Adriana Lisboa é uma tranqüila motorista a dirigir na contramão pela balbúrdia da avenida Brasil — este caminho vigiado por Cérbero entre as varizes do Rio de Janeiro e suas redondezas. Dirige calmamente a contemplar a paisagem, a compor situações possíveis, a espantar-se com a velocidade dos caminhões, carretas, carros, motocicletas, cavaleiros que vêm desarvorados em sua direção, carregados de textos rápidos, violência urbana, sexo, falsas angústias existenciais, fragmentação, internet ad infinitum. Adriana Lisboa não se importa de estar na contramão. Sabe que não será multada, não infringe a lei, cria a sua própria lei, desdenha os modismos impostos, ou criados para serem impostos. Olha com enfado os apressados seguindo para o outro lado, para a praia talvez. Está praticamente só no trajeto escolhido. Olha para trás e vê poucos, olha para frente e, além da manada ensandecida, vislumbra mais alguns fazendo o mesmo trajeto que o seu. São solitários em direção ao sol ou ao crepúsculo de mais um dia. No porta-malas, carrega versos de Manuel Bandeira, contos de Borges e Cortázar. Sorri quando um caminhão arranca-lhe o retrovisor direito. Esquece-se ao volante e segue como uma estranha.
É a partir desta imagem — um tanto urbana, diga-se — que busco ler a obra de Adriana Lisboa. Aos 33 anos (completa 34 em abril), com três romances publicados, esta carioca teria tudo para estar cravada na chamada Geração 90, esta que aí está a fazer ruidosos estardalhaços. Por quê? Os motivos podem não ser os mais concretos, mas Adriana viveu boa parte de sua vida no Rio de Janeiro, esta mistura de paraíso e inferno, vive nos meios literários e sua formação (?) literária dá-se nos últimos cinco anos, mais exatamente em 1999, quando lançou Os fios da memória. Ou melhor, Adriana simplesmente poderia entrar na onda urbana e criar sobre um universo que risca a sua pele todo o tempo. Mas este mundo — pelo menos este que aí está a ser criado ou apenas reproduzido pelos novos autores brasileiros — interessa muito pouco a Adriana Lisboa (leia entrevista a seguir). A autora rejeita, ou não dá muita bola, ao neonaturalismo que assola a literatura brasileira contemporânea.
Nem mesmo a derrapada deste novo romance, Um beijo de colombina — já falarei com calma sobre —, é capaz de tirar Adriana Lisboa de um caminho dos mais interessantes e aprazíveis. Ao adentrar sua obra, o leitor logo identificará que está diante de uma autora diferente, envolvente, capaz de conquistar apenas com o poder do ritmo imposto às palavras, do rumo da história, da construção dos personagens, sem malabarismos lingüísticos, macaquices estereotipadas ou profusão de imagens que invocam todo o tempo sexo, violência, existencialismo barato. Adriana Lisboa é uma grande contadora de história, construtora de dramas, de enredos que envolvem, causam prazer no leitor (coisa rara de acontecer ao percorrer a maioria dos novos autores), fazem pensar e divertem. Enfim, encara a literatura como arte, como um vasto campo para a criação de mundos, mesmos estes que já estão aí a nos açoitar o corpo. Mas se Adriana se afasta dos “grandes temas atuais”, a que se dedica então? Ao amor e à morte. Piegas, hão de vociferar os detratores. Mas as inquietações universais — amor e morte — tornam-se matéria cara em suas mãos. A pieguice, labirinto tão fácil de perder-se, é domada com segurança e frases que embalam a leitura, feita numa aparente calmaria, que muitas vezes se transforma em tempestade, em destruição.
As mulheres estão no centro da obra. A partir delas e em direção a elas tudo acontece. Os fios da memória — cujo título carrega outra arma da autora: a memória — é a estréia de uma escritora já madura. Nem mesmo os traços históricos, irrelevantes, acredito, são capazes de ofuscar a trajetória da família Brasil, iniciada no início do século 19 com Maria e Eustáquio Miranda, até culminar em Beatriz Brasil, narradora de uma história transbordante de amor e da falta dele, de desilusões, frustrações, dor na carne e na alma. Tudo narrado numa prosa límpida e segura. Poética, digamos, para desespero de alguns. Os fios da memória é pavimentação para se chegar a Sinfonia em branco, romance com espaço garantido na literatura brasileira, ganhador do prêmio José Saramago, em 2003. Em Sinfonia em branco, Adriana Lisboa exerce sua arte com a segurança de quem sabe que não vai se perder ao aventurar-se por uma floresta desconhecida. Sabe que caminhos tomar, quando descansar, quando se alimentar, não age com excessos, está no limite, caminha com leveza pela mata cerrada. Logo no início do romance, abre-se a janela e acariciam-nos as palavras:
“A tarde abafada de verão descolava-se da estrada sob forma de poeira e se espreguiçava no ar. Tudo estava quieto, ou quase quieto, e mole, inchado de sono. Um homem de olhos muito abertos (e transparentes de tão claros, coisa que não era comum) fingia vigiar a estrada com seus pensamentos. Na verdade, os olhos mapeavam outros lugares, vagavam dentro dele, e catavam cacos de memória como uma criança que colhe conchinhas na areia da praia” (p. 9)
Ao neonaturalismo da literatura brasileira contemporânea tal trecho soa como um insulto. Em tempos diabolicamente rápidos e encharcados de sexo e violência, frases como estas soam “anacrônicas”. É aí que reside a grandeza de Adriana Lisboa — não se rende ao fácil e corporativo, atreve-se por uma trilha solitária. Faz uma literatura de diversas leituras, com muitos cortes e compreensões; e a linguagem poética marca o passo. Quando digo que o amor e a morte guiam a obra de Adriana, acompanha-os a desilusão e a tristeza, como não poderia ser diferente. No emaranhado, sobressai-se também a família, esta monstruosa organização e suas idiossincrasias. Em Sinfonia em branco, a família é um turbulento mundo, constituído pelas irmãs Clarice e Maria Inês — seus amores, suas desgraças —, pelo detestável pai, Afonso Olímpio, e pela subserviente Otacília, a mãe. É entre estes personagens que a história ganha vida, e morte. Há também o embate entre o campo e a cidade, tema outrora tão caro à literatura. Não é o caso de mergulhar na história e sua construção, até porque o espaço não permite. Mas anotem: Sinfonia em branco é um grande romance, para ser lido e relido, com um novo encantamento a cada leitura.
A derrapada
Seria tarefa das mais fáceis definir Adriana Lisboa como apenas mais uma escritora com certo talento, caso partíssemos de Um beijo de colombina, romance que acaba de ser lançado. Ao leitor de Sinfonia em branco (acredito que muitos ainda o lerão), um aviso: a decepção pode ser grande. Esperava deste romance mais um excelente livro; é apenas razoável, com alguns acertos e muitos equívocos. O ponto de partida é animador para qualquer amante da literatura: o romance é escrito a partir de alguns poemas de Manuel Bandeira, o maior menor poeta do mundo. Ao leitor de poesia, um alento. Ao leitor de romance, um alento. Ao leitor comum (este que lê sem método e, quem sabe, é entre as “raças leitoras” a mais feliz), um alento. Estamos diante da capacidade criadora de Adriana Lisboa — provada e comprovada — e da poesia de Manuel Bandeira. O problema é que o espetáculo prometido fica muito longe do resultado. Logo no índice, têm-se os capítulos nomeados com 14 belíssimos poemas de Bandeira, como Maçã, Cantiga, Poema do Beco, Pierrot Branco…, todos de Estrela da vida inteira.
A partir deles vamos conhecendo a história de amor de Teresa e João. O narrador é João (ou façamos de conta que é), portanto, uma voz masculina. João é um professor de latim. Teresa é uma escritora de sucesso, que acaba morrendo afogada (ou façamos de conta que acaba) no mar de Mangaratiba. João não é escritor e sabe suas limitações, mas vai mostrando como era (ou é) Teresa. O amor que não se afasta nem depois da morte, a reaproximação com Marisa, a antiga namorada. O grande problema é que tudo é muito rápido; falta intensidade às descrições (tudo bem, se levarmos em consideração a leveza poética de Bandeira, mas intensidade e leveza são grandes amigas); o belo ritmo de Sinfonia em branco não se ouve em Um beijo de colombina. O leitor fica desamparado diante da rapidez deste romance. Faltam-lhe as belas frases, a poesia a espreitar nas entrelinhas. A solução final para o romance é, senão previsível, forçada, pouco criativa. Este que era para ser lírico até os ossos, é magricela como um beija-flor, sem o charme deste. É certo que há toda uma declaração de amor à literatura e a Bandeira, com algumas discussões sobre o escritor e suas empreitadas. Mas a sensação é de falta, como um amor que pouco nos oferece quando mais precisamos dele. Apesar de tudo isso, Um beijo de colombina ganha um espaço entre os bons romances da nova literatura brasileira.
Mas mesmo quando o carro desliza para fora da pista, Adriana Lisboa segue à risca o seu trajeto. Precisa chegar a algum lugar. Não tem pressa. Vai embalada pelo ritmo escolhido. No rádio, a música é suave. Lá fora, alguns beija-flores tentam acompanhá-la. O barulho dos caminhões em sua direção é forte; ainda vão arrancar o outro espelho retrovisor. Adriana aumenta o volume do rádio e já não se importa com mais nada.