Na manada, fora dela

Paulo Sandrini faz do fantástico e do estranho seus vastos mundos de criação
Paulo Sandrini: longe do realismo fácil
01/12/2003

Como jorro incandescente a deslizar pelas encostas do vulcão, os jovens escritores brasileiros saem da gaveta; deixam o receio de lado e — graças a iniciativas localizadas ou à aposta das grandes editoras — povoam as livrarias com, na sua maioria, uma escrita rápida, fragmentada e com os pés fincados na realidade. O fenômeno (se assim já o podemos definir) dá-se tanto na prosa como na poesia, mas os prosadores ainda formam um exército mais bem armado e, seus trabalhos, ganham mais visibilidade. Não que os poetas também não estejam se armando em seus quartéis, mas falta-lhes, talvez, a unidade dos prosadores — que já se organizaram, ou foram organizados, na chamada Geração 90, que ganhou impulso por meio das antologias organizadas por Nelson de Oliveira (Manuscritos de computador e Os transgressores). Tais antologias, é verdade, são bem questionáveis e poderiam ser muito mais amplas, mas contribuem sobremaneira para nortear a produção literária brasileira a partir dos anos 90. É claro que ainda estamos no epicentro do furacão, com tudo sendo arrastado muito rapidamente, com as impressões apressadas, sem muito tempo para parar e ver o “estrago” que o vendaval há de provocar nestas paragens por vezes tão calmas e sem graça. Um olhar a distância, em alguns anos, há de identificar com mais precisão todo este processo. Do jorro, poucos hão de sair ilesos. Mas não se pode negar que a literatura brasileira vive um momento de efervescência, com escribas para todos os gostos.

Já aparecem muito claros — e isso vem sendo dito à exaustão pela crítica — alguns pontos em comum entre os jovens prosadores: a escrita fragmentada e o realismo-naturalismo imperam nesta leva de ficcionistas. A violência das grandes cidades, a desilusão, o sexo e um certo pessimismo norteiam a produção entre os novos escritores brasileiros. Os textos têm referências diretas do jornalismo e da internet. Os chamados blogs (que para mim ainda não passam de diários juvenis e grupos psicanalíticos on-line) transformam-se em livros, ganham admiradores e têm um público fiel. Os exemplos se multiplicam a cada dia: o mais recente pode ser notado neste Rascunho, à página 6, em texto de Ricardo Sabbag, sobre João Paulo Cuenca, que acaba de lançar o fragmentado Corpo presente, pela Planeta — uma das grandes editoras a acreditar nesta moçada. A lista aqui é extensa e passa por nomes como Clara Aven Bruckk, Daniel Galera, Joca Reiners Terron (este um caso a parte), Ronaldo Bressane e por aí afora. Todos nomes importantes nesta miscelânea de vozes. Só não confundamos importância com qualidade: uns a têm, outros nem tanto.

Fazer um mapeamento desta nova geração de escritores seria trabalho de fôlego e, acredito, muito mais interessante ao meio acadêmico ou a um livro dedicado exclusivamente ao caso. Este texto pretende, portanto, centrar forças no antagonismo, na diferença, naqueles que, mesmo dentro desta geração, caminham à margem, fogem da redoma criada. Entre estes, sobressaem-se os nomes de Daniel Pellizzari, 29 anos — figura das mais importantes ao dar vida, ao lado de Daniel Galera, à editora Livros do Mal, em Porto Alegre, dedicada aos novos escritores — e agora o de Paulo Sandrini, 32 anos, este a fazer literatura em Curitiba. Como se vê ambos fazem uma literatura “marginal” até mesmo do ponto de vista geográfico — estão longe do egocêntrico eixo Rio-São Paulo; apesar de o Rio Grande do Sul ser um caso excepcional na criação literária. Já Curitiba é uma ilha, com excelentes escritores à espera do navio cargueiro para levar seus escritos para o outro lado do mundo. Mas a questão geográfica, principalmente para uma geração massacrada pela internet, é extremamente irrelevante. O que os aproxima é a opção pela fabulação, pelo mágico, pela tentativa de fuga da realidade pura e simples. Do homem que acorda com um buraco no meio da testa (no conto Buraco, de Pellizzari, de O livro das cousas que acontecem) ao protagonista que se vê com o corpo tomado por pêlos no conto O que dizem os especialistas, no recém-lançado O estranho hábito de dormir de pé, de Sandrini, as semelhanças e opções de linguagem e condução dos enredos convergem para uma literatura que tenta se desvencilhar do realismo que toma conta de boa parte da produção atual.

O caminho de Sandrini é dos mais perigosos, não só por contrariar a atual “onda literária vigente”, mas também por adentrar campos já demais explorados: o mágico e o estranho. Nos dez contos de O estranho hábito…, uma sensação de estranhamento invade os mundos criados pelo autor; criaturas que podem ser humanos ou qualquer outra coisa tomam o centro do palco e passeiam num jogo claustrofóbico. Os textos de Sandrini passam a sensação de que estamos destinados à derrota, a um fim sem retorno, sem esperança. Portanto, aproveite o agora, pois não sabemos o que nos espera. E se o nada estiver do outro lado da porta? Há também — e o que mais se destaca na coletânea — um jogo de poder e um constante clima de batalha que perpassam a maioria das histórias. Desde Na manada, fora dela, que mostra a luta pela sobrevivência após uma guerra que devastou o mundo: “a antropofagia se constituiu no único modo de alimentação”, ao estranho médico que cria animais num pequeno apartamento em um condomínio, acabando com o sossego dos vizinhos, em Martelo de Thor, todos buscam um espaço, a sobrevivência no caos.

Neste ponto, acredito, esteja a grande qualidade da literatura de Sandrini: ele questiona a realidade do homem pós-moderno (se é que ele existe), sem recorrer ao puro realismo, sem afundar-se numa viagem, às vezes sem volta, pelo texto-espelho da realidade. Em nenhum momento, o contista abdica de exercitar a imaginação, de fabular, de mergulhar na ficção e deleitar-se nela. Pode-se notar isso com muita facilidade em contos como Um desvario humano no olhar, no qual uma cidade é invadida por “uma miríade de onagros”. A chegada dos animais muda a rotina da cidade, mas aos poucos os habitantes vão se adaptando aos intrusos e tiram muito proveito da situação. O homem e sua infinita capacidade de adaptação e suas artimanhas para vencer a qualquer custo. Já em Martelo de Thor, deparamo-nos com as difíceis relações em sociedade, os códigos de conduta e o quão perturbador pode se tornar a quebra de tais códigos.

Como já disse, o caminho escolhido por Sandrini pode se tornar traiçoeiro. Ao optar por este estranho mundo, aproxima-se perigosamente de autores como José J. Veiga, principalmente em Um desvario humano no olhar, cujos traços são facilmente identificados em romances como Sombra de reis barbudos e A hora dos ruminantes, de Veiga. Há ainda traços muitos fortes de Cortázar e Borges. Apontá-lo como um simples diluidor pode tornar-se tarefa fácil. Sandrini aposta alto na escolha que fez e parece disposto a correr riscos. Como a maioria dos jovens escritores que arrisca os passos pela ficção, a obra de Sandrini tem ecos irregulares. O destaque é a mescla de um rebuscamento na linguagem atrelado a lugares-comuns. O ruído é forte em frases como “Obrigatoriamente teríamos de lograr êxito em nossa fuga”, seguida de “Longe do bando, a algidez tornara-se bem mais intensa. O campo aberto e árido que o mundo havia se tornado, salpicado por arbustos tímidos, rasteiros, aqui e ali, se estendia, merencório, até perdermos de vista”. Expressões como “lograr êxito” soam muito estranhas ao lado de palavras como algidez e merencório. Outros exemplos são facilmente identificados no livro. Os contos mais curtos perdem a tensão rapidamente, têm um bom começo, mas chega-se ao fim com uma sensação de vazio, principalmente em O que dizem os especialistas, no qual parece que autor quisera se livrar da história o quanto antes, o que contraria o seu, digamos, projeto literário, que busca o trabalho do texto e do enredo à exaustão, longe da pressa e da rapidez de boa parte de seus pares atuais.

Mas as derrapadas de Sandrini por um mundo espinhoso não comprometem a sua quase-estréia literária (é autor do livro de contos Vai ter que engolir!, 2001, mas que já soa como um arrependimento literário). O estranho hábito de dormir em pé coloca Paulo Sandrini no jorro incandescente que desliza pelas encostas do vulcão; está quase sozinho na sua escolha, e luta, assim como seus personagens, para não virar cinza. Tem grandes chances de sobreviver.

P.S. Deixei de falar de monumental parte dos novos autores, por questões óbvias de espaço. Mas entre os de inegável talento, não se pode esquecer o contista Amilcar Bettega Barbosa, que, com sua timidez e lentidão, vai construindo uma obra de grande força. É autor de O vôo da trapezista e Deixe o quarto como está.

LEIA ENTREVISTA COM PAULO SANDRINI

O estranho hábito de dormir de pé
Paulo Sandrini
Travessa dos Editores
131 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho