No caminho, com Bashô

“Rakushisha”, de Adriana Lisboa, é elaborado por meio de caminhos curtos e delicadas passagens
Adriana Lisboa: recortes sutis de momentos passados ou que estão sendo vividos.
01/09/2007

A noveleta Rakushisha, de Adriana Lisboa, assemelha-se ao casulo de um bicho-da-seda, um envoltório tecido de fora para dentro, no qual dois personagens, Celina e Haruki, buscam a si mesmos. Unidos por uma viagem improvável — apesar de narrada com verossimilhança — e mantendo, depois de chegarem ao destino, uma relação ainda mais improvável, mas narrada também de maneira verossímil, eles se deparam, cada um a seu modo, com as próprias vidas, suas angústias e seus desapontamentos. A ida ao Japão serve, desse modo, como um rito de passagem: para Celina, a libertação da dor provocada pela perda de sua filha; para Haruki, a libertação do medo de seguir seus ancestrais e a clareza em relação a um amor infeliz.

Matsuo Bashô, o poeta japonês que viveu entre 1644 e 1694, um dos mestres do haicai, não é apenas o motivo da viagem, mas encontra-se no centro da narrativa, dialogando com os personagens por meio de seu Diário de Saga, objeto de leitura de Celina, que também escreve um diário, e de Haruki, contratado para ilustrar a tradução brasileira da obra.

Haruki é um artista solitário, descendente de japoneses, que despreza a cultura dos antepassados. Tem a ilusão de que se identifica plenamente com o tempo e o país em que vive, mas, quando chega ao Japão, perde as certezas e passa a buscar o reencontro protelado com seu pai, isto é, as tradições de seu povo.

Quanto à Celina, o narrador nos dá as impressões de Haruki, na primeira vez em que a encontrou:

Parecia mesmo alguma coisa volátil […] talvez por dentro ela não tivesse ossos nem músculos nem vísceras, mas ar. Um pedaço de céu, recoberto pela fina epiderme humana. Um pedaço de céu quase humano. Por fora, ela era o sorriso mais triste que ele tinha visto nos últimos tempos.

Desse encontro fortuito, em um vagão do metrô carioca, nasce o convite de Haruki a Celina, para que o acompanhe ao Japão. “A aceitação tão estapafúrdia de um convite estapafúrdio”, comenta o narrador, lança os dois personagens na viagem em que descobrirão o quanto “a vida é o caminho e não o ponto fixo no espaço”.

Rakushisha está impregnada de raciocínios, comportamentos e divagações que lembram o zen, a busca pela superação da dicotomia entre sujeito e objeto — um estado de iluminação interior no qual se alcança o satori, “o súbito relâmpago da consciência de uma nova verdade jamais sonhada” ou “o olhar intuitivo no âmago das coisas”, de acordo com Daisetz Teitaro Suzuki — que perpassa todas as formas da arte nipônica. Ele se manifesta não apenas na leitura do diário de Bashô, mas também nos diferentes momentos das vidas de Celina e Haruki, como se eles, apesar de não terem consciência do que vivem, experimentassem pequenas mas fulgurantes revelações.

No caso de Celina, uma artesã que confecciona bolsas, sua relação com o tecido é um exemplo dessa unidade de consciência ou de ruptura da lógica que o zen almeja:

Ela cortava o pano sem lágrimas nos olhos, refazia o corte necessário de um dia, certo dia, e costurava, e ao costurar recosia os ossos dos pés bem juntos uns dos outros e pregava como botões a alma tão arredia para mantê-la bem rente às solas e, ao bordar, contava os pontos, um, dois, dez, trinta, os bordados disfarçavam seus pensamentos.

O próprio ato de conceber uma bolsa é semelhante à súbita inspiração do poeta que, depois de meditar longamente, traça em poucas sílabas o seu haicai: “As bolsas se faziam quando se faziam. Instantaneamente: no instante” — ou seja, cada bolsa, um “olhar no âmago das coisas”.

Haruki também possui a clara percepção do zen, da iluminação instantânea:

A chuva deixava o mundo luminoso diante dos olhos de Haruki. O asfalto puído da Machado de Assis brilhava. Os carros estacionados brilhavam. Folhas de árvores. Grades à entrada dos edifícios. Até o som das coisas brilhava na chuva, as rodas dos carros sobre o asfalto, uma freada brusca e a buzina, o rádio do porteiro.

Era preciso reconhecer e reverenciar esses momentos. Eles eram rápidos e raros.          Momentos em que sem nenhum motivo aparente tudo parecia entrar nos eixos, ajustar-se, encaixar-se. Acabavam-se as perguntas e a necessidade delas. Acabavam-se a pressa, o ter aonde ir, o vir de algum lugar. Simplesmente as solas dos sapatos batiam na calçada úmida e pronto, o mundo prescindia de outros significados.

Ao tentar fazer um pássaro de origami, Celina conclui:

[…] Me dei conta de que não interessava tanto o resultado final, o pássaro. Bom mesmo era simplesmente estar unindo as pontas do papel e me empenhando nas dobras. Talvez nunca        chegasse ao tsuru, por mais simples que fosse aquela dobradura. Quando eu chegasse ao fim, alguma coisa poderia se perder.

Concentrando-se no ato em si, ela, sem saber, se aproxima de Bashô e do zen, certa de que o sucesso de seu trabalho reside mais em sua visão interior do que no resultado final.

Narradores e recortes sutis
Um recurso bem explorado por Adriana Lisboa é a variedade de narradores. A voz em primeira pessoa, nos trechos do diário de Celina, faz um contraponto interessante com as citações do diário de Matsuo Bashô. Quanto ao narrador em terceira pessoa, além de retroceder e avançar no tempo, mescla sua inevitável pretensão de onisciência ao “eu” dos personagens, de maneira a corroborar o próprio relato e, ao mesmo tempo, conceder ao leitor a sensação de que este participa da intimidade de Celina e Haruki:

Fazia uma semana que Haruki e Celina haviam chegado a Kyoto. Ele então resolveu partir para Tóquio, e de lá talvez ainda mais para o norte. Se tinha ido tão longe, queria ir mais       longe ainda. Uma idéia possível: visitar Sendai, a terra da família de seu pai?

Você ia ficar feliz, velho. Cutucar o passado com a ponta do dedo do pé. Para constatar sua imobilidade?

As vozes que compõem a narrativa preferem refletir ou se interrogar, ao invés de interagir. Esmiúçam cada gesto, cada decisão que tomam, como se fosse imprescindível arrancar poesia do momento. Os personagens vivem, portanto, em permanente auto-análise.

Rakushisha é elaborada por meio de caminhos curtos, delicadas passagens, cujos diferentes narradores nunca optam pelo confronto, preferindo sempre o mergulho na consciência. “É preciso ter pequenas metas. Um pé depois do outro”, diz Celina, a mulher que busca, acima de tudo, reconstruir a própria vida.

Trata-se de uma narrativa líquida, que mantém os personagens suspensos em um mundo flutuante — o mundo, para os japoneses, de ilusões, de aparências, onde a consternação se alterna com o gozo, onde o transitório impera e o belo é marcado de fugacidade, como escrevi neste jornal há alguns meses, em uma resenha dedicada a Yasunari Kawabata. Mas o que a obra perde em termos de enredo, de trama, ganha em poesia: “O calor já esmiuçado de abril”; “O vapor subiu ao teto em sua morte úmida”. O instante de felicidade recordado em meio à tristeza: “Aquela tarde se agarrava à memória como se fosse um insulto”. Ou a perfeita, sintética definição do que é a vida: — “O abismo renovável da dor e do não”.

Em certos trechos, o leitor se depara com seguidas frases curtas, às vezes uma série de perguntas, nas quais as expressões se repetem, formando o ritmo pessoal que nos afasta da preocupação de descobrir o fim dos dramas diluídos no texto, nas alternações das histórias que se cruzam, que vão e voltam sem uma ordem cronológica precisa, mas perfeitamente articuladas.

A autora demonstra ter consciência do quanto é efêmera a força dessa prosa intimista e poética, pois opta por um gênero híbrido, que foge aos padrões da história tradicional, e pela narrativa curta — bons trunfos, que possibilitam a chegada segura ao termo do que Adriana Lisboa se propôs: recortes sutis de momentos passados ou que estão sendo vividos, imbricações que se assemelham à definição de haicai do professor e crítico literário Paulo Franchetti: “Não é síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo de palavras. É antes a arte de, com o mínimo, obter o suficiente”.

Rakushisha é uma narrativa feita de haicais que se sucedem e vão construindo a linha diáfana dos acontecimentos. “O caminho se faz ao caminhar”, escreveu o poeta espanhol Antonio Machado. Não importa o que virá depois ou o que efetivamente antecedeu as experiências que o leitor pôde apreender. As fissuras no tempo e no espaço que a autora oferece bastam para reconhecermos a verdade do clássico verso de Machado.

Rakushisha
Adriana Lisboa
Rocco
131 págs.
Adriana Lisboa
Nasceu em 1970, no Rio de Janeiro. Doutora em Literatura Comparada pela Uerj, onde fez também o mestrado em Literatura Brasileira, tem uma graduação anterior em Música, pela Unirio. Nos EUA, é pesquisadora junto à Universidade do Novo México. Publicou Os fios da memória, Sinfonia em branco e Um beijo de Colombina, todos pela Rocco, além de participar em várias antologias de contos. Recebeu os prêmios José Saramago, da Fundação Círculo de Leitores, de Portugal, e o de Autor Revelação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, pela obra Língua de trapos.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho