Guerras são ruins para todo mundo, até mesmo para os vencedores. Se no balanço final da história — aquela grande, que vai para os livros para ser eternizada — há sim um lado que ganha e outro que perde, na vida real todos os que foram envolvidos perdem algo. Perdem-se vidas dos dois lados da batalha, perde-se tempo, perde-se liberdade, perde-se a inocência. Mesmo uma criança é capaz de perceber que há algo errado, por mais que seus pais a protejam da realidade. A rotina alterada, a escassez de bens antes fáceis de encontrar, a proibição à menção de determinados assuntos, todos pequenos detalhes do nosso cotidiano que a guerra perturba.
Por mais que haja inúmeros relatos da vida das pessoas durante as guerras, há sempre uma nova história a ser contada. Marina Colasanti, a múltipla artista — escreve poesias, crônicas, contos, livros para crianças, jovens, é jornalista, trabalhou na tevê, é artista plástica, ilustra alguns de seus livros —, nos apresenta um ótimo livro de memórias sobre sua infância na Itália em guerra e nos primeiros anos depois da guerra, até sua partida para o Brasil, em 1948: Minha guerra alheia. Porém, mais que um livro de memórias, Minha guerra alheia pode ser encarado também como um documento de um período trágico.
O livro inicia com o casamento dos pais da autora, em setembro de 1935, numa Itália prestes a embarcar em sua aventura colonialista. O pai de Marina, Manfredo, fascista convicto, era voluntário dos camisas negras que apoiavam Mussolini na Itália, e já estava com a viagem marcada para a África, onde os italianos conquistariam a Abissínia, a Eritréia e um pedaço da Somália. Marina tenta descobrir de onde vinha o ímpeto guerreiro do pai, seu fascínio pela farda e também pelo fascismo. Ao tentar descobrir isso, voltamos até 1919, quando seu pai tinha 16 anos, para ver pelos olhos da escritora a ascensão do fascismo na Itália. A mãe de Marina, Lisetta, acaba transitando pelo livro como uma personagem mais misteriosa, apesar de ser a maior constante na infância da escritora, pois o pai, como militar, passava mais tempo fora de casa, em viagem, do que com a família.
Crônicas
O livro pode ser lido como um romance, apesar de parecer-se com um conjunto de crônicas dispostas em ordem cronológica, e em que Marina vai descrevendo as mudanças pelas quais passa o seu mundo. Sim, o seu mundo, pois é necessário lembrar que Marina nasceu em 1937, na cidade de Asmara, na Eritréia, então parte da África Oriental Italiana. E como ela foi criança durante a Guerra, faltava-lhe à época a compreensão plena do que acontecia no mundo. Ao relatar que as crianças italianas colocavam os camisas negras e os nazistas do lado dos mocinhos, por exemplo, ela apenas revela uma normalidade: torcemos para o time da nossa casa, não para o adversário. Não há viés ideológico nisso, apenas lógica.
O título do livro não chega a ser um enigma. Marina não declarou guerra a ninguém, por isso a guerra não é sua. Mas é a guerra de sua infância, por isso é dela também. Ao adotar esse tom altamente pessoal para a sua guerra, Marina consegue deixar de lado todo julgamento fácil que a maior parte das pessoas faz quando se fala de uma guerra de outros tempos. Marina não defende ou justifica fatos ou passagens. Em relação ao pai, por exemplo, que até o último momento se manteve fiel a Mussolini, Marina não emite um juízo de valor, mas procura relatar como eram as aparições que ele fazia quando voltava de viagem. Ao adotar essa postura, se perdemos um pouco o “passar a limpo” da história, ganhamos um relato vívido de como era viver em uma época de restrições. Claro, a autora acaba usando a sua experiência de vida, as possibilidades que teve de voltar aos cenários de sua infância — Eritréia, Trípoli, Porto San Giorgio, Como e Albavilla durante a guerra, Porto San Giorgio novamente e Roma após o fim — e uma memória privilegiada para recontar tanto o seu passado como o impacto do reencontro dos cenários de sua infância.
Ao preferir não relatar a guerra em si, mas a maneira como uma criança via os efeitos dessa guerra, podemos ter a impressão de que a situação não foi tão dura assim. Mas é nos pequenos detalhes que a autora revela as dificuldades do dia-a-dia. A escassez de tecidos levava as mães italianas a fazer vestidos para seus filhos com qualquer tecido disponível. Assim, roupas velhas eram desfeitas e viravam qualquer outra coisa. Couro não existia, todo o couro disponível era requisitado para fazer botas aos soldados italianos. Marina sofreu com seus sapatos de tecido na neve do inverno italiano. Não havia comida para todos, e a cada dia ela era mais escassa. Como disse antes, é um cotidiano duramente atacado pelas restrições que a guerra impõe.
Como a escritora não teve contato direto com a realidade sangrenta da guerra — no livro, descobrimos que o mais próximo que a guerra chegou dela foi por meio do bombardeamento de um depósito de combustíveis perto de Albavilla —, podemos até achar que ela romanceia um pouco o período e escreve com um tom que aparenta ser leviano. Mas é necessário lembrar sempre que estamos vendo a guerra do ponto de vista de uma criança e de uma senhora relembrando essa criança, 65 anos depois do fim dos conflitos. A leviandade está nos olhos da criança, mas não na dureza da vida daqueles tempos. Muito mais realista, por exemplo, é o relato do pós-guerra em que Marina conta da sua vida na casa da avó e do convívio com o tio, figurinista de Cinecittá, a fábrica de filmes italiana. Mas ali a autora já tem oito, nove anos, e as memórias são um pouco mais vívidas.
Apesar de manter o foco na visão da criança, Marina Colasanti não se limitou às suas memórias e foi atrás da história daquele período para criar uma obra ainda maior. Às situações de sua vida cotidiana, Marina intercala os diversos fatos marcantes da guerra, principalmente os acontecidos na Itália, para dar o pano de fundo daquela época. O resultado final acaba sendo um belo documento, escrito em uma linguagem cativante, sobre um período trágico da humanidade.