Morrer não é preciso

Resenha do livro "Desassombro", de Eucanaã Ferraz
Eucanaã Ferraz, autor de “Retratos com erro” Foto: Ailton Silva
01/08/2002

Alguns poetas parecem ter vergonha da poesia e exercê-la. Sim, bem sabemos, que todos têm a necessidade de expressá-la, até como forma de compartilhar o ofício com seus parcos leitores, mas o excesso pode transparecer uma fragilidade ao leitor menos interessado em tantas angústias versejantes. Eucanaã Ferraz parece querer revestir-se de senões e explicações para dizer como chegou, que caminhos percorreu, como sofre, como se angustia em seu tamborilar. Não seria mais cômodo uma aula teórica sobre seus versos? Este explicar-se é incômodo, pois demonstra fraqueza: “Isso:/ toda palavra é defeito”; “quanto de erro/ é acerto/ na fórmula de fingirmos?”; “quando alcança o poema,/ a mão pode mais? Pois”. Ao abandonar tais subterfúgios explicativos, encontrados em À mesa de trabalho, Eucanaã acerta o alvo ao mirar para o tempo e suas conseqüências. Eis que surgem grandes versos e seus significados a todos, não só ao preocupado com as agruras do poetar. A saudade (“No entanto, o carvão/ de certas palavras,/ de alguns nomes,/ não se apaga fácil) e a rotina (“nossos cacos batendo/contra os dias) fazem de Desassombro um livro de versos pujantes, sem o viço do explicativo. A solidão também acompanha o poeta, faz-lhe companhia por destinos que se alternam entre diversos tempos, até desaguar na morte, outro tema que persegue o poeta entre as frestas deixadas pelo abraço “enquanto descansa, dorme,/ a mulher que amo, que me ama,/ sigo neste exercício de ternura exata”.

Há a luta contra o inevitável. Ao aproximar-se do fim, o poeta tenta negar a morte, luta contra o envelhecer, detalha-o para encontrar sua essência e aí encontra a grandeza poética. Quanto mais distancia-se dos meandros poéticos e aproxima-se de si mesmo, mais força sólida está a poesia. No envelhecer, Eucanaã encanta com uma ternura só obtida em versos: “Não são os dias/ que passam,/ mas tu mesmo// Podes dizer: “quanto de cabelos,/ pelos, ossos,// olhos se/ me passaram/ desde a última vez que nos vimos?”. A força deste iminente fim deixa-nos o desassombro sobre o porquê de tantas explicações desnecessárias — pressentimos o impulso que o leva à poesia, Eucanaã: “E quero que amanheça,/ e quero não morrer”.

Desassombro
Eucanaã Ferraz
7 Letras
115 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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