Muros e memória

"No muro da nossa casa", de Ana Kiffer, reflete sobre a ditadura pela lógica dos afetos
Ana Kiffer, autora de “No muro da nossa casa”
01/05/2025

Estamos em 2025 e o Brasil convive com a sombra da ditadura militar. Vemos isso nas notícias diárias, quando nos deparamos com a defesa pela anistia ao 8 de Janeiro ou até mesmo entre amigos e familiares. É comum que política seja um tema proibido entre pessoas mais próximas. Tal fato demonstra, entre outras coisas, que temos uma relação conflituosa com a memória.

No muro da nossa casa, de Ana Kiffer, tem profunda ressonância política e afetiva. Ao caráter memorialístico, resgatando as marcas da ditadura na vida de suas personagens, a autora entrega experimentações de linguagem que aportam uma comovente narrativa abrindo para a tão necessária metáfora.

Hoje, a associação a Ainda estou aqui é quase inevitável. O filme de Walter Salles e o livro de Marcelo Rubens Paiva retomam a relevância de Eunice Paiva após o desaparecimento do marido, o ex-deputado Rubens Paiva. Ela, desenhada com muita justiça como uma heroína, torna-se o esteio da família imprimindo uma resposta ao doloroso momento vivido. Até então, esses personagens eram tidos como secundários na luta pela democracia, ofuscados pela ação de muitos que estavam na “linha de frente”.

Ainda na esteira do protagonismo feminino durante a ditadura, No muro da nossa casa me remeteu a O corpo interminável. O premiado livro de Claudia Lage conta a história de Daniel e seu empenho na reconstrução de suas origens a partir da história da mãe guerrilheira desaparecida durante os anos de chumbo. Aqui, a condução da leitura se dá através da angústia, na lida com um passado obscuro, pela construção da memória.

Nas obras acima mencionadas, a mulher ocupa o primeiro plano. Mas há diferenças entre elas, sobretudo quando as comparamos com o livro de Ana Kiffer. O ponto central para o entendimento de No muro da nossa casa está na atenção às lacunas deixadas em nossa história por conta da ditadura militar. E, neste caso, não falo de lacunas quanto ao desaparecimento de um ou a identidade de outro.

Ana Kiffer deixa evidente a coragem das mulheres por ela retratadas — a coragem e a indignação. Porém, igualmente, apresenta o medo, a angústia, a incerteza e até mesmo a raiva e, por que não, o arrependimento por terem se posicionado de modo veemente contra a ditadura. Esses sentimentos, da maneira como são apresentados, demonstram as ambivalências das personagens — a autora tateia as contradições humanas.

Acabo de ver um documentário sobre os mortos na ditadura chilena, entre exilados, desaparecidos, retornados, filhos perdidos ou impedidos de viver com as suas mães, eu choro. Porque tudo isso que você me conta, eu não lembro, mas sinto. Por ter ficado colada ao seu corpo, e a renúncia que fez da política, eu choro.

De um dia para o outro, o muro da casa de uma família amanhece pichado com os dizeres de que ali vivem comunistas. Isso em plena ditadura militar. A mulher, grávida da filha, tenta apagar os escritos, sabendo de sua implicância. O marido, político, é preso, causando-lhe extrema angústia, ao ponto de sair a sua procura com uma arma na mão — vai direto ao seu chefe, o governador. Pouco depois ela também é levada, presa e torturada enquanto ainda tinha a menina em seu ventre.

Ambiente de tensão
Os horrores do claustro são descritos de modo muito breve, para não dizer contidos. Kiffer demonstra habilidade para construir um ambiente de tensão a partir da narrativa, da fala das personagens. Como o livro inteiro é um diálogo, é como se estivéssemos diante das duas, vendo suas expressões, os gestos indicando titubeios, temores e vergonhas nos relatos. Estamos a todo instante diante de impressões e, por certo, é o que importa. A obra é repleta de pausas. Assim, é possível chegar a um constrangimento no leitor que fica à espera da fala seguinte — em alguns casos, ela não vem, restando a sua reconstrução. Eis o exercício da memória, uma memória mobilizada por afetos.

Sobrevivemos sem conseguir escapar a essa culpa, a que eu sinto ainda agora. Uma destruição nunca se carrega sozinho, toda uma geração se destrói junto […]. Anestesiar a vida foi um ato necessário para que restasse apenas a crosta, como a sensação de culpa ou de ilusão, sim, grupos ilusórios posteriores se formavam, também uma atmosfera de degradação física e moral, de destruição, sempre destruir um pouco mais, e melhor.

Estamos a todo instante diante de distintas opiniões. A filha se revolta, chegando a exigir de sua mãe uma postura de repúdio mais veemente. Como resposta, basicamente ela diz que fez o que pôde. Muito da resistência armada não teria sido fruto de um projeto, mas, sim, de sentimento, de um sentimento de culpa, qual seja, de afetos — o que, de maneira alguma, deve ser interpretado como menor. O cuidado na construção da narrativa impede que o leitor tome uma posição em defesa de alguém. Ele se torna um observador, cuja interação só é possível no silêncio construído entre as duas.

Importante: a genitora da protagonista já é falecida no momento do diálogo. Por conseguinte, é natural que a entendamos tanto como uma projeção viva ou uma entidade autônoma. No primeiro caso, lidamos com memória em seu sentido mais clássico. No segundo, com uma presença, ainda que imaginária, com potência de incidir na vida da interlocutora, construindo e determinando a sua personalidade.

Eu aposto no meio termo. A mãe é projeção à medida que as respostas às suas perguntas são diretas e precisas, podendo até mesmo produzir entendimentos sobre a atual vida da filha. De outra parte, ela é memória por se encontrar muito bem demarcada na história, especificamente em um período histórico. E isso não é por acaso.

Com tal artifício, Ana Kiffer configura um novo patamar para a memória, apresentando-a como algo dinâmico. O entendimento dos fatos — a nossa compreensão sobre eles — passa a depender de uma estrutura, das condições e circunstâncias nas quais vivemos. A autora passa a bola para o leitor.

Retomo, então, o ponto inicial deste texto. Vivemos em 2025 e ainda discutimos a ditadura militar. Discutimos as suas consequências e fazemos isso em meio, pasme, a defensores do regime autoritário. No muro da nossa casa, construído após muita pesquisa nos arquivos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), é uma obra de nosso tempo. É uma obra que demanda esse dinamismo da memória. Que retomemos e repensemos esse momento histórico e as formas como a ausência de democracia incidiu em nossas vidas. Um escritor somente o é, de fato, quando consegue ser, antes de qualquer coisa, um leitor. E Ana Kiffer leu mais do que as palavras indicavam no muro. Com muita precisão, leu o nosso tempo.

No muro da nossa casa
Ana Kiffer
Bazar do Tempo
100 págs.
Ana Kiffer
Professora de literatura na PUC-Rio, Ana Kiffer é autora do romance O canto dela (2021), além de livros de poesia, como A punhalada (2016), Tiráspola e desaparecimentos (2017) e Todo mar (2019). Foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceanos.
Faustino Rodrigues

É psicanalista e professor de sociologia.

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