicos.
Os personagens de Verne são mais simples, ativos e mantêm a narrativa em movimento. Do outro lado, os de Wells passam por suas jornadas quase de maneira passiva, ainda que ambas as histórias possuam uma forte dose de eurocentrismo.
O passado e o futuro
Em Viagem ao centro da Terra, Jules Verne conta a história do professor Lidenbrock, que, seguindo os passos do pensador Arne Saknussemm, parte com seu sobrinho Axel e o ajudante Hans rumo ao interior da crosta terrestre. Em um clima claustrofóbico, onde a escuridão aparece como um símbolo daquele princípio do desconhecido, a jornada surgiu a partir das orientações do bilhete criptografado encontrado em um livro: “desce à cratera do Youcul de Sneffels que a sombra do Scartaris vem beijar antes das calendas de julho, ó viajante audaz, e tu chegarás ao centro da Terra. Eu o fiz. Arne Saknussemm”.
No livro há uma percepção clara do ideal civilizatório, o otimismo que surgia dos desenvolvimentos científicos e a valorização da racionalidade em detrimento dos sentimentos. Na relação entre Hans e Lidenbrock, vemos a submissão de um “bom selvagem” que obedece e arrisca sua vida para salvar seu mestre.
Além disso, é incomunicável até para os leitores, já que não fala outro idioma além do seu e que é trabalhado como algo quase selvagem. Hans é desprovido de qualquer qualidade além de sua força bruta e, dessa relação de dominação, tudo é justificado pelo ímpeto de conquista do professor Lidenbrock, sempre esbravejando “Em frente! Em frente!”.
Em uma viagem subterrânea rumo ao passado, o professor dá aulas ao seu sobrinho e Verne recheia essas explicações com dados científicos da época, colocando em circulação diversas teorias sobre a consistência do núcleo terrestre e o aquecimento da crosta. Do lado oposto, numa viagem ao ano 802.701, Wells nos traz uma máquina cuja explicação científica para o seu funcionamento é quase inexistente.
Ao contar a história do Viajante do Tempo em A máquina do tempo, o escritor parte das expectativas sobre a evolução humana para retratar o conflito entre os seres da superfície e as bestas do subsolo que viviam na Londres de um futuro remoto. A narrativa é dividida em dois encontros. Contada por um amigo do Viajante, a primeira reunião apresenta a parte teórica que possibilitou a criação do dispositivo para viajar no tempo. No segundo encontro, ele retorna de uma viagem e conta o que se passou.
Nesse primeiro encontro, otimista, há a apresentação de uma visão geométrica do tempo que o coloca em pé de igualdade com as dimensões de largura, espessura e comprimento. Por conta dessa postura, “a grande inovação de Wells”, como diz Adriano Scandolara no prefácio do livro, é a construção de um dispositivo que permite o controle do tempo da mesma forma que se domina a eletricidade.
Essa ideia liberta as narrativas de viagem de recursos mágicos e permite o desenvolvimento de questões como paradoxos temporais, universos paralelos, bifurcações na história etc. Inclusive, até hoje chamamos as “máquinas do tempo” pelo nome dado por Wells.
Durante o segundo encontro, quando o Viajante do Tempo retorna para contar a parte prática de seu experimento, passamos para outro âmbito da ciência. Ao saltar no tempo, o protagonista encontrou a raça humana completamente alterada pelos processos de evolução e dividida entre Elóis e Morlocks.
O processo evolutivo surge como uma ironia em relação à crença da evolução como um progresso. Wells, com sua formação, ficava incomodado com a aproximação entre evolução e otimismo. Tal visão era complementada pelo pensamento político do escritor, pessimista e niilista, que satirizava as classes mais altas e sua improdutividade. No mundo de seu livro, as condições de vida confortáveis e melhores geram os Elóis, belos, pacíficos e estúpidos, mas não melhorou as condições de vida dos Morlocks, inteligentes, violentos e canibais.
Para Wells, aquela divisão decorria das próprias configurações de classes sociais da época, como ele escreve em A máquina do tempo: “A princípio, partindo dos problemas da nossa própria era, me pareceu claro como o dia que a ampliação gradual da diferença, hoje meramente temporária e social, entre o Capitalista e o Proletário era a chave de toda a questão”.
No entanto, a ambiguidade de Wells, que pertencia a própria classe que criticava, surge na figura do Viajante. Ainda que ele fosse um intelectual racional, sente prazer em aniquilar Morlocks. Além disso, seus hábitos em relação aos criados, como o fato de não suportar ter refeições com eles por perto, o coloca na mesma casta que os Elóis. Durante a viagem, seu comportamento é agressivo e próximo ao de um colonizador.
Da mesma forma que Viagem ao centro da Terra surge como uma narrativa que apresenta um certo otimismo, a leitura de A máquina do tempo instiga pela presença de um artefato tão caro à literatura de ficção científica, por conta de sua visão crítica sobre o otimismo proveniente da industrialização, na construção de linearidade temporal e seu consequente paradoxo.
Jules Verne
Nasceu em 1828, na França. Publicou mais de 60 obras. Junto com o editor Pierre-Jules Hetzel, lançou dois romances a cada ano para a publicação da coleção Viagens extraordinárias, que inclui títulos como Da Terra à Lua (1865), Viagem ao centro da Terra (1864) e A volta ao mundo em 80 dias (1872). Morreu em 1905.