No coração da loucura

Pioneira do jornalismo investigativo, Nellie Bly viveu dez dias em um manicômio para denunciar brutalidades praticadas contra uma população vulnerável
Nellie Bly, autora de “Dez dias num hospício”
01/02/2022

Marcado pelo estigma da loucura e do alcoolismo, Lima Barreto dirigiu críticas ao que chamou de cultura do doutor, uma espécie de fetiche de título que implicava o uso acrítico de teorias e práticas estrangeiras nas realidades brasileiras. Em Diário do hospício & O cemitério dos vivos, Lima descreveu um dos médicos do Hospital Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, como “mais nevrosado e avoado do que eu”, já que “seria capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer”.

Em 1887, décadas antes do escritor brasileiro, Nellie Bly dava um diagnóstico semelhante em Nova York. Para escrever Dez dias num hospício, a jornalista estadunidense fingiu loucura para ser internada no Hospício de Alienados de Blackwell’s Island e mostrar as problemáticas de uma medicina brutal exercida contra uma população vulnerável. Publicado na revista New York World, a produção se tornou um marco na história do jornalismo investigativo, como mostra a jornalista Patrícia Campos Mello no prefácio da edição.

Nascida em 1864, Elizabeth Jane Cochrane viveu uma vida intensa: presidiu uma indústria siderúrgica, registrou dezenas de patentes e lutou contra a opressão patriarcal no século 19. Sob o pseudônimo de Nellie Bly, Elizabeth começou sua carreira de jornalista indignada com o status quo. Depois de enviar uma carta ao jornal Pittsburgh Dispatch, sob o pseudônimo Órfã Solitária, em resposta a um artigo que impunha normas de comportamento às mulheres, foi convidada pelo editor a escrever algumas matérias para o jornal.

No começo de sua carreira, Nellie teve espaço para fazer reportagens denunciando as violências de uma sociedade desigual. Escreveu sobre assuntos como divórcio e as condições de operárias nas fábricas de Pittsburgh. Mas logo sua atuação foi relegada a assuntos pejorativamente tachados como de mulher, como moda, jardinagem e pautas de sociedade e costumes.

Insatisfeita, a jornalista saiu da publicação e foi ao México, onde cobriu por seis meses a ditadura de Porfírio Díaz. Pelo tom crítico característico da autora, Bly logo teve que ir embora do país. Sem dinheiro, foi para Nova York. Pensou que, como jornalista talentosa, logo encontraria emprego. Tentou vagas em diversas redações, mas foi recusada em todas.

Curioso pensar que uma das vagas era para o relato de uma viagem de balão. Nellie Bly foi recusada por ser “algo muito difícil para uma senhorita”, mas anos depois bateu o recorde de Phileas Fogg, personagem de Julio Verne do romance A volta ao mundo em 80 dias, viajando o globo sozinha em 72 dias — e ainda teve que aguentar perguntas do tipo: “Como fez uma mala tão pequena para viajar, sendo uma mulher?”.

Com o dinheiro chegando no fim, Nellie pediu uma passagem emprestada para ir ao edifício do New York World. Ao chegar na redação, convenceu os seguranças e conseguiu uma entrevista com o editor-chefe, Joseph Pulitzer. Durante a conversa, Bly disse que gostaria de escrever sobre as experiências de imigrantes, se ofereceu para ir à Europa e voltar na terceira classe de um navio. A ideia foi recusada, mas com uma contraproposta: e se ela se internasse no Hospício de Alienados de Blackwell’s Island para averiguar os relatos de violência?

Ela topou. Aos 23 anos de idade, tornou-se um marco na história do jornalismo estadunidense. Foi uma das primeiras repórteres conhecidas como muckrakers, jornalistas que reviram a sujeira para expor corrupção e outros malfeitos, especialmente de instituições, empresas e do governo. Muckrakers eram os jornalistas que se arriscavam por suas reportagens, e foi isso que Nellie fez.

Fingindo loucura
É curioso ver como foi fácil ser admitida nas instalações. Ao longo da narrativa, acompanhamos juízes, médicos e policiais se convencendo da falsa loucura e deslegitimando qualquer outra possibilidade de interpretação. Bly comenta como, desde o momento em que entrou no hospício, não precisou adotar um “papel de louca”. “Falei e agi exatamente como faço no meu dia a dia. Por incrível que pareça, quanto mais agia e falava com lucidez, mais louca me consideravam”, escreveu a jornalista.

Outra das pacientes que ingressam com ela é Anne Neville. Ela conhece a jovem, recém-internada, na entrada do hospital. Anne era camareira e ficou com a saúde debilitada por uma alta carga de trabalho. Sem ter como pagar a hospedagem do convento em que se tratava, o sobrinho a mandou para o hospital. Quando a jornalista perguntou se ela tinha algum outro problema mental além do cansaço, ela disse que não, mas que os médicos faziam perguntas estranhas e a confundiam sempre que possível.

Da mesma forma que Neville, outra das pacientes é uma alemã que não entende uma palavra em inglês. Devido à incomunicabilidade, foi internada. Essas são apenas algumas das histórias de desamparo proporcionado pelos funcionários e da incapacidade do estabelecimento que Bly apresenta aos leitores.

Dentro do hospício, a situação piora e a instalação se mostra ainda mais hostil e violenta. Desde a irresponsabilidade nos exames das pacientes dentro do hospital, com um médico preocupado em flertar com a enfermeira, até a estrutura precária do manicômio. As refeições são insatisfatórias, com pão seco, manteiga rançosa e chá fraco feitos em uma cozinha nauseabunda — enquanto os funcionários do estabelecimento tinham comida reservada.

A higiene das pacientes é insalubre. Elas compartilham a mesma água, toalha, sabonete e pente. Soma-se a isso o fato de as instalações não fornecerem aquecimento o suficiente. Nellie conta do dia em que chegou e foi banhada e vestida com uma camisola, ainda molhada, para dormir em um espaço gelado sem aquecedor (que só podia ser ligado em meses específicos, independentemente da temperatura ao longo do ano) e sem cobertas o suficiente (já que a máxima repetida pelas enfermeiras era de que, como as pacientes dependiam de caridade, não podiam exigir nada).

As enfermeiras eram responsáveis por grande parte dos maus-tratos. Nellie viu enfermeiras que roubavam pacientes, agrediam e torturavam — inclusive, gente com marcas de um estrangulamento. No frio, notou funcionárias que colocavam a mão gelada em pacientes. Outras, provocavam pacientes violentas por motivos sádicos e, depois, as agrediam como punição. O poder coercitivo das enfermeiras era forte e, por medo de retalhamento, nenhuma das mulheres quis conversar com Nellie sobre os problemas da instalação.

Durante a escrita da reportagem, Nellie reflete:

 À exceção da tortura, que tratamento levaria uma pessoa à loucura com mais rapidez? Aquele era mesmo um grupo de mulheres internadas para serem curadas? Eu gostaria que os médicos especialistas que me condenam por minhas ações, que provaram sua competência, pegassem uma mulher perfeitamente lúcida e saudável, trancassem-na e a fizessem ficar sentada das seis da manhã às oito da noite em bancos de encosto reto, sem permitir que ela falasse ou se mexesse durante essas horas, sem lhe oferecer qualquer leitura e sem deixar que soubesse nada sobre o mundo e seus acontecimentos, lhe oferecessem comida ruim e tratamento severo, e então observassem quanto tempo levaria para que ela ficasse louca. Dois meses seriam suficientes para arruiná-la mental e fisicamente.

Ao fim de sua estadia, Nellie descreve sua saída com uma mistura de prazer e remorso, “por não poder levar comigo algumas das mulheres desafortunadas que viveram e sofreram ao meu lado, e que acredito serem tão sãs quanto eu mesma era e sou”. Talvez por isso, ao longo do seu relato, Bly demonstre tanta confiança no trabalho jornalístico: se não tivesse fé, como lidaria com a dor de conhecer as condições de vida daquelas mulheres?

Dez dias num hospício
Nellie Bly
Trad.: Ana Guadalupe
Fósforo
112 págs.
Nellie Bly
Nascida em 1864, nos EUA, Elizabeth Jane Cochrane foi escritora, inventora, empresária, filantropa e pioneira no jornalismo investigativo. Sob o pseudônimo de Nellie Bly, foi correspondente de guerras, escreveu sobre tráficos de bebês, condições de vida em prisões, fábricas e abusos de agência de empregos para trabalhadoras domésticas. Entre suas obras traduzidas, ambas lançadas em 2021, estão Dez dias num hospício e A volta ao mundo em 72 dias.
Arthur Marchetto

É doutorando em Comunicação Social, com pesquisa sobre crítica literária na Universidade Metodista.

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