Rose Water disse certa vez uma coisa interessante para Billy sobre um livro que não era de ficção científica. Afirmou que tudo o que se pode saber a respeito da vida está em Os irmão Karamázov, de Fiódor Dostoiévski.
— Mas isso já não é mais suficiente — afirmou Rosewater.
Matadouro-Cinco
Quase qualquer leitor concorda que as ficções científicas, nas suas especulações sobre o futuro e as tecnologias, quase sempre dizem mais sobre o presente contexto do autor do que sobre as possibilidades reais de mudança na vida. Kurt Vonnegut parece ter levado essa ideia tão a sério que conseguiu escrever alguns romances de ficção científica sobre sua própria época e seu próprio país: os Estados Unidos da segunda metade do século 20. No ano passado saíram duas traduções dos livros mais conhecidos e celebrados de Vonnegut: Matadouro-Cinco [Slaughterhouse-Five, de 1969], em tradução de Daniel Pellizzari, e Café da manhã dos campeões [Breakfast of champions, de 1972], em tradução de André Czarnobai. São traduções novas, pois os dois livros já haviam sido publicados no Brasil pela L&PM, em traduções de Cássia Zanon; antes havia uma tradução da Artenova. Mas, quando falamos de escritores desafiadores, quanto mais tradução melhor, e as duas novas conseguem belos resultados.
Vonnegut, especificamente, desafia pela crueza, pela verdadeira secura de sua escrita, e pela capacidade de ser brutal com o mínimo de recursos e o máximo de ironia. É o efeito que ele consegue com os refrões. Um deles é so it goes, que Pellizzari traduz como “é assim mesmo”, um refrão repetido dezenas de vezes, sempre que se menciona a morte, quase a ponto de gerar uma náusea no leitor, como neste caso de Matadouro-Cinco:
Robert Kennedy, cuja casa de veraneio fica a 13 quilômetros da casa em que moro o ano inteiro, foi baleado duas noites atrás. Morreu noite passada. É assim mesmo.
Martin Luther King foi baleado um mês atrás. Ele também morreu. É assim mesmo.
E todos os dias meu governo me fornece uma contagem dos cadáveres criados pela ciência militar no Vietnã. É assim mesmo.
Meu pai morreu já faz muitos anos… de causas naturais. É assim mesmo. Era um homem afetuoso. E era maluco por armas. Ele me deixou suas armas. Estão enferrujando.
Vejam que, apesar da aparente indiferença com a morte, sobretudo violenta, a série termina invertida pelo abandono das armas herdadas. Toda a violência e o absurdo da linguagem de Vonnegut estão voltados para criticar a guerra, o racismo, a hipocrisia de seu próprio tempo. Efeito similar ocorre quando enumera disparates da vida cotidiana e termina com “E assim por diante”, outro refrão, mas que atravessa vários livros.
A tática de Vonnegut é, portanto, narrar a vida presente com um distanciamento que nos faça olhar com estranhamento o mundo em que estamos. Nesse sentido, o presente se torna ficção científica aos olhos do narrador e, portanto, do leitor. Por vezes, coisas são explicadas, quase como se estivéssemos num livro para crianças ou para seres que vivem milênios depois da nossa era, após o fim da civilização contemporânea, como neste momento de Café da manhã dos campeões, quando conhecemos um pouco do filho do protagonista:
Veja bem: Bunny Hoover foi mandado para a Academia Militar de Prairie para viver uma temporada de oito anos de esportes, sodomia e fascismo ininterruptos. Sodomia consistia em enfiar o pênis de alguém no cu ou na boca de outro alguém, ou receber o pênis de alguém em sua boca ou cu. Já o fascismo era uma filosofia política relativamente popular que sacralizava qualquer nação e raça à qual o filósofo porventura pertencesse. Demandava, portanto, um governo centralizado e autocrata, comandado por um ditador. O ditador tinha de ser obedecido, independente do que pedisse para que os cidadão fizessem.
Sodomia e fascismo são explicados de modo banal, como se ninguém no mundo tivesse ouvido falar disso. E não se trata, repito, de um jogo de indiferença. Pelo contrário, a distância produz a náusea e a possiblidade e intervir no mundo, ao contrário do que faz Billy Pilgrim, o protagonista do Matadouro-Cinco, que, por viajar mentalmente no tempo, aceita tudo como já dado (em decorrência de teorias do espaço-tempo na física contemporânea). Vejamos mais uma narrativa do ordinário-como-absurdo, desta vez abordando o racismo, em Café da manhã dos campeões:
Rena era o código que eles usavam para se referir à sua empregada negra que, naquele momento, estava bem longe, na cozinha. Era o código que eles usavam para se referir aos negros em geral. Aquilo permitia que falassem sobre o problema dos negros na cidade, um problema bem grande, afinal, sem ofender nenhum negro que porventura os ouvisse.
— A rena está dormindo. Ou lendo a Revista dos Panteras Negras — disse Grace.
***
O problema com as renas era basicamente o seguinte: nenhum branco via muita utilidade para os negros naquele momento, exceto pelos gângsteres, que vendiam carros usados e drogas e móveis para eles. Ainda assim, as renas seguiam se reproduzindo.
[…]
O Departamento de Polícia da cidade de Midland e o Departamento de Xerifes do condado de Midland eram constituídos principalmente de homens brancos. Eles possuíam prateleiras e mais prateleiras cheias de submetralhadoras e escopetas automáticas calibre 12 prontas para serem usadas durante a temporada de caça às renas, que estava prestes a ser aberta.
Para conseguir isso, Vonnegut também deve recusar duas coisas: em primeiro lugar, a imagem do herói americano; em segundo, a ideia de uma subjetividade especial que resolve os problemas. Uma citação longa, na voz do narrador de Café da manhã dos campeões (que sempre se confunde com o próprio autor, contrariando uma série de regras acadêmicas de leitura de romances) deixará tudo mais claro:
À medida que me aproximava do meu quinquagésimo aniversário, fui ficando cada vez mais irritado e perplexo com as decisões imbecis tomadas por meus compatriotas. Depois disso, repentinamente, comecei a sentir pena, pois entendi o quão natural e inocente era para eles se comportarem de forma tão abominável, obtendo resultados tão abomináveis: eles só estavam fazendo o melhor que podiam para viver como as pessoas inventadas nos livros de ficção. Era por isso que os americanos atiravam uns nos outros com tanta frequência: atirar era um artifício literário muito conveniente para encerrar contos e livros.
Por que havia tantos americanos sendo tratados pelo governo como se suas vidas fossem tão descartáveis quanto lenços de papel descartáveis? Porque era desse jeito que os autores costumavam tratar os coadjuvantes em suas histórias de faz de conta.
Depois que entendi o que estava transformando os Estados Unidos numa nação tão perigosa e infeliz, e repleta de gente que não tinha nada a ver com a vida real, resolvi parar de escrever ficção. Agora, eu escreveria sobre a vida. Toda pessoa seria tratada exatamente com a mesma importância que qualquer outra. Todos os fatos também seriam avaliados com pesos iguais. Nada ficaria de fora. Deixe que os outros levem ordem ao caos. Eu queria fazer o contrário: levar o caos à ordem. E acho que foi isso que eu fiz.
Esse aviso já havia sido dado por Mary O’Hare ao narrador de Matadouro-Cinco ao acusar Vonnegut, como outros escritores, quando descobre que ele pretende narrar como a cidade alemã de Dresden foi bombardeada e praticamente destruída em 13 de fevereiro de 1945, pois que Vonnegut estava lá, feito prisioneiro de guerra, tal como o protagonista do romance, Billy Pilgrim. Diz Mary:
Vai fingir que vocês eram homens em vez de bebês, e no cinema quem vai fazer o papel de vocês vai ser Frank Sinatra, John Wayne, ou outros desses velhos safados e glamorosos que adoram a guerra. E assim a guerra vai parecer maravilhosa, então vamos ter muitas outras. E elas vão ser travadas por bebês, como esses que estão ali em cima.
Mary se refere às crianças no andar de cima da casa. E Kurt compreende a demanda ética de uma escrita dessas sobre a guerra. A guerra não é entretenimento. Por isso ele responde:
— […] se eu terminar, você tem minha palavra de honra: esse livro não vai ter nenhum papel para Frank Sinatra ou John Wayne. E digo mais — completei. — O título vai ser A Cruzada das Crianças.
Dito e feito: esse é de fato o subtítulo de Matadouro-Cinco, apesar de todos os personagens principais já serem adultos retratados muitas vezes como jovens demais para entenderem a guerra em que estão jogados para se virarem, num mundo sem sentido.
Pano de fundo
É preciso apresentar um pouco os dois livros. Matadouro-Cinco é uma narrativa dupla: por um lado, sobretudo no início, mostra o trabalho do próprio Vonnegut para conseguir expressar a experiência terrível da Segunda Guerra Mundial, a humilhação e a dessubjetivação dos soldados e também o bombardeio de Dresden, que em uma só noite resultou na morte de 135 mil pessoas (quase o dobro de Hiroshima). Ao mesmo tempo, conta a saga de Billy Pilgrim, um jovem soldado norte-americano capturado pelas forças alemãs, desprovido de qualquer força de vontade, que vai sendo levado pelas ações; descobrimos que Pilgrim tem a capacidade de fazer com que sua consciência salte no tempo para momentos diferentes de sua existência, de modo que ele já sabe seu futuro até a morte; isso é algo que ele pode compreender melhor quando é raptado por alienígenas do planeta Trafalmadore. Apesar da trama quase delirante, tudo indica que Billy ganha seu suposto saber a partir da leitura de romances de Kilgore Trout, um escritor de ficção científica de quinta categoria, que produz sem parar as histórias mais disparatadas. Trout, por sua vez, é um alter ego autoderrisório do próprio Vonnegut e recorrente em vários romances.
Já Café da manhã dos campeões narra três histórias. A primeira é a de como Kilgore Trout é chamado para um evento de artes na pequena cidade de Midland, por causa de um milionário que ficou fã de suas obras publicadas com imagens pornográficas em editoras falidas (o milionário é Eliot Rosewater, que aparece como veterano em Matadouro-Cinco); Trout decide ir para mostrar a todos o que é um artista fracassado, ele próprio. A segunda história é a de Dwayne Hooper, um empresário bem de vida de Midland que está enlouquecendo (sem sabermos ao certo por quê) e, ao passar pelo evento de artes, terminará fora de si ao ler uma obra de Trout. Essa obra tem a forma de uma carta do Criador àquele que seria o único ser dotado de livre-arbítrio no mundo, pois todo o resto são máquinas, autômatos feitos para enganá-lo. Nesse encontro de Trout e Hoover, este assume a ficção como carta factual e começa a agredir violentamente todos à sua volta, inclusive o filho e a amante, que são os mais gravemente feridos. Tudo isso acontece diante dos olhos do narrador, o próprio Vonnegut, que contempla sua criação numa relação ambígua de onipotência e fragilidade; ou seja, é capaz de ser afetado por elas, invertendo por um instante a hierarquia entre criador e criatura.
Como se pode depreender, os dois livros são basicamente antinarrativas, centradas em experiências de anticlímax, numa linguagem simples, árida e ferina. É portanto a experiência lenta e dolorida desse vazio que está no cerne dos dois romances. Uma cena de menor importância de Café da manhã dos campeões pode servir como alegoria da angústia geral. Estamos num momento em que Trout convive com seu pássaro de estimação, chamado Bill (difícil não pensar em Billy Pilgrim nesse momento):
Então ele ficou pensando no que Bill talvez quisesse. Foi fácil adivinhar.
— Bill, eu gosto muito de você, e eu sou tão importante nesse Universo que vou realizar seus três maiores desejos.
Ele abriu a porta da gaiola, uma coisa que Bill não seria capaz de fazer nem em mil anos.
Bill saiu voando até o peitoril de uma janela. E então encostou seu ombrinho no vidro. Havia apenas uma camada de vidro entre Bill e o grande mundo lá fora. Apesar de Trout trabalhar no ramo das janelas antitempestade, não tinha janelas desse tipo instaladas em sua residência.
— Seu segundo desejo está prestes a se realizar — disse Trout, fazendo, mais uma vez, algo que Bill jamais poderia.
Ele abriu a janela. Mas esse evento foi tão perturbador para o periquito que ele voou de volta até a sua gaiola e entrou.
Trout fechou a porta da gaiola e voltou a trancá-la.
— Esse foi o uso mais inteligente de três desejos que eu já vi — disse ele ao pássaro. — Você deu um jeito de ainda manter alguma coisa que valha a pena desejar, que é sair dessa gaiola.
Os paradoxos do livre-arbítrio não cessam de pulular nas duas obras. Pilgrim opta por aceitar tudo como é, inclusive a morte de pessoas queridas, a violência desnecessária do mundo e o massacre da guerra. Trout, escritor e criador, descobre-se uma criatura de Vonnegut. Dwayne enlouquece e terminará falido pelos processos judiciais decorrentes da fúria descontrolada. Apenas Bill, o passarinho, parece fazer um movimento complexo e escolher a limitação (paradoxalmente o conforto da proteção) como o lugar em que o desejo subsiste como modo do livre-arbítrio, e bem, ele não é humano. O próprio Trout, como alter ego de Vonnegut, não sai do labirinto em que está encalacrado; o narrador no mesmo livro nos conta o seguinte sobre Trout: “Eu dei a ele uma vida que não valia a pena ser vivida, mas também dei a ele uma determinação ferrenha para viver. Essa era uma combinação comum no planeta Terra”.
Vonnegut, especificamente, desafia pela crueza, pela verdadeira secura de sua escrita, e pela capacidade de ser brutal com o mínimo de recursos e o máximo de ironia.
Narrador sensível
Por outro lado, toda a ironia e o distanciamento podem ceder lugar a um narrador sensível. Ele próprio assume que aprende com um de seus personagens em Café da manhã dos campeões, fica comovido com a vida que fervilha a sua volta, fora dos livros, percebe as demandas éticas para com essa vida. E assim consegue um modo certeiro de celebrar a sagração do que existe:
Sua situação, levando em conta o fato de ele ser uma máquina, era complexa, trágica e risível. Mas sua porção sagrada, sua consciência, permanecia como um feixe de luz inabalável.
Este livro está sendo escrito por uma máquina de carne em colaboração com uma máquina feita de metal e plástico. O plástico, por sinal, é um parente próximo da gosma que está no Sugar Creek. E no âmago da máquina de escrever de carne existe alguma coisa sagrada, que é um feixe de luz inabalável.
No âmago de cada pessoa que lê este livro existe um feixe de luz inabalável.
A campainha acaba de tocar no meu apartamento em Nova York. E eu sei o que vou encontrar quando abrir a porta: um feixe de luz inabalável.
É das melhores definições que posso pensar para um ser vivo, por isso repito ainda uma vez mais: um feixe de luz inabalável. São palavras de cura em meio a romances alucinados, modos de deslocamento do que já vinha sido deslocado e distanciado, como um retorno às demandas reais do convívio humano com tudo mais que é este planeta. Em tempos como os nossos, em que as cisões se aprofundam e o ódio impera, as palavras do narrador de Matadouro-Cinco soam como remédio:
Recomendei aos meus filhos que não se envolvam com massacres sob hipótese alguma, e que notícias de massacres de inimigos não devem ser motivo de satisfação ou alegria.
Elas bem podem ecoar como um mantra ao nosso século.