Humberto de Campos é desses raros polígrafos da literatura brasileira — semelhante a Coelho Neto no volume de escritos e no esquecimento a que foi condenado. Ambos, aliás, maranhenses.
Contista, cronista, biógrafo, poeta, crítico e memorialista, sua obra não recebeu leitura e julgamento abrangentes, muito menos definitivos. O que também não acontece nesta análise, restrita a um único livro — a coletânea O monstro e outros contos, publicada em 1932.
O escritor falecido prematuramente, aos 48 anos, que venceu a pobreza, a ignorância e o isolamento cultural, impondo-se no jornalismo graças à própria inteligência — sem depender da caridade do governo, que hoje se tornou imprescindível para os moralmente fracos —, merece, também por sua vasta bibliografia, ser arrancado do limbo a que nossas elites esquerdistas condenam os que não seguem sua cartilha.
Da sobriedade à retórica
O conto que abre o volume — O monstro — pretende flagrar a natureza no momento seguinte ao da Criação. Narrativa genésica, sua linguagem é característica da fantasia dos mitos. Neste caso, um mito pessimista, que coloca Dor e Morte como criadoras do homem. O tom sóbrio, que infelizmente desaparecerá nos outros contos, alia-se, em certos trechos, a uma composição correta:
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa.
A compassada harmonia que marca as inseparáveis irmãs será destruída no final hermético, em que o homem, no centro de uma disputa ciumenta, acaba por ser apenas um monte de lama carregado nos ombros da Morte.
No relato seguinte, A promessa, a sobriedade que marca O monstro começa a desaparecer. Mas a história da mãe, Maria Inácia, desesperada pela ideia de que o único filho, João Vicente, pode morrer na Revolução Federalista, ainda apresenta o narrador atento ao detalhe que, inserido no trecho correto, amplia a verossimilhança:
Doze dias depois, estavam as forças de que era um dos componentes acampadas nas vizinhanças de uma pequena cidade do interior, na zona de guerra, quando o João Vicente recebeu, com a sua companhia, munição de combate. Em torno do corpo, nos bolsos do cinturão forte, os cartuchos punham um peso novo, que, no entanto, pouco o afligia.
O narrador também se mostra apto a desenvolver a psicologia do personagem. Após os primeiros combates, em que João Vicente se comporta de forma destemida, o jovem amadurece:
[…] Não era, porém, mais, aquele rapagão claro das serenatas do Araçá. A barba forte, que raspava toda antigamente, tomava-lhe agora o rosto, envelhecendo-o, dando-lhe os ares daqueles cangaceiros do Nordeste, que via passar, às vezes, a cavalo, pela vila, com a faca de um lado, a garrucha de outro, e o clavinote na lua da sela. A vida militar absorvera o boêmio. Era, agora, um soldado.
Da mesma forma, a mãe solitária, que se entrega a orações contínuas, passa da fé simples ao misticismo febril, no qual a divindade é tratada como impassível comerciante:
[…] As promessas multiplicaram-se. Até que, uma noite, em um momento de maior aflição, ofereceu, com toda a sua alma devota:
— Minha Senhora das Dores! Trazei meu filho são, e salvo, ainda uma vez, à minha vista, que eu vos dou a minha vida!
E com todo o fervor da contrição, num acesso de choro:
— A minha vida pela dele, Minha Mãe Santíssima!… A minha vida pela dele!… Mas que eu ainda veja meu filho!…
A retórica, contudo, já se intromete, desequilibrando o texto:
Calada por essa maneira a arma que mais os hostilizava, os assaltantes, desprezando a fuzilaria, puseram-se de pé e investiram contra a trincheira, rangendo os dentes. E, em breve, após um curto combate à arma branca, em que os homens da mesma pátria se retalhavam, se dilaceravam, se estraçalhavam com fúria sanguinária, tomavam os legalistas posse do reduto, onde o sangue coagulado se misturava, repugnante, entre zumbidos de moscas, com dejeções humanas e com a lama da chuva da véspera.
O exagero produz efeito contrário ao planejado. E o que poderia ser uma cena realista, emocionante, transforma-se no quadro, tão comum na literatura brasileira, no qual a eloquência se sobrepõe à mensagem.
O problema se agrava nesta descrição:
[…] avolumado pelos riachos da montanha, o rio Araçá rolava agora transformado em torrente, arrastando galhos de árvores e moitas de aninga no turbilhão das suas águas escachoantes. Comprimido pelas ribanceiras, que ia lambendo numa volúpia furiosa de sátiro, fazia vertigem vê-lo. De quando em quando, um ruído cavo alarmava os moradores ribeirinhos. Era a queda de um barranco, de uma barreira da margem, que logo se dissolvia em rodopios, na retorta diabólica daquelas águas.
Perceba-se que, graças à verborragia, o texto torna-se pleonástico: “turbilhão das suas águas escachoantes”, “volúpia furiosa de sátiro” e “retorta diabólica daquelas águas” pretendem criar novas imagens para a ideia de movimento incontrolável — e, exatamente por nada acrescentarem, poderiam ser suprimidas sem perda da expressividade.
Quanto mais avançamos, mais esses adornos pomposos predominam — e mais o autor se distancia da fórmula cuja beleza nasce da substancialidade das palavras, presente, por exemplo, neste período: “Em uma árvore próxima, chiavam cigarras, limando o silêncio” (no relato O caldo). Graças ao sentido metafórico, o verbo “limar” amplia a realidade, surpreende, domina a imaginação do leitor, impondo-se com mais força do que uma sucessão de adjetivos inúteis.
Grandiloquência e repetições
A retórica, no entanto, degrada o livro de forma incontrolável. Muitas vezes, unindo-se a melosos lugares-comuns:
[…] Rosinha, cuja beleza se acentuava à medida que se tornava mulher e o amor lhe penetrava, como uma aurora, aos abismos floridos da alma.
Repete-se, a cada conto, a insistência de criar imagens originais — mas a maioria concede ao texto aspecto ridículo. Em Catimbau, o narrador não hesita em dizer, sobre a personagem que se ruboriza: “As orelhas pequenas tornaram-se-lhe de lacre, como duas cristas de galo garnizé” — comparação esdrúxula, que não condiz com a personagem e nada lhe acrescenta.
O discurso empolado surge também para teatralizar determinadas cenas. À escolta que, malvestida e descalça, persegue bandoleiros no sertão, o narrador acrescenta, em A luz dos mortos, sem qualquer justificativa, sua literatice untuosa:
[…] Das matas quietas subia, e espalhava-se, um cheiro forte de folhas machucadas, como se a natureza virgem se martirizasse em um grande sonho voluptuoso. As sarças rasteiras, abrindo cálices roxos em que a Noite se embebedara de orvalho, acordavam, úmidas, emergindo do labirinto das próprias ramas, polvilhadas de terra e de sereno.
E logo a seguir, ansioso para provocar náuseas no leitor:
[…] Aqui e ali, na mata ressuscitada, uma árvore morta sonhava com os encantos da vida, oferecendo ao sol, em cima, no espectro do último galho, o óbulo de uma flor humilde, cujo cipó se lhe agarrara ao tronco para ir dar, no alto, ao astro namorado, a cheirosa esmola daquele beijo. […]
A grandiloquência, entretanto, torna-se um problema menor quando nos deparamos com a pobreza vocabular.
Em O alce, o narrador volta a tempos primevos e nos coloca diante da “boca monstruosa” de uma caverna:
[…] Aberta na rocha bruta pela força inconsciente das grandes águas primitivas, a enorme furna constituíra o refúgio seguro dos tímidos veados perseguidos, que ali iam repousar, assustados, contra a voracidade dos leões do deserto. [Aqui — e no parágrafo seguinte — os grifos são meus.]
Em meio à fúria dos adjetivos, perceba-se que tudo é, de alguma forma, desmedido. Mas, insatisfeito, o narrador fala, nesse conto de seis páginas, da caverna cuja “goela” é “enorme”, de “grandes pedras amontoadas”, de “grandes herbívoros adormecidos”, da “enorme floresta repousada”, das “grandes várzeas pontilhadas do sangue dos cardos floridos”. O troglodita tem “mãos de grandes unhas”; a mulher apresenta um “tumultuoso caudal de cabelos desordenados”, capazes de se contrapor ao verde da folhagem como “uma grande mancha”. Há “grandes formigas” e uma “grande faia de raízes à flor do solo”. Um “grande alce” luta com outro e formam, ao vergar seus dorsos, “dois arcos enormes”, o que, claro, é a “grande luta dos cervos”.
A sanha do exagero prossegue por todo o livro. Em O seringueiro,
[…] A noite caía lenta, envolvendo tudo, como um sudário imenso, lançado sobre a terra pela piedade divina. O céu, estrelado e baixo, parecia a cúpula enorme da tenda suntuosa de um poderoso rei oriental.
A lama racha sob o sol, em Retirantes, parte-se na forma de “escamas escuras” que lembram “a carapaça de uma tartaruga monstruosa”.
E ao exagero soma-se o grotesco, como nesta cena, em que a velha empobrecida pela seca escava um túmulo para roubar as vestimentas do defunto:
[…] Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de dois badalos sem eco de uma velha torre desmoronada.
Talvez uma das comparações mais infelizes e desproporcionais da literatura brasileira.
Ritmo ternário
O autor coleciona lugares-comuns ao dizer “o sol da mocidade em franco declínio”, “entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem, contudo, entregar-lhe a sua alma” e “não há estrada escura e coberta de espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores”.
Mas tudo pode ficar pior. Humberto de Campos também aprecia o tipo de acumulação esquemática que descobrimos nas crônicas de Olavo Bilac (ver meu ensaio Perfumaria bilaquiana, em Esquecidos & Superestimados). O trio de palavras ou expressões encadeadas repete-se incansavelmente. Num único relato, Herodes a fila é extensa:
Um espanto, um susto alegre, uma inquietação feliz parecia apossar-se das cousas […]
Nos seus olhos escuros, que a febre incendiava intermitentemente, boiavam a revelação de uma vida civilizada, a reminiscência de sociedades polidas, a lembrança inequívoca de um ambiente invulgar.
Pusemos-lhe à disposição os nossos cobertores, o nosso quinino, as nossas bolachas. […]
Que as mulheres lindas não fossem minhas; mas, também, que não fossem de outros braços, de outros lábios, de outra luxúria.
Essa preocupação turvava até as minhas conquistas felizes, o meu prazer, as minhas horas de ventura.
Os maridos, os amantes, os noivos de agora seriam vingados. Dentro de alguns anos viriam outros homens, mais jovens, mais vigorosos, mais arrogantes, que tomariam, por sua vez, minha noiva, minha mulher, minhas amantes.
[…] a que se misturavam ainda as mil vozes, os mil gritos, os mil anseios da noite que declinava.
As mulheres eram perdoadas, abençoadas, amparadas.
Era o escândalo, que se anunciava. Era a condenação, que vinha. Era a prisão infalível.
À previsibilidade do ritmo frasal soma-se a previsibilidade dos finais: o último parágrafo revela sempre, necessariamente, a tentativa de escandalizar por meio de detalhes que ressaltem a ruína física ou moral, ainda que ela já tenha sido demonstrada.
Nem o melhor se salva
É o que ocorre no melhor conto do volume, Os olhos que comiam carne, em que o intelectual acometido de cegueira busca o auxílio de um cirurgião famoso e acaba condenado a ver apenas a ossatura das pessoas. As consequências da operação e o desespero do paciente estão claros parágrafos antes do final, mas Humberto de Campos precisa selar a narrativa com sua prosa extravagante:
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensanguentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos…
Esse e outros são finais de falso impacto, em que a linguagem enfeitada e pedante contribui para tornar inconvincentes histórias de trama esquemática, quando não artificial, pois o autor aplica a mesma fórmula de composição a todos os contos.
Se é possível, diante dessas inutilidades, um julgamento sintético, podemos dizer que, como outros escritores excessivamente narcisistas, Humberto de Campos ama a própria voz, não a literatura.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Amando Fontes e Os corumbas.